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Obervação: Edição final do texto por Vladimir Sacchetta, revista pelo autor, a partir da transcrição da exposição oral e notas elaboradas a título de roteiro para o seminário “O Pensamento Político de Carlos Marighella”, organizado por Jorge Nóvoa, ocorrido em 10 de maio de 1994, na Universidade Federal da Bahia. (N. O.) O trabalho de “salvação” deste texto, empreendido por Viadimir Sacchetta, foi providencial. No entanto, problemas técnicos de gravação e transcrição obrigaram-me a restabelecer frases e até períodos soltos no ar. Há, pois, discrepâncias entre a exposição oral e o presente texto que, lamentavelmente, se impuseram e não consegui superar. (Florestan Fernandes). Publicado em NÓVOA, Jorge (org.). Carlos Marighella: o homem por trás do mito. São Paulo: Ed. Unesp, 1999. pp.205-220.
Fonte: TraduAgindo
Transcrição: Andrey Santiago
HTML: Fernando Araújo.
Eu pretendia falar sobre o último Marighella. Quer dizer, o Marighella que desponta com a luta contra a ditadura militar, um homem que vivencia revoluções encadeadas em suas idéias, comportamento e aspirações. Havia projetado dividir a exposição em quatro partes: a natureza da ditadura militar; o papel da ditadura na concepção da luta política; o sentido da ruptura histórica; a tática atual. Certamente, na perspectiva de Marighella e tudo dentro das idéias defendidas por ele, com transcrição abundante de textos para que não ficasse a suspeita de que estaria projetando na cabeça de Marighella pensamentos que eu porventura pudesse defender pessoalmente ou, ainda, de outros grupos que o admiram ou são solidários com ele pelo fim que teve e que levou o país à maior indignação.
A morte de Marighella sacudiu o Brasil porque ela foi um verdadeiro massacre, um assassínio. Por isso, eu, que não compartilhava das mesmas posições de Marighella — estava na esquerda, mas esta comportava vários caminhos —, senti como se me tivessem cravado um punhal no peito. Não acho que Jorge Amado, que é um romancista e um escritor que respeito e admiro, tenha o direito de dizer que “resgatou” Marighella. Seu comportamento posterior traiu as origens e obrigações mínimas de comunista. Além disso, Marighella não precisa ser “resgatado”; pode, quando muito, ser enaltecido.
Quero pedir perdão aos senhores porque as conversas que tive com Clara Charf, quando discutíamos como seriam estes debates, implicavam certo caminho. Eu pensava em uma exposição que poderia tomar a forma de um seminário e preparei minha intervenção sobre Marighella fundada em textos. Ou seja, num percurso acadêmico que visava recuperar, e não esvaziar seu pensamento. Isso porque, na verdade, ele deu muito mais à história, tornou-se mártir e, ao mesmo tempo, exemplo para todos nós.
É um dever para comigo mesmo prestar essa homenagem a Carlos Marighella. Ele define tudo o que nós queríamos ter feito ou pretendíamos fazer na luta política revolucionária. Naturalmente, a incógnita sintomática está nos protagonistas que, junto dele, viveram um momento rico da história, em que os entraves sociais se aguçaram e se tornaram fortes. Entre um ou outro — e vou mencionar apenas alguns a título de exemplo — estão Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho, que irromperam de dentro do PCB para defender, com coragem, uma nova ordem revolucionária brasileira.
Está colocado o sentido dessa associação histórica. Como surge uma nova ordem revolucionária brasileira na luta entre as classes dominantes e os trabalhadores e destituídos? Marighella já havia acumulado experiências concretas que permitiam que pusesse em prática uma nova vinculação política com o PCB. E ele se viu em confronto com uma contradição insolúvel, que é a de um marxismo-leninismo exigente e a confiança na “evolução legal” que prevalecia no Partido e no país. Rompeu com essa postura da organização e recusou as alianças com a burguesia dita progressista. Bateu-se contra a via eleitoral e a representação parlamentar, pois ambas reduziam os trabalhadores a uma cauda da burguesia. Naquele momento, ninguém poderia optar por outro caminho.
Ao mesmo tempo, Marighella descobriu algo que ele chama, de maneira pitoresca, democracia racionada, um regime que identificava a democracia burguesa existente no Brasil. Esse conceito de democracia racionada equivale àquilo que os cientistas sociais denominam democracia restrita, uma democracia que nominalmente defende a todos mas, na verdade, é monopolizada pelos poderosos. E é através desta relação acrônica que ele vai se colocar diante do povo no primeiro momento, em 1964. Ele se localiza diante dessas ocorrências históricas buscando novos caminhos e também tentando descobrir como criar um partido revolucionário, que correspondesse à situação política resultante do golpe militar.
O primeiro ponto importante que pretendo desenvolver é a maneira pela qual Marighella interpreta a natureza da ditadura militar. Nós temos conhecimento da ginástica que fazem os politicólogos ou, de uma maneira mais sofisticada, os cientistas políticos. Eles batizam as ditaduras militares de “autoritarismo”. Então, teríamos tido um governo autoritário. Ora, uma instituição autoritária é a família. Ou pode ser a igreja, ou a escola. Mas os que tomam o poder para massacrar o povo não podem ser designados como governo autoritário. Marighella utiliza, também, o conceito de fascismo militar, que é um conceito com o qual trabalha nos dois últimos ensaios de envergadura, quando inverte conclusões como essa, substituindo-as naturalmente por outras. Por que não chegamos a ter regimes fascistas específicos na América Latina? Por uma razão muito simples: as condições imperantes na América Latina impediam até isso. Nenhum setor, no topo da sociedade, teve coragem de soldar-se e fomentar um regime tipicamente fascista; porque o regime fascista requer mobilização política e os ditadores e seus aliados temem exatamente qualquer mobilização política. Nem isso nós tivemos, embora sofrêssemos uma manifestação de fascismo que já tentei caracterizar num ensaio sobre Marcelo Caetano, sucessor de Salazar, “A natureza do caetanismo”(1) e no trabalho que está publicado em um pequeno livro, Poder e contra-poder na América Latina(2), voltado para o estudo de várias formas de violência na América Latina.
Marighella, no entanto, acreditava que o regime era fascista e poderia ter usado um conceito igualmente forte — tirania — sem as implicações do conceito de fascismo. Mas ele preferiu caracterizar como fascismo porque aquele regime nada tinha de democrático e se impunha levar seu desmascaramento até um ponto extremo. Ele acreditava na conceituação forte como ponto de partida da luta beligerante. Em Por que resisti à prisão afirma: “as premissas para a implantação da ditadura militar fascista de há muito estavam lançadas”. E aí se refere ao fascismo militar brasileiro que ele focaliza na dinâmica do Estado Novo, instituído pelo golpe de novembro de 1937 e também na influência norteamericana. Estes desempenharam dois papéis: de um lado, não se preocupavam com a democracia na América Latina; e, a chamada luta pela paz, pela democracia, na verdade, era uma luta pela hegemonia norte-americana na região; de outro, a Segunda Guerra Mundial levou-os a ter oportunidades de “fazer a cabeça” dos militares brasileiros, insuflando neles idéias que nada tinham a ver com democracia, mas sim com interesses econômicos da burguesia e a absorção da dominação externa “construtiva”.
A preocupação de Marighella aqui é didática e filosófica. E enfatiza o dilema de um revolucionário: não se pode combater um tipo de Estado sem conhecê-lo em sua estrutura, funciona- mento e potencial de duração. Daí a necessidade de levar a fundo o conhecimento do tipo de Estado que se está combatendo, que não e um regime autoritário, uma democracia à moda norte- americana para os subdesenvolvidos latino-americanos, mas um Estado fascista nas condições em que se pode manifestar na América Latina. Com isso, estabelece uma conexão econômica muito importante. Marighella não explora muito os aspectos econômicos nos ensaios, mas os pontos centrais aparecem. A conexão econômica surge na concentração dos monopólios e também exige a luta pela paz de uma perspectiva interna de auto-emancipação dos povos. Infelizmente, não tivemos no Brasil condições para agregar um movimento social capaz de ir ao âmago dessa problemática.
O segundo ponto que merece ser discutido é o papel da ditadura na concepção da luta política. É claro que um regime político dessa envergadura não pode aparecer sem provocar irradiações no pensamento socialista e no comportamento antagônico dos socialistas contra a ordem existente. Nesta parte de suas reflexões, Marighella mostra, em sua rápida evolução intelectual, de forma ágil e com grande acuidade política, capacidade de examinar profundamente temas complexos. Ele percebeu que, para a esquerda, o problema não era apenas combater a ditadura, nem se limitava à luta contra a “linha dura” ou suas facções dentro das Forças Armadas. Como bom revolucionário, Marighella dizia que o essencial consistia em mobilizar as massas e em retomar a questão central — “o problema das liberdades políticas”. É falso dizer que as massas populares só tenham interesse em pão, comida e bens materiais, porque sofrem carência de tudo isso. As massas sentem, sobretudo, a privação das liberdades e, por aí, Marighella pensa na construção de uma “frente única antiditadura” que, rapidamente, constata ser inviável. Nessa aliança, caberia um papel para, pelo menos, setores da burguesia que fossem realmente democráticos e lugar para todas as chamadas “entidades civis” da sociedade, todos os estratos da classe média, os trabalhadores urbanos, os oprimidos das cidades, os trabalhadores rurais e os miseráveis da terra.
Aqui acontece uma coisa interessante, porque é urna coincidência. Trata-se de um ensaio que escrevi, “Nos marcos da violência”(3), sem conhecer esses textos de Marighella, no qual proponho que a ditadura, ao usar a violência da forma que o faz, mostra ao povo qual deve ser a via para enfrentar a própria ditadura. E é sobre esse tópico que ele insiste dizendo que a “ditadura indicou o caminho para enfrentá-la, derrotá-la e forjar a democracia”.
Surgem aí as primeiras referências à guerrilha e a formas diversas de luta revolucionária que apanhassem a sociedade globalmente e permitissem uma outra onda rebelde, que não seria a de pequenos grupos, mas de todos aqueles que não quisessem sofreras injunções que o regime manipulava arbitrariamente. Aqui vem uma das acusações reincidentes que ele faz à política do PCB. Como diz: “é evidente que a solução do problema brasileiro por uma via pacífica se distanciou enormemente da realidade, depois do emprego da violência pelos inimigos do povo”.
Carlos Marighella equaciona dessa forma — que corresponde à natureza do processo histórico —, a valorização do trabalho pela base. Condena as cúpulas que tomam decisões aleatórias e impõem essas decisões às massas, muitas vezes sem explicar porque. O que esclarece a situação em que fomos apanhados infantilmente, isto é, a “ratoeira” usada pelos militares em 1964, porque as massas não estavam preparadas politicamente para tomar seu lugar à frente do processo de resistência e luta. Isso significa que as cúpulas, ao desvirtuarem sua ação política, tornaram-se responsáveis por erros irreparáveis. Ao valorizar o trabalho das massas, o trabalho de base, ao mesmo tempo ele debate — como seria de esperar em um marxista — o significado das ações “encurraladas” dos trabalhadores da cidade e do campo, na condição de agentes históricos. Não agentes históricos fortuitos, mas agentes conscientes do que precisam fazer. Segundo suas palavras:
O fato é que sem trabalho profundo com as massas, sem preparação política e ideológica, sem clareza sobre os rumos dos acontecimentos, sem a concentração de forças contra a reação, isto é, contra o golpe de direita e o fascismo militar, sem reforçar a vigilância de classe e estimular o espírito revolucionário, torna-se difícil, torna-se mesmo impossível a ação revolucionária e a revolução.
Com este propósito, Marighella visava reforçar a vigilância de classe e estimular o espírito revolucionário. Sua preocupação está não em atingir a chamada “revolução possível”, mas em equacionar o programa de uma revolução em atos. E, provando essas reflexões, vem uma série de textos de sua autoria que salientam o problema de como o desmascaramento da ditadura conduz ao desmascaramento do PCB e, reciprocamente, o desmascaramento do PCB desmascarava a ditadura militar. A mesma relação dialética de interdependência entre dois pólos é a da necessidade urgente do socialismo revolucionário de transformar a sociedade sem concessões.
O terceiro ponto é o que diz respeito ao sentido da ruptura histórica. Aqui, o ensaio sobre a “crise brasileira” é muito importante, porque percorre um itinerário sincero e mostra o grau da integridade intelectual de Marighella. Encarando as contradições globalmente, ele chega a conclusões que traduzem uma forma de ver a verdade sem, contudo, renegar raízes políticas e ideológicas. Ele contesta, como já apontamos, o trabalho de cúpula e exalta o trabalho de base, pondo em primeiro plano o agente popular, o agente social. Mas não repudia o comunismo, nem o PCB. Quer dizer, transformar a sociedade consiste transformar o partido e, nesta inter-relação, nós observamos duas coordenadas: primeiro, superar as contradições globais; segundo, no plano político, o ponto central volta a ser o do ataque ao fascismo militar. Mas, sublinhe-se, esse ataque deve subordinar-se a perspectivas marxistas, ou seja, dentro de concepções ou óticas comunistas. O desafio estaria na relação de confronto com o fascismo militar e as polaridades marxistas. Não ignora, porém, que as debilidades provêm não só das condições sociais de existência dos trabalhadores, mas, especialmente, da ausência de preparo político e ideológico. Os trabalhadores eram usados pelo Partido, mas não educados por ele para se tornarem militantes, com exceção dos que possuíam papéis relevantes nos quadros e nas lideranças.
Marighella resgata o papel das classes médias e, à medida que penetra a fundo nas origens remotas e recentes da crise, acaba entrando numa digressão de grande importância teórica: comparando a revolução na Europa e no Brasil, evidencia que lá as transformações se deram simultaneamente e com ritmos de tempo coetâneos, de forma sincrônica — como se costuma dizer usando o conceito da lingüística, da antropologia e da sociologia — enquanto tivemos entre nós sucessões desarticuladas, distantes umas das outras. O que criou, aqui, um tipo peculiar de atraso, um desenvolvimento capitalista desigual e desarticulado. Tínhamos avançado na produção agrária, com o sistema urbano e a expansão agrária vinculados à acumulação de riqueza no latifúndio, quando na Europa tudo isso havia ocorrido e já se estava numa época de economia capitalista dos monopólios. Recebemos um modelo de Revolução Industrial obsoleto e pagamos caro por ele.
Aceitando essa discussão e ótica interpretativa, Marighella trabalha, na verdade, com um conceito, muito mais de lingüistas, antropólogos e sociólogos, que é o dedisfunção — não uma função. O que deveria caber à burguesia não foi realizado e, ao mesmo tempo, aquilo que deveria provir dos trabalhadores também não se concretizou, pois eles não estavam preparados para tanto. Conseguem-se alguns avanços, mas são apenas irrisórios ou lacunosos.
Todas essas reflexões acabam desembocando na idéia de que são os trabalhadores agrários as maiores vítimas dessa situação, porque não recebem a solidariedade dos trabalhadores urbanos, nem são mobilizados para a insurgência. Enquanto isso, as classes médias oscilam mas tendem, em sua imensa maioria, a se associar com as classes dominantes. Configura-se, assim, uma crise de estrutura econômica e estabilidade política que favorece o imperialismo. Dessa forma, a crise brasileira converteu-se numa crise crônica, ao mesmo tempo econômica, cultural e política, agravada naturalmente pela interferência do conservantismo das classes dominantes. Dentre o setor dos trabalhadores — e aí Marighella refere-se naturalmente à década de 1940 — os mais radicais, abrangendo segmentos que se poderiam chamar de ultra-radicais, potencialmente revolucionários são os pertencentes às estatais.
Todas as classes trabalhadoras sofrem uma exploração intensa, que poderíamos designar exploração econômica infernal. O salário baixo equivale a um roubo. Nós poderíamos dizer, usando Proudhon, que o trabalho é um roubo; Proudhon afirmou que “a propriedade é um roubo”. Tomando as referências de Marighella o salário dos trabalhadores apresenta uma legalidade que acoberta, em todas as áreas, roubo ou destituição.
Está criada uma crise profunda, permanente, que se reproduz em benefício das elites das classes dominantes, do latifúndio — se guindo a divisão que ele faz — e do imperialismo, dos países que exploram o Brasil. Com certeza, origina-se uma crise que não pode ser resolvida no setor burguês, incapaz de realizar as reformas e as revoluções exigidas pelo capitalismo. E que, por sua vez penso que não pode ser vencida pelos trabalhadores, porque eles não contam com condições sociais subjetivas e objetivas para desencadear e dirigir um processo revolucionário. Ele chega à conclusão lógica de que o PCB e toda a esquerda existente falharam. A revolução tem de vir da base, atravessando a estrutura da sociedade e a superestrutura que está nas instituições-chave do Estado e do governo. “Agora, o caminho pacífico está superado”, afirmaria Marighella em 1966. É preciso voltar as costas ao passado e encadear o presente ao futuro!
Isso leva ao problema central nesse ponto. Fica claro para todos que o impasse está superado. Todo o esforço feito desde anarquistas, socialistas e comunistas tendo em vista uma revolução que partiria das instituições políticas burguesas é inútil para um processo político que deveria revolucionar a economia, a cultura e o Estado. Aqui, pela primeira vez, Marighella põe em pé, veementemente, a sua convicção nova. Ele diz, a respeito do papel das forças rurais, que “a aliança dos proletários com os camponeses é a pedra de toque da revolução proletária”. Ao mesmo tempo, não menospreza a visão de que as Forças Armadas possuem elementos decisivos que não pedem ser subestimados no processo revolucionário. Insere esse dado no “plano estratégico como um fator provável de guerra civil” e recomenda que esse setor deve ser absorvido pela revolução. Enriquece, pois, o quadro tradicional — que priorizava os intelectuais e os estudantes, aliados persistentes — e muda profundamente a forma de ver as coisas.
Essa perspectiva revolucionária não é gratuita. A própria evolução do capitalismo no exterior engendrou no Brasil “condições e dependência do imperialismo e manutenção do latifúndio” que exigem outras formas de revolução, peculiares às condições econômicas e políticas intrínsecas à “crise crônica de estrutura”. Um texto seu sublinha:
A contradição burguesia/proletariado ganhou nova dimensão. O que significa que não se pode lutar contra o imperialismo e o latifúndio alimentando ilusões na liderança da burguesia brasileira ou renunciando à luta de classes contra ela.
Por fim, vem o quarto ponto, o mais extenso porque tem ande importância no pensamento de Marighella e na herança intelectual que deixou para a esquerda brasileira. É o que chama de “a tática atual”. Quem acompanhou a exposição percebe que há uma porção de elementos novos que devem ser observados. Os caminhos de preservação da ordem ou da transformação revolucionária alteram-se também. E isso significa que a ditadura só pode ser enfrentada — e superada — na moldura histórica existente, pela força. O que, evidentemente, vai exigir uma tática nova.
Naturalmente, quando se fala em tática, é preciso falar em estratégia. Marighella faz uma referência muito curta à estratégia e se concentra na tática, talvez por causa da importância que atribui à guerrilha. Acredita que à nova estratégia deve corresponder uma tática atual — específica da situação histórica vivida. Ela não poderia ser uma “tática dúbia”, como foi a dos comunistas anteriormente, em suas alianças com as classes burguesas. Teria que corresponder às exigências da situação surgida com a ditadura e com a necessidade de, ao dissolver-se a ditadura, criar uma sociedade nova. E ele diz: “Ninguém acredita que se possa convidar as massas agora para uma insurreição popular”. Isso, é claro, em conseqüência da capacidade da ditadura em destruir um movimento de massas. Marighella continua: “Também ninguém verá vantagem em enfrentar a ditadura, desencadeando lutas e suportando violência, se afirmamos que nossa perspectiva é uma saída pacífica”. Quer dizer, ele estabelece o elo entre a luta política exigida e a luta política que se travava no passado.
Aqui temos uma passagem em que apresenta a formulação que irá caracterizar o seu pensamento revolucionário. Trata-se de um dos primeiros textos em que expõe, com muita clareza, a importância do elemento novo na gama político-militar. Hoje podemos absorver melhor aquilo que havia afirmado, se examinarmos a fundo as formas de ocupação de terras pelos proprietários e as técnicas sociais de confronto político dos trabalhadores sem terra. Ele diz:
O caminho da derrubada da ditadura através da luta de massas não terá conseqüências, nem dará resultados, a não ser eliminando o desprezo pelo trabalho no campo e adquirindo a compreensão do campesinato no processo em curso. Não se pode fazer a luta pela democracia e pelas reivindicações nacionalistas, separando uma e outra da luta pela terra e pelos interesses das massas camponesas. É um erro relegar para o momento da decisão estratégica o processo de luta visando atrair a massa camponesa. … O trabalho no campo é um trabalho tático. É o elemento essencial, fundamental da tática do proletariado.
Ganha extrema clareza sua posição teórica da qual nasce a prática guerrilheira, a que Marighella se refere em seguida. É preciso que não se perca de vista, como ele salienta, a importância do elemento que era, naquele momento, o mais numeroso, espoliado e oprimido, e também o mais miserável da sociedade brasileira. A interpretação dialética indica, ao mesmo tempo, como deveria ser conquistado para a luta política revolucionária. Vale a pena considerar suas reflexões sobre a tática que envolvem as condições recentes, que requerem a autonomia de luta de classes do proletariado diante da burguesia. O proletariado não pode isolar-se e vencer sozinho. É uma idéia na qual ele se firma e um problema que não existia na Europa, pois quando surge o marxismo, já havia ocorrido aquilo que é chamado de proteção da terra dos camponeses pelos nobres e burgueses. Podemos dizer que a cidade já havia recebido esse excedente de mão-de-obra, a terra dos camponeses já havia sido incorporada e o socialismo vai emergir de um meio no qual o proletariado começava a crescer a partir das indústrias. No Brasil, nós temos a grande dificuldade do protesto operário na cidade, isolado do miserável da terra, segregado no campo, e precisando dessa aliança vital para levar avante uma luta política mais coerente e eficaz.
O essencial consiste na derrubada da ditadura pela força. A força que mantém e reproduz a ditadura pode ser voltada contra ela e extingui-la. Marighella insiste que, para isso, é necessário “isolar e desagregar a ditadura a tal ponto que ela se torne impotente para empregar a violência contra o povo”. Na perspectiva daquele momento, ele vê que o elo que levará a ditadura a esse extremo
só pode ser o trabalho no campo, a penetração profunda no meio rural brasileiro, a preparação e o desencadeamento das lutas camponesas, com todas as conseqüências decorrentes das ações que contrariam o imperialismo e o latifúndio.
E afirma ainda que é o elemento camponês que radicaliza o processo político, coisa que está acontecendo nos dias de hoje. Uma das aprendizagens que fiz no legislativo foi acompanhar os feitos rebeldes dos trabalhadores rurais e ver como eles são capazes de levantar reivindicações incomparavelmente muito mais agressivas que as dos sindicatos de trabalhadores urbanos.
Por aqui é possível ver que ele buscava superar aquela visão obscura do trabalhador rural no processo revolucionário, no mo- mento de sua concepção, descobrindo nele o fator explosivo que deve unificar os dois pólos do proletariado e reunir uma maioria capaz de enfrentar a ditadura, levando a ebulição do campo para a cidade.
Ao mesmo tempo, equacionam-se as ambições de poder, de que fala Marighella, a respeito do militar, sugerindo como é vital é aproveitar os setores das Forças Armadas predispostos a apoiar a revolução. Inserindo o militar na sociedade global, não compartilha do dogmatismo de que todo militar é, pelo caráter social d sua atividade, indissociável da burguesia. Voltando a Engels, estabelece que o proletariado deve tomar em conta as forças militares. Embora o conteúdo de classe subordine-as às funções repressivas do Estado — e, no Brasil, elas sempre foram o vetor de reprodução da ordem e da repressão —, as contradições da classe as afetam e elas podem oscilar por todo o espectro da sociedade A “infra-estrutura militar” é recrutada especialmente entre o proletariado e o campesinato; a elite militar dirigente provém da pequena burguesia, da burguesia e dos grandes proprietários rurais. Entre eles, o tipo de capitalismo existente é poroso a um acesso plebeu e a influências radicais. Por conseguinte, nem sempre os militares se mantêm fiéis ao Estado e dóceis nos conflitos de classe. Por isso, a alteração na estrutura das classes, na natureza do Estado e nos interesses dos militares como atores sociais pode conduzi-los à defesa da democracia e de reformas sociais.
Contudo, e sem absorver aquela visão de que o Exército brasileiro é um exército democrático, Marighella arrola exemplos que demonstram o contrário e afirma que “as Forças Armadas brasileiras jamais deixaram de acompanhar as classes dominantes”. O Exército e as Forças Armadas no Brasil sempre serviram os de cima contra os de baixo. Na Colônia, no Império, na República e, mesmo no regime em que vivemos hoje, o militar nunca contou como um fator propriamente democrático. O comportamento dos nossos oficiais é mais autocrático do que se poderia imaginar, a ponto de um oficial mandar soldados limpar sua casa, fazer outros serviços domésticos e executar tarefas que não são próprias de uma força armada organizada.
As Forças Armadas não acompanham automaticamente a revolução popular, aceitando a hegemonia do proletariado. Mas podem “dividir-se e fender-se”. Portanto, se não se curvarem aos trabalhadores, podem apoiá-los, especialmente se existem indivíduos ou facções militares radicais ou revolucionárias. São pouco numerosos e não seguem a tradição conservadora e reacionária imperante, especialmente a sua evolução potencial em direção ao fascismo. De outro lado, é possível isolar a direita militar e neutralizá-la no contexto de uma situação histórica de “revolução dentro da ordem” ou de “revolução contra a ordem”.
A esta altura de suas reflexões, Marighella faz a análise da luta de resistência e coloca a guerrilha dentro do contexto histórico. A luta de “resistência das massas” engendra a guerrilha como elemento tático. Na guerra civil ou na revolução, sua existência e eficiência dependem da forma de luta principal — “libertação dos povos” e “derrubada das tiranias”. Considerando a importância da guerrilha ao longo da evolução histórica no Brasil, situa sua possibilidade no campo e na cidade.
O Brasil experimentou, desde o passado remoto, o uso das guerrilhas. Suas vantagens: no início, exige poucos combatentes; em geral, sua mobilidade e rapidez são altamente vantajosas. As forças populares são suscetíveis de aproveitar a guerrilha nas cidades e no campo. Menos apropriada às zonas urbanas, alastra-se com facilidade no campo. Marighella sublinha que é urgente encadear a guerrilha a outras formas de lutas políticas. E não toma nenhuma das experiências em que a guerrilha foi utilizada, mesmo na América Latina, inclusive Cuba, como modelo a ser copiado. Um dado importante e original de Marighella: não se trata de imitar Cuba, mas de fazer algo no Brasil que assuma outra forma e proporção. As nossas peculiaridades encontram resposta na guerrilha e na necessidade de levá-la a “fundo do Brasil”. Seus objetivos, tomados em conjunto, seriam: “fustigar as forças repressivas, impelir o campo para a luta política, incentivar o camponês à luta de classes”. O fundamental, porém, é criar uma situação revolucionária geral, que chegasse à derrota dos “traidores que ocupam o poder” e à tomada desse poder. O alvo central: “o aprofundamento da luta pela formação da frente-única antiditadura”.
Esta é a exposição que eu pretendia fazer tratando do último período de Carlos Marighella e acreditando que ele tinha razão concreta — e os fatos assinalaram isso — na sua análise do quadro histórico. Não obstante previsse transformações nas forças populares e nos partidos de esquerda que não ocorreram. Tomo aqui, como centro de reflexão teórica e prática, a ditadura militar. Embora vitimados depois de amplas manifestações políticas antiviolência e pró-democracia, os chefes militares conseguiram conceber e tutelar a pior conciliação da história do Brasil.
A vitória na derrubada da ditadura militar esteve ligada à mobilização de forças populares. Mas recebeu o impacto retroativo de lideranças políticas oportunistas e conciliadoras, empenhadas na preservação da ordem. Primeiro foi Tancredo Neves, depois Sarney tornou-se presidente. Quando Ulysses Guimarães foi retratado como herói, poucos se deram conta de que a queda da ditadura se processara pelas mobilizações populares. Duzentos mil aqui, oitocentos mil lá, um milhão acolá, muitos milhares de pessoas em qualquer parte do Brasil. Quer dizer, é o movimento popular que irrompe de maneira correta e, ao mesmo tempo, evidencia que os revolucionários brasileiros subestimaram a luta central e decisiva.
Agora, há um ponto nessa discussão que se volta mais à militância do que à analise concreta. O que era análise, volta-se para a prática, não cingindo-se abstratamente às explicações do processo em sua totalidade. Mas ficou faltando uma discussão das condições gerais existentes no Brasil para que, naquele momento, se tornasse possível reunir os elementos necessários à criação da guerrilha.
Que o campo era acessível à revolução, Gregório Bezerra destaca em seu livro de memórias, nas incursões que fez, sozinho, com o intuito de organizar os camponeses. Bezerra observou que levantar o homem do campo é a mesma coisa que jogar gasolina e atear fogo num paiol. Quer dizer, possibilidade havia, mas fundir reivindicações e movimentos encontrava uma dificuldade prática quase insuperável. De outro lado, a questão para os revolucionários deveria ser “o a partir dali”. Existe um partido apto para chegar à mobilização popular coordenada e criar um exército do povo? Sozinha, a guerrilha não é um fator capaz de produzir e vencer uma revolução. Tem um papel muito importante se há um partido e se esse partido possui um exército organizado, e se esse exército pode usar a guerrilha como seu braço móvel.
Todas as qualidades que Marighella atribui à guerrilha foram provadas em outras experiências históricas. Mas, como dar vida à guerrilha num país com a extensão territorial do Brasil, com a dispersão dos trabalhadores e a concentração de poder e riqueza, sem condená-la a um fim trágico? A guerrilha é a filha mais nova do partido. Ele precisa chegar ao povo, ao exército, para, depois, atingir a plenitude de sua atuação revolucionária. É claro que a situação cubana foi diferente. Mas depois, a experiência não deu certo em, praticamente, lugar nenhum. Por quê? Porque nós, como outros povos da América Latina, não possuíamos uma situação revolucionária preexistente. Examino isso no livro Da guerrilha ao socialismo: a Revolução cubana(4). Cuba estava presa à revolução e à guerrilha para sobreviver. Ela foi a origem do exército rebelde. Quer dizer, se a guerrilha não nasce do exército, ela é o ponto de partida da própria existência do exército popular. E foi o exército rebelde que, afinal de contas, garantiu o aproveitamento da situação revolucionária existente no campo e na cidade. Foi ele que deu ao governo revolucionário cubano a possibilidade de promover uma aliança inicial com a burguesia, para depois expulsá-la do governo revolucionário. E permitiu enfrentar as tentativas de invasão e ocupação norteamericanas. A guerrilha sempre teve papel em tudo isso. Mas, mesmo em Cuba, o processo não ficou só na guerrilha. Foi uma imensa massa popular, de todo o país, que queria a revolução, a reforma agrária radical, antiburguesa e antiimperialista, e que queria outras coisas, afinal conquistadas, atualmente correndo sério perigo.
Por fim, uma pergunta dura, que não gosto de fazer, mas que é imperativa quando se parte de um ponto de vista socioeconômico para analisar o pensamento de Marighella. Não estou defendendo o marxismo na forma clássica com que eu me identifiquei, mas apenas tentando responder à situação brasileira. A quem servia a guerrilha no Brasil, no momento em que é criada? Que parte da sociedade brasileira tinha maior interesse nela? É claro, quem precisava da guerrilha era o povo! Para mudar a natureza do PCB, engendrar uma nova ordem revolucionária e transformar a mobilização popular em exército do povo. Tudo isso Marighella discute e é verdade. Mas, tendo-se em vista os estratos sociais no poder, a quem interessava mais a guerrilha? Exatamente à ditadura militar, porque graças a ela — que, afinal, não conseguiu ameaçar o regime — foi possível estender e aprofundar a repressão, intensificar a opressão e criar no Brasil uma situação catastrófica, o que se concretizou após a edição do AI-5 e a posse da Junta Militar. Isso mostra claramente porque a guerrilha foi necessária. Se ela não aparecesse pela esquerda, teria de ser criada pela direita, precisamente para que fossem manejados a repressão, opressão, destruição e o massacre em massa de todos os dissidentes capazes de ir à luta pela derrubada daquele regime odioso.
Termino esta exposição prestando de novo, como fiz em São Paulo, minha homenagem a Carlos Marighella, e pedindo a todos que saudemos esse companheiro, precursor do socialismo moderno no Brasil, com uma forte salva de palmas, que demonstre nossa alegria e reconhecimento de sua capacidade intuitiva e da sua coragem em chegar tão longe quanto foi em desafios cruciais para um comunista revolucionário.
Notas de rodapé:
(1) FERNANDES, F. A Natureza do Comunismo. Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da era atual. São Paulo: Hucitec, 1994. (retornar ao texto)
(2) FERNANDES, F. Poder e contra-poder na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. (retornar ao texto)
(3) Nos marcos da violência. In:. A ditadura em questão. São Paulo: T. A Queiroz Editor, 1982. (retornar ao texto)
(4) Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana. São Paulo: T. A Queiroz Editor, 1979. (retornar ao texto)