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Fonte: Revista Fevereiro nº 9, abril/2016 - https://www.revistafevereiro.com/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
A situação política brasileira deu origem, no último ano, a uma discussão bastante rica no interior da esquerda, na forma de debates públicos, de intervenções na mídia audiovisual e de artigos de jornal. Essa discussão, cujos agentes eram, quase todos, intelectuais de esquerda, ou homens e mulheres políticos de esquerda, já entrava no tema da crise recente envolvendo a ameaça ao mandato da presidente da República; mas ela tinha também um sentido mais geral, na medida em que girava em torno de questões como a do caráter dos partidos brasileiros e das perspectivas da esquerda. Deixarei de lado, aqui, a problemática imediata em torno da ameaça ao mandato da figura principal do executivo do país, para me debruçar sobre temas menos imediatos e mais gerais. Na realidade, qualquer que seja a sua gravidade, os acontecimentos mais recentes não eliminam o interesse de um enfoque mais mediato e geral.
A situação do país era - ou devia ser - a ocasião para que a esquerda brasileira repensasse algumas questões fundamentais. Ouviu-se alguma coisa a esse respeito nos debates, mas creio que não muito; e mesmo aquém das grandes questões de longo prazo, ou mais teóricas - apesar da qualidade não desprezível do debate -, creio que muitos pontos importantes ficaram de lado ou foram desenvolvidos de forma insatisfatória. Se é difícil fazer um diagnóstico geral sobre as discussões, eu diria que as dificuldades e omissões, pelo menos em parte, advinham de uma atitude um pouco ambígua diante da teoria que foi hegemônica no período anterior, o marxismo, lido numa certa versão. Por um lado, constata-se - ainda que não em todos os casos - uma dependência excessiva em relação a essa teoria. Porém, mais precisamente, havia uma certa ambiguidade em relação a ela. Em um plano mais teórico ou no que se refere aos objetivos de longo prazo, constatava-se uma atitude de crítica mais ou menos implícita, mais ou menos explícita, dos fundamentos da teoria hegemônica (ou pelo menos um certo distanciamento em relação a ela), porém ao mesmo tempo, tudo se passava como se, nas análises sobre problemas e perspectivas mais imediatos, não se tirassem todas as consequências daquela postura crítica. Houve, frequentemente, uma espécie de desequilíbrio entre um plano e outro. Não mais se acreditava na política do “comunismo“ (mesmo o não stalinista), e entretanto continuava-se a pensar os objetos e problemas imediatos a partir de um ponto de vista em que o peso da teoria hegemônica era evidente. Nesse sentido, creio que seria necessário intervir nos dois planos. Dizer alguma coisa sobre quais seriam ou deveriam ser os nossos objetivos a longo prazo, mas, também, num segundo momento, discutir questões de alcance mais imediato. Eu me restringiria a alguns pontos cuja omissão ou insuficiência são especialmente gritantes.(1)
Esse tema pode parecer secundário, principalmente para os espíritos pragmáticos, que, aliás, nos últimos tempos, têm tido um peso considerável na esquerda internacional. Mas essa suposição é ilusória. Não há nada que prejudique mais a esquerda do que a confusão, a obscuridade e o engano a propósito dos seus fins (fins imediatos, mas também, e not least, fins “últimos” ou mediatos). Deve-se dizer que com a crise das sociedades burocrático-totalitárias - crise que, tudo somado, foi certamente um acontecimento auspicioso para o futuro das esquerdas -, criou-se uma espécie de vazio. Este é ou simples efeito de uma omissão mais ou menos voluntária (deixa-se de pensar nos fins ou porque se supõe que eles seriam evidentes, ou porque se acredita que a reflexão sobre eles não teria importância), ou é o resultado de um preenchimento defeituoso, porque operado através de um combinado de ideias ecléticas, pouco ou mal articuladas. Com isso, não quero dizer que, no período anterior, a perspectiva tivesse sido mais clara e mais legítima... Muito pelo contrário. Com exceção de uma pequena minoria, a esquerda enxergava nos governos burocrático-totalitários verdadeiros poderes de esquerda, formas políticas “socialistas” ou de “transição para o socialismo”... Hoje, esse engano parece que caiu, se é que caiu de fato. Mas no lugar dessa ilusão - mesmo se a desmistificação desta foi um grande progresso -, veio uma confusão generalizada. Ora, qualquer luta de esquerda, no Brasil ou fora dele, precisa ter presente os seus objetivos, imediatos e mediatos, sem o que, mais tarde ou mais cedo, efeitos negativos se farão sentir. Claro que não posso me estender muito, aqui, a esse respeito. Mas gostaria de formular esquematicamente algumas teses. Algumas delas talvez pareçam óbvias, outras parecerão, pelo contrário, escandalosas ou inadmissíveis. Como a teoria de referência no período anterior era o marxismo (ou um certo marxismo), essas teses tomam frequentemente o caráter de formulações críticas em relação àquela teoria hegemônica.
Em nosso horizonte - claro que se considerarmos o conjunto do projeto, trata-se de um objetivo, por ora, bem distante e que poderá parecer utópico - deve estar uma certo tipo de sociedade, com certas características, tanto no plano econômico (a) como no plano político (b), pelo menos.
(a) A meu ver, o objetivo último de uma luta da esquerda - no Brasil ou fora dele - não pode ser o comunismo, como era para a maioria, no período anterior, o que pode parecer óbvio ou, como dizem os franceses: “ce qui va sans dire” (o que vai sem dizer, o que não é preciso dizer). Só que os franceses costumam acrescentar, e eu também acrescento aqui: “mais va encore mieux en disant” (“mas vai melhor ainda dizendo”). Porém, se o objetivo último não é e nem pode ser o comunismo - uma sociedade transparente e absolutamente igualitária é não só um sonho irrealizável mas um sonho perigoso -, há razões para continuar afirmando que o nosso objetivo último é a “erradicação do capitalismo”. Porém, é preciso explicar o que entendo por isso. O fim do capitalismo não representaria o fim do Estado - há muitas razões para justificar a necessidade de uma sobrevivência do Estado, mesmo se a crítica do Estado é central e urgente -, assim como ele não significaria também o desaparecimento de toda propriedade privada (nesse plano, a resposta da teoria hegemônica era mais ou menos ambígua) ou mesmo de todo intercâmbio de mercadorias. Eu diria mais. Mesmo a existência de “algum” capital é pensável e admissível: a sobrevivência de “algum” capital, ao contrário do que as aparências sugerem, não implica necessariamente em capitalismo. O capitalismo exige pleno desenvolvimento do capital, para existir enquanto tal. O que se deve tomar como objetivo último não é o fim de todo capital, mas a neutralização extensiva e intensiva do capital. Isto é, o exigível é que, por um lado, o capital não possa entrar em determinados domínios, e, por outro, que a sua força seja controlada por mecanismos que a limitem, mecanismo que podem vir tanto do Estado como da sociedade civil. Ver mais detalhes, a esse respeito, na última parte deste texto.
(b) O objetivo - e aqui também nos separamos da teoria hegemônica - é uma sociedade democrática. Não posso entrar em detalhes sobre como se deveria pensar essa democracia. Mas digamos, em grandes linhas: 1) pelo fato de se supor o fim do capitalismo enquanto capitalismo, essa democracia não teria a ambiguidade e a “impureza” das democracias de hoje (da que existe no Brasil, ou das que existem fora dele); 2) mas o ideal democrático não deveria implicar no desaparecimento da democracia representativa, como se ouve, hoje, frequentemente, da boca deste ou daquele teórico ou político, em geral de extrema esquerda. Resumo os meus argumentos em favor da representação: I) o fim de toda representação (não me refiro à incorporação possível e necessária de diferentes formas de participação direta) é muito problemático, mesmo pensando no uso possível de instrumentos eletrônicos; II) uma intervenção direta é não só difícil, mas em forma muito ampla pode ser indesejável, e isso por dois motivos principais: primeiramente, se o caráter democrático de uma manifestação direta pode parecer, e em muitos casos é, efetivamente, superior à manifestação indireta, ela tem também os seus inconvenientes. Ainda que tenha sido feito um mau uso do argumento, é um fato que, em muitos casos, plebiscitos e referendos podem levar à aprovação de medidas muito demagógicas, ou simplesmente reacionárias, as quais seriam melhor neutralizadas se tivesse havido mediação representativa (exemplo: na França, um plebiscito sobre a pena de morte, ou a cassação da nacionalidade para determinados crimes daria provavelmente um resultado favorável a uma e outra medida). Em segundo lugar, a representação tem uma vantagem, que me parece evidente, de que se falou pouco. Se a representação vier ligada com a proibição estrita da acumulação de cargos, não só no espaço como também no tempo (sem falar no recall), ela evitaria a sobrecarga que representa certamente a atividade política para um número muito grande, senão majoritário, de cidadãos. A verdade dessa afirmação fica evidente quando acompanhamos o processo de formação de novos grupos políticos (de esquerda).
O tempo disponível para a atividade política é quase sempre um problema: dada a multiplicidade dos nossos interesses e obrigações, é frequentemente difícil assumir compromissos políticos que se estendam por um tempo muito longo ou mais ou menos ilimitado. A contrario, muita gente não só aceita participar, mas se dispõe a assumir responsabilidades maiores, desde que a duração do trabalho seja limitada e delimitada (em anos, ou em porções do tempo diário ou semanal). - Uma democracia de tipo representativo, mas em que se combinem formas de participação direta, e na qual se delimitem rigorosamente, no espaço e no tempo, as possibilidades de acumulação de cargos, deve ser o nosso objetivo. Sob esse aspecto - não quanto à democracia sem capitalismo; isto, por ora, fica no horizonte - trata-se de um projeto pensável também para o curto prazo.
Mas, para além da questão dos objetivos “últimos“ ou mediatos, houve outros pontos obscuros ou com desenvolvimento muito discutível nos pronunciamentos e intervenções referidos.
No que se refere às questões mais imediatas, há, a meu ver, dois pontos particularmente frágeis, que gostaria de destacar. Um é o da corrupção. O outro, o do papel das classes médias.
É impressionante a insuficiência, no que se refere a esse ponto, de pelo menos uma boa parte das intervenções de esquerda, que ocorreram no período recente. O limite último do engano foi a opinião dos que dizem que o problema não existe, ou mais simplesmente dos que afirmam que onde existe capitalismo existe corrupção, e portanto não cabe fazer nada. Às vezes foi-se até acrescentar que a crítica da corrupção vinha de uma ilusão neocolonialista: a base dessa crítica teria sido uma comparação entre a Europa e o Brasil, comprometida pela suposição errônea de que na Europa não existiria corrupção, fenômeno nacional. Houve até quem culpasse certos clássicos da literatura política e econômica brasileira por terem veiculado esse tipo de ilusão.
Para além dessa denegação simplista, nos melhores casos falou-se sim da corrupção, mas ela apareceu frequentemente como um fenômeno adjetivo, a referência clássica paradigmática sendo então, não por acaso, Marx, e, em particular, certos textos sobre “máfias” políticas do Dezoito Brumário de Luís Napoleão. Ora, nada disso se sustenta. O problema de saber se há mais ou menos corrupção na Europa do que no Brasil pode ter algum interesse, mas ele não é essencial (o que não quer dizer que toda comparação entre o Brasil e a Europa não tenha interesse). Aliás, a corrupção existe aqui e lá, embora em formas diferentes. O essencial é que, maior ou menor, ela representa sempre um problema. Quanto à ideia de que na Europa o que não há é apenas a “pequena“ corrupção, que isto seja verdade ou não, deve-se dizer que a chamada “pequena“ corrupção tem também efeitos muito negativos, e pode ser tão prejudicial a um país quanto a “grande”. Mas o nosso argumento crítico decisivo é o de que, na medida em que temos um projeto democrático (e não comunista ou equivalente), a luta contra a corrupção passa a ser substantiva. Ela não é mais uma peripécia no caminho da grande revolução. Alias poder-se-ia dizer que a leniência em relação à corrupção por parte dos políticos ligados ao PC é, entre outras coisas, sem dúvida, uma espécie de herança da política revolucionária. A ideia de uma justificação dos meios por meio dos fins continua presente, só que agora os meios não são mais a violência. Esta foi substituída pela corrupção, o que significa que o princípio de base continua sendo o mesmo, com os resultados que conhecemos.
Esse tema está muito ligado ao anterior, e de novo tem a ver, em parte, com o peso que continua tendo a teoria hegemônica. Se é verdade que os sonhos revolucionários foram - pelo menos parcialmente - abandonados, restou, um pouco contraditoriamente, uma concepção de política em que se privilegiam de forma mais ou menos excessiva as classes mais populares e supostamente mais revolucionárias: operários e camponeses. De qualquer modo, a classe média só aparece como classe intermediária, politicamente incerta e fundamentalmente suspeita. Em primeiro lugar, poder-se-ia observar, a esse respeito, que, mesmo do ponto de vista clássico, pelo menos dentro da tradição marxista - aqui, excepcionalmente, a tradição talvez seja mais realista do que o original -, valorizou-se bastante o papel que poderiam ter as classes médias e a importância em contar com o apoio delas. Pelo menos a ideia de que ganhar o apoio das classes médias (que, caso contrário, seriam manipuladas pela direita) era um objetivo político de magnitude considerável. Ora, o que se ouve em muitos meios da esquerda brasileira - principalmente na extrema esquerda, mas não só - é que a classe média está a serviço da reação, que ela tem quase que substancialmente uma tendência a apoiar os projetos reacionário e até conspiratórios da direita. Ora, se é evidente que uma parte da classe média vai nessa direção, trata-se só de uma parte. Existe um amplo setor da classe média (ao qual, é bom não esquecer, nós pertencemos) que não vai, de forma alguma, nessa direção. Pelo contrário, esse último setor, que não é pequeno, apoia os movimentos progressistas, tem sensibilidade ecológica, e é a favor do que há de mais avançado em matéria de problemas “de sociedade” etc. A acrescentar que ele é bem menos sensível às sereias do populismo do que as classes populares, o que não quer dizer que o apoio das últimas não venha a ser, em seu momento, decisivo. Enfim, é urgente rever a atitude que toma tradicionalmente certa esquerda diante das classes médias. Há que abandonar certa doxa “marxista” que não descreve com objetividade a situação, e que, por isso mesmo, só prepara derrotas. Um dos aspectos dessa demonização das classes médias está precisamente na acusação de “moralismo” que a elas se faz, frequentemente. Sem dúvida, há um moralismo da direita, ao qual uma parte da classe média é sensível. Mas a exigência de moralidade na “coisa pública”, afirmada por muita gente de classe média que não tem nenhuma simpatia pela direita, é perfeitamente justificável. Diria mais: a base pretensamente “moralista” vê mais longe do que políticos e intelectuais que se apressam a lhes dar lições de realismo político ou de revolucionarismo.
As dificuldades da esquerda brasileira são de várias ordens, mas elas se exprimem imediatamente - a questão aflorou nas discussões - em termos de problemas de organização. Por outro lado - um ponto fundamental que raramente apareceu - necessitamos, senão de um programa completo, pelo menos da indicação de algumas medidas de governo favoráveis aos mais pobres e mais explorados, que poderiam ser decididas a curto prazo. Como anteriormente, tentarei desenvolver alguns pontos que ficaram mais ou menos omissos nos pronunciamentos públicos recentes.
Como e onde atuar ? Infelizmente, não temos muitas opções. Além de alguns partidos de extrema-esquerda, de pouco peso, e, em alguns casos, até mesmo de orientação confessadamente stalinista, restam o PT, o PSOL, além dos verdes. Os verdes se apresentaram como uma alternativa, mas no estado atual (refiro-me aos verdes, no Brasil), pecam por uma linha econômica muito liberal, e por posições muito pouco avançada no que toca aos problemas “de sociedade” (aborto, por exemplo). O PT, como se sabe, está em plena crise, e como que esgotou o seu ciclo, embora não se deva supor que ele esteja morto. Mas, em termos de organização, precisamos de alguma coisa que, mesmo se modesta, deve ser diferente. Restaria o PSOL. Esse partido tem o mérito de ter denunciado a deriva populista-burocrática do PT, e de não o ter poupado no que se refere às questões de corrupção. Mas, se o PSOL mostrou algumas qualidades, ele tem muitos defeitos. No essencial, a sua insuficiência reside no fato de que se trata de um partido com uma ideologia marcada pelo neoleninismo, embora as opiniões de seus militantes sejam provavelmente variáveis. Porém, salvo erro, há uma tendência geral entre os membros e simpatizantes do partido, no sentido de apoiar (ainda que de modo mais ou menos “crítico”) governos autoritários do tipo do atual governo cubano. E, no plano nacional, a direção do partido não mostra preocupação com os rumos populistas de tal ou tal “movimento social”. Ora, não é bem disso que necessita a esquerda brasileira. Considerando tudo o que houve e ainda há de negativo no PT, pode-se dizer que nem esse partido nem o PSOL satisfazem às nossas reais necessidades. Em termos organizatórios, seria preciso tentar formar, de imediato, uma frente composta de militantes e intelectuais que estão descontentes com essas organizações. Muitos deles, principalmente no caso do PT, estão de saída do partido. Essa reunião de forças seria um primeiro passo no sentido de organizar a esquerda em torno de um programa crítico e independente. Se esse passo permitirá fundar um novo partido, ainda que pequeno - o problema do PSOL, por exemplo, não é o de que seja um partido pequeno, como pretenderam alguns, o problema dele é outro - só o futuro o dirá.
No que se refere a medidas que poderiam ser propostas imediatamente, salta aos olhos - embora quase não se fale disso na esquerda, e menos ainda na direita - o problema da progressividade muito imperfeita e injusta da legislação fiscal brasileira. Compare-se o que pagam no Brasil e o que pagam na Europa os mais ricos (quando pagam...) - aqui a comparação se impõe - e ver-se-á que a diferença é brutal. Basta dizer que no Brasil há uma alíquota máxima, de 27,5%, que é paga por todos os contribuintes que ultrapassam um nível relativamente moderado de ganhos. Isto é, quem tiver rendimentos um pouco superiores a esse nível pagará o mesmo que um contribuinte possuidor de uma grande fortuna (e isto se fizermos abstração das possibilidades muito superiores de sonegação de que dispõe este último...). Não se diga que uma alteração nesse plano teria efeitos negativos para os investimento. Não sou especialista, mas nada me faz crer que o aumento desse imposto implicaria na redução de gastos produtivos. Na mesma linha de pensamento, haveria que gravar a transmissão de bens imóveis em níveis comparáveis aos vigentes na maioria dos países avançados. Também aqui, se se fizer a comparação, ver-se-á que a diferença é brutal.
Entretanto, nenhuma reforma poderia funcionar sem uma reforma do Estado. Esta significa, por um lado, reforma dos processos eleitorais, de maneira a permitir uma redução dos gastos de campanha e uma menor intervenção dos poderes econômicos no processo político. Por outro lado, indica reformas internas. De um modo geral, e voltando ao tema anterior, é impossível fazer projetos econômicos em que se dá ao Estado um papel importante, sem que se garanta a honestidade das práticas dos agentes do Estado. Desse ponto de vista, a honestidade administrativa é bem mais importante para a esquerda do que para a direita. Por exemplo, se há desvios de verba na Petrobrás, toda campanha contra eventuais projetos de privatização fica comprometida. Mas, além disso, e de um modo que poderia parecer paradoxal, se é desejável uma maior intervenção do Estado na ordem econômica, impõe-se ao mesmo tempo certo tipo de política que dê um poder maior à sociedade civil, limitando tanto o poder econômico quanto o do Estado. Por exemplo, a que promove o reforço da representação de usuários e/ou de funcionários, em instituições privadas, públicas ou semipúblicas; mas também a que facilita o desenvolvimento do setor - existente na economia brasileira, embora com peso relativamente pequeno - da chamada economia solidária, o das empresas apropriadas e geridas em forma coletiva. Essas políticas de “intervenção da sociedade civil” não são incompatíveis com a exigência de que o Estado tenha um papel maior na ordem econômica. Se a propriedade estatal ou, talvez, melhor, do “poder político-civil” sobre as indústrias básicas e as empresas de serviços públicos, limita o poder do capital, tanto em sentido extensivo quanto em sentido extensivo, a representação civil e as cooperativas erigem barreiras à expansão ilimitada, intensiva ou extensiva, tanto do capital quanto do Estado.
Estas são algumas ideias sobre o que me parece ter mais faltado às principais discussões e pronunciamentos de esquerda que tiveram lugar nos últimos doze meses.
Notas de rodapé:
(1) Uma parte desses problemas foram desenvolvidos num artigo que meu amigo Cicero Araújo e eu preparamos - “Sombras e luzes à esquerda“ -, artigo que deve sair proximamente em um volume, de que participam também outros autores. Esforcei-me por reduzir as repetições. (retornar ao texto)