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Pela quarta vez desde 1 de Novembro de 1954, a França encontra-se sem governo.
Depois das equipes Edgar Faure, Guy Mollet, Bourgés Maunoury e da última em data dita de união nacional, de Félix Gaillard, eis uma nova crise, que uns e outros concordam em considerar extremamente grave.
E, certamente, ninguém poderia ignorar hoje que a guerra da Argélia está na origem desta instabilidade governamental em França. Todavia, é preciso tentar apreender o desenvolvimento interno do processo responsável por este desequilíbrio. É preciso aclarar o trabalho de deterioração e de desagregação do prestígio francês que se processa dentro e fora da França a propósito destas guerras coloniais.
A análise da situação deve permitir-nos apreciar, medir essa fatalidade interna que mina a França e que a conduz quase mecanicamente a multiplicar as crises, a fechar-se numa atmosfera de crise.
Dizer que a guerra da Argélia esgota as finanças e desequilibra a economia da França é, evidentemente, enunciar uma verdade. Mas seria um erro privilegiar esta verdade. Apercebemo-nos disso por ocasião dos debates na Assembleia Nacional Francesa sobre o custo das operações na Argélia. Enquanto os peritos internacionais, na ocorrência os que episodicamente emprestam as suas bóias à economia francesa, cifravam as despesas em 800.000 milhões, Lacoste afirmava sem humor que com a guerra da Argélia não se gastava nada.
Os partidos franceses de esquerda, prisioneiros de um simplismo doutrinal que defende que a direita entra em negociações mal é convidada a participar nas despesas, instalaram-se numa atitude resignada e não são mais do que a esperança do dia em que essa direita, postos em perigo os seus interesses, abandone o seu chauvinismo e vote todas as independências coloniais que se quiser.
Várias vezes assinalamos esta mecanização do pensamento e o aparecimento deste feiticismo das causas tomado no sentido mais automático, menos dialético.
Essa fraqueza ideológica de uma grande parte das formações políticas francesas torna mais claro o conflito que existe no corpo político francês desde 1 de Novembro de 1954. O Partido Radical, pulverizado desde o histórico congresso de Lyon, o Partido Socialista, no seio do qual surgem as tendências mais heterogéneas, o MRP, que acaba de revelar as suas contradições na recente recusa de caucionar a tentativa de Bidault, até ao PCF, cuja estrutura monolítica não preservou divergências e oposições quanto ao tema da guerra da Argélia, cada um destes partidos, segundo o seu estilo próprio, manifesta a incoerência das posições, a violência dos conflitos, o desacordo fundamental.
O pior erro seria, aliás, isolar esta desestruturação da vida política francesa do contexto europeu e internacional.
As nações europeias, sobretudo a Itália, a Inglaterra e a Alemanha Ocidental, por razões de competição económica na Europa ou de escoadouros a preservar em África, sentiram a necessidade de manifestar uma hostilidade implícita às guerras coloniais sustentadas pela França.
Para dar um exemplo, o povo italiano, que durante muito tempo manteve silêncio face ao apoio do seu governo à guerra colonial francesa, alertado pelas formações democráticas italianas, pôs-se em movimento há já alguns meses e exige de maneira peremptória o não comprometimento do Governo Italiano ao lado do colonialismo francês.
Na Alemanha Ocidental está agora estabelecido que nenhum jornal alemão tentará defender a política francesa. Os representantes franceses na Alemanha têm ocasião de verificar várias vezes por dia que o conjunto do povo alemão condena o colonialismo francês e dá a sua simpatia ao glorioso povo argelino.
Em Inglaterra, os conservadores, solidários durante muito tempo dos colonialistas franceses, iniciaram desde há alguns meses a viragem e os seus órgãos de imprensa já não dissimulam as suas posições acerca da necessidade de negociações com o povo argelino.
Esta mudança de orientação das democracias ocidentais é consequência, por um lado, de uma certa corrente anticolonialista e liberal, mas sobretudo, de nada serve escondê-lo, do desejo de ver uma França reduzida à sua dimensão europeia, amputada das suas colónias, privada dos regimes preferenciais instaurados pelo Pacto Colonial e por fim confinada ao plano da livre concorrência com as outras economias nacionais europeias. Nesta segunda perspectiva tende-se a substituir a fórmula “África, reserva de caça da França” por esta outra: “África, reserva de caça da Europa”.
Os Estados Unidos da América, perante o mundo comunista, desenvolvem uma política africana que nos seus fundamentos vai ao encontro das novas posições europeias. Os democratas americanos, quando expõem as suas posições acerca da descolonização da África, insistem sempre na necessidade de os Estados Unidos não partilharem a perspectiva colonialista francesa.
O tema dominante da sua argumentação é claro: a França está em vias de comprometer as possibilidades do Ocidente e do “homem branco” em África.
Todavia, dois outros elementos condicionam a progressiva modificação da atitude americana. E em primeiro lugar a certeza aguda além-atlântica de que chegou a hora de escolher, de apoiar a luta de independência dos povos coloniais, de contribuir para a desagregação dos impérios, de apoiar a libertação dos povos oprimidos. Além disso, perante o “perigo comunista”, no âmbito da guerra fria e da partilha do Mundo em esferas de influência, os Estados Unidos estão cada vez mais conscientes da urgência de posições radicalmente opostas ao colonialismo francês.
No plano internacional, vale a pena insistir no imenso entusiasmo provocado nos países afro-asiáticos pela epopeia que o povo argelino está a viver desde há quase quatro anos.
Bandung, o Cairo, Accra, todos os povos afro-asiáticos, todos os oprimidos de ontem, apoiam, defendem e assumem cada vez mais a causa da Revolução Argelina; não é de modo nenhum exagerado dizer que cada vez mais a França terá contra si, na Argélia, dois continentes.
É por não terem analisado estes múltiplos fatores, estas contradições dialéticas, que os partidos políticos franceses se encontram o mais das vezes numa situação de indeterminação, de exacerbação passional sem fio condutor, de inquietação, situação que não deixa de evocar comportamentos de autodestruição.
Em França, a recusa de uma opção política coerente em relação à Argélia não diz respeito unicamente aos grupos políticos.
No seio de cada partido podemos distinguir hoje um centro, uma direita e uma esquerda. Ao nível das massas populares ou de corpos particulares como a Igreja, somos tocados por um ambiente de mal-estar, de amargura e desespero. Não há uma associação, não há um grupo de homem ou de mulheres, que nào seja atingido e afetado pelo desenvolvimento da guerra da Argélia: cisão das associações de estudantes, cisão dos docentes, perturbação no exército, apelo à ordem dos cardeais, mal-estar na polícia. Todos estes fenómenos, pelo seu número e gravidade, indicam a confusão que reina na vida moral e política da França.
A vontade de libertação do povo argelino contesta, sem dúvida, a ficção da Argélia francesa. Mas é também um certo tipo de comportamento, um estilo de contacto intelectual que se encontra condenado de parte a parte. O combate do povo argelino é uma crítica radical do pseudodireito de propriedade: a nossa África negra, a nossa Argélia... e, ao mesmo tempo, uma intimação ao povo francês a criticar-se, a desembaraçar-se da mentalidade colonialista, antidemocrática e racista, em resumo, a viver e ultrapassar contradições historicamente elaboradas.
Ora, a desorientação que reina atualmente na vida moral e política francesa a seria incompreensível se a não articulássemos diretamente com as realidades internacionais e com a luta do povo argelino.
As críticas decisivas e implacáveis do senador Kennedy, as tomadas de posição profundamente anticolonialistas dos trabalhadores ingleses e, de uma maneira mais geral, a recente tomada de posição dos serviços oficiais americanos traduzem dois fenómenos. Temos, em primeiro lugar, que o processo histórico e geral de libertação dos povos coloniais é reconhecido, identificado e aceite, e também a certeza, ganha a partir da análise, de que o povo argelino pôs todas as suas forças na luta, e verdadeiramente não se vê como poderia a França não reconhecer a independência da Argélia.
Foi a luta do povo argelino que pôs em marcha esta transformação da vida política francesa. Foi ao contacto desta vontade nacional, desta violência na reivindicação, que se remodelaram as perspectivas políticas francesas.
Pressões europeias, porque apesar de tudo, se a África está perdida para a França, não o deve estar para a Europa. Pressões internacionais, porque a hidra comunista ameaça instalar-se em África se o conjunto do Ocidente se mantiver neste silêncio cúmplice perante o belicismo francês. Pressões do povo argelino, o elemento mais ativo nesta dialética e também o mais verdadeiro. Estas três ordens de fatores cercam a realidade nacional francesa e induzem, suscitam e desmascaram as contradições constitutivas de um país colonialista e racista de exigências doutrinais paradoxalmente democráticas.
E não é verdade que esta confrontação possa deter-se magicamente. Não é verdade que a América ou a Itália possam ser encostadas à parede. Não é verdade que Pineau possa, se o pedir, obter o apoio da OTAN. Não é verdade que, com um pouco de boa vontade, Mendès-France possa reconciliar-se com Morice ou André Philip, confraternizar com Mollet. Não é verdade que a escola do estado-maior de Bigeaud possa trazer algo de novo à guerra da Argélia. Todas estas impossibilidades são o negativo de uma realidade maior: a França está mergulhada numa atmosfera de crise cataclísmica e não sairá dela senão pela negociação com a FLN.
Notas de rodapé:
(1) El Moudjahid, n.º 23, de 5 de maio de 1958 (retornar ao texto)
Inclusão | 15/07/2018 |