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Fonte: Lua Nova: Revista de Cultura e Política - 1 (4) - Mar 1985 - https://doi.org/10.1590/S0102-64451985000100011
HTML: Fernando Araújo.
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Ninguém duvida que o capitalismo, no Brasil, se modernizou nos últimos vinte anos. Ninguém duvida também que arrocho salarial, concentração de renda, repressão politica e coisas que tais foram medidas que os donos do poder consideram como necessárias para a consolidação da sociedade capitalista em nosso pais. Por isso mesmo os analistas caracterizam como conservadora e excludente a modernização ocorrida durante esse periodo. E quando a gente se pergunta como é que as chamadas minorias ficaram nisso, as coisas ficam bem claras, sobretudo, no que se refere à população negra.
Contrariamente ao que aconteceu com a força de trabalho feminina (que entrou pra valer no mercado de trabalho, conquistando novos espaços profissionais), a força de trabalho negra foi a maior vítima de todo esse processo. Sistematicamente discriminada no mercado de trabalho, ela ficou confinada nos empregos de menor qualificação e pior remuneração.
O censo de 1980 é bastante revelador quando nos mostra que, em termos de rendimentos, a situação era a seguinte: dentre as pessoas que recebiam até um salário mínimo, a proporção era de 23,4% de homens brancos, 43% de mulheres brancas, 44,4% de homens negros e 68,9% de mulheres negras. De 1 a 3 salários mínimos, homens brancos e negros quase se igualavam em matéria de pobreza: 42,5% de homens brancos, 42,4% de homens negros, 38,9% de mulheres brancas e 26,7% de mulheres negras. Daí em diante, a dimensão racial voltava a pesar mais. De 3 a 5 salários mínimos: 14,6% de homens brancos, 9,5% de mulheres brancas, 8,0% de homens negros e 3,1% de mulheres negras. E acima dos 10 salários mínimos: 8,5% de homens brancos, 2,4% de mulheres brancas, 1,4% de homens negros e 0,3% de mulheres negras.
Enquanto isso, a indiferença e o cinismo continuam sendo a tônica em face desse racismo institucionalizado que tem passado intacto pelos diversos regimes políticos que existiram neste país. Indiferença por parte daqueles que reduzem a questão racial a uma questão de classe pura e simples, reforçando indiretamente o mito da democracia racial na cabeça dos mais ingênuos. Cinismo, por parte daqueles que negam a existência da discriminação racial pelo fato de nunca terem ouvido falar nela.
A "cara de pau" desses setores reacionários ficou bem caracterizada quando a Comissão da Lei Áurea, criada pelo Ministério da Justiça e presidida pelo príncipe D. Pedro Gastão de Orléans e Bragança, incumbiu seu secretário de sair à cata de um negro que seja doutor em História, para fazer parte de tão egrégio conselho...
Tal comissão tem por tarefa a publicação de cinco livros comemorativos do centenário da lei que, supostamente, aboliu a escravidão neste país. E o fato de seu secretário ter sido encarregado de achar o negro doutor, foi porque, sendo seus dez membros todos brancos, ela foi acusada de racismo. Só que a gente não ficou sabendo se esses dez membros foram escolhidos porque são doutores em História.
Por essas e outras (como a do "planejamento familiar") é que não dá para acreditar no que está aí. Somente a eleição direta e uma Constituinte, com um número expressivo de representantes das chamadas minorias, é que daria pra gente começar a falar em democratização institucional. E eu digo de e não redemocratização...