O Estado e a centralização da produção

Luigi Fabbri

1922


Observação: Este texto faz parte do opúsculo «Anarchia e Comunismo “scientifico”» (em que Luigi Fabbri polemiza com Nicolai Bukharin em resposta a um panfleto deste publicado na Itália com o título «Anarchia e comunismo scientifico»), ed. LIBRERIA EDITRICE “TEMPI NUOVI”, Milão, 1922. Título original: «Lo Statto e l’accentramento della produzione».

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2019/01/30/o-estado-e-a-centralizacao-da-producao/

Tradução e revisão: Última Barricada

HTML: Fernando Araújo.


Os escritores comunistas — incluindo especialmente Bukharin — desde há algum tempo costumam atribuir aos anarquistas um erro que, pelo contrário, os anarquistas sempre refutaram e que foi até recentemente um erro exclusivo dos sociais-democratas da Segunda Internacional: o de fazer consistir todo o contraste entre marxismo e anarquismo no objetivo final da abolição ou não do Estado na futura sociedade socialista.

Os socialistas democráticos, que então se diziam «científicos», como agora os comunistas, afirmavam a necessidade do Estado em regime socialista, e com isso pretendiam ser marxistas. Até há pouco tempo, os escritores anarquistas foram os únicos, ou quase os únicos, a enfatizar essa falsificação do marxismo, da qual agora se quer torná-los corresponsáveis.

No Congresso internacional operário e socialista de Londres de 1896 — no qual foi deliberada a exclusão dos anarquistas (os únicos que então se diziam comunistas) dos congressos internacionais porque não aceitavam a conquista do poder como meio ou como fim — foi o próprio Errico Malatesta a recordar que, originalmente, o objetivo final dos anarquistas e socialistas era único, pela abolição do Estado, e que sobre isto os marxistas haviam abandonado as teorias de Marx.

Nos escritos dos anarquistas foi repetida uma infinidade de vezes a conhecida interpretação anárquica do socialismo que Karl Marx dava em 1872, durante uma das suas mais violentas polémicas com Bakunin:

«Todos os socialistas entendem por anarquia isto: alcançado o objetivo do movimento proletário, ou seja, a abolição das classes, o poder do Estado — que serve para manter a grande maioria produtora sob o jugo duma minoria exploradora pouco numerosa — desaparece e as funções do governo transformam-se em simples funções administrativas »(1).

Nós não aceitamos esta conceção marxista da anarquia, porque não acreditamos na morte natural ou fatal do Estado como consequência automática da abolição das classes. O Estado não é apenas um produto da divisão de classes, mas é ele próprio por sua vez gerador de privilégios e, portanto, produz novas divisões de classes. Marx estava errado ao considerar que, uma vez abolidas as classes, o Estado deveria morrer de morte natural, como por falta de alimento. O Estado não deixará de existir se não for destruído de deliberado propósito, do mesmo modo que não deixará de existir o capitalismo se não o matarmos pela expropriação. Deixando um Estado de pé, ele gerará em torno de si uma nova classe dirigente, se não tiver já preferido reconciliar-se com a antiga. Em suma, enquanto o Estado existir as divisões de classe não cessarão e as classes nunca estarão definitivamente abolidas.

Mas aqui não se trata de ver quanto haja de ilógico na ideia que Marx fazia do fim do Estado. O facto é que o marxismo concorda com o anarquismo em preconizar a morte do Estado com o comunismo; — simplesmente, segundo o marxismo, o Estado deve morrer de morte natural, enquanto que, segundo o anarquismo, ele não poderá morrer senão de morte violenta.

E isto, repetimos, os anarquistas enfatizavam uma infinidade de vezes nas suas polémicas com os social-democratas desde 1880 até hoje.

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Os comunistas autoritários, enquanto criticam com razão o conceito social-democrático (embora atribuindo-o erroneamente também aos anarquistas) de que a diferença essencial entre o socialismo e o anarquismo seria sobre o objetivo final da eliminação do Estado, caem por sua vez num erro semelhante e talvez mais grave.

Eles, e por eles Bukharin, argumentam que a «verdadeira diferença» entre anarquistas e comunistas de Estado consiste nisto: que «enquanto o ideal dos comunistas é a produção centralizada e metodicamente organizada em grandes empresas, o ideal dos anarquistas é constituído por pequenas comunas, as quais pela sua estrutura não são capazes de gerir nehuma grande empresa, mas fazem acordos entre si mediante uma rede de livres negociações».(2)

Seria interessante saber em que livro, opúsculo ou programa anarquista se encontra formulado semelhante «ideal», ou melhor, semelhante bagunça!

Seria necessário saber por que defeitos de estrutura, por exemplo, uma pequena Comuna não poderia gerir uma grande empresa, e por que razão esta teria que estar impedida de fazer livres negociações ou trocas, etc. Assim, os comunistas estatais imaginam que os anarquistas são por uma pequena produção descentralizada. Pequena, porquê?

Provavelmente, acredita-se que a descentralização das funções significa sempre e a todo o custo a fragmentação da produção, e que a produção em grande escala, a existência de vastas associações de produtores, é impossível sem a centralização da sua gestão num único gabinete central, de acordo com um único plano de direção. Isso sim é infantilismo! Os comunistas marxistas, especialmente os russos, estão hipnotizados à distância pela miragem da grande indústria do Ocidente e da América, e tomam por organismo de produção aquilo que é exclusivamente um meio de especulação tipicamente capitalista, um meio para exercer a exploração com maior segurança; e não se apercebem de que este tipo de centralização, longe de beneficiar as reais necessidades da produção, é pelo contrário precisamente aquilo que a limita, estorva e refreia de acordo com o interesse capitalista.

Quando os comunistas ditatoriais falam de «necessidades da produção» não distinguem as necessidades das quais depende a obtenção de maior quantidade e melhor qualidade de produtos — única coisa que interessa do ponto de vista social e comunista — das necessidades inerentes ao regime burguês, necessidade dos capitalistas de ganhar mais mesmo que isso signifique produzir menos. Se o capitalismo tende à centralização da sua gestão, não é de todo no interesse da produção, mas apenas no interesse de ganhar e acumular mais dinheiro — o que não raro encoraja os capitalistas a deixar enormes extensões de terras incultas, a parar certas produções e até a destruir produtos acabados!

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Apesar de todas estas considerações, a verdadeira questão do contraste entre comunistas autoritários e comunistas anarquistas não está aqui.

Os anarquistas não têm, acerca do melhor modo de gerir material e tecnicamente a produção, nenhum preconceito ou apriorismo absoluto, e remetem-se àquilo que a experiência no seio duma sociedade livre aconselhar e ao que as circunstâncias impuserem. O importante é que, seja qual for o tipo de produção adotado, o seja por livre vontade dos próprios produtores, e não seja possível a sua imposição nem qualquer forma de exploração do trabalho alheio. Dadas estas premissas fundamentais, a questão de como organizar a produção torna-se secundária. Tampouco os anarquistas excluem a priori qualquer solução prática; e admitem que possam também existir várias soluções diferentes e contemporâneas, em resultado dos experimentos a partir dos quais os trabalhadores poderão encontrar, com conhecimento de causa, a melhor via para produzir sempre mais e melhor.

Os anarquistas opõem-se energicamente ao espírito autoritário e centralizador dos partidos de governo e de todas as conceções políticas estatais, por natureza centralistas. Deste modo, concebem a vida social futura em bases federalistas, do indivíduo à corporação, à comuna, à região, à nação, à internacional, com base na solidariedade e no livre acordo. E é natural que este ideal também se reflita na organização da produção, fazendo preferir, na medida do possível, um tipo de organização descentralizada; mas não como uma regra absoluta a ser imposta em todos os lugares e em todos os casos. O próprio ordenamento libertário, de resto, tornaria impossível impor uma tal solução unilateral.

Os anarquistas certamente rejeitam a ideia utopista dos marxistas de uma produção organizada aprioristica e unilateralmente no modo centralizado, regulada por um gabinete central omnividente e infalível. Mas se não aceitam a absurda solução marxista, nem por isso caem no excesso oposto, no apriorismo unilateral das «pequenas comunas que só fazem uma produção pequena», a nós atribuída pelos escritores do comunismo «científico». Muito pelo contrário, desde 1890 Kropotkine tomava como ponto de partida «o estado atual das indústrias, onde tudo se entrelaça e se sustenta reciprocamente, onde cada ramo da produção se serve de todos os outros»; e tomava como exemplos de possíveis organizações comunistas anarquistas, com as devidas modificações, alguns dos mais vastos organismos nacionais e internacionais de produção e distribuição, de serviços públicos e de cultura.

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Os autoritários do comunismo, sectários e dogmáticos por conta própria, não são capazes de entender que outros sejam diferentes deles; por isso, atribuem-nos as suas próprias falhas.

Em linhas gerais cremos que, mesmo no terreno económico — embora a nossa hostilidade seja dirigida principalmente às suas manifestações políticas —, a centralização é a orientação menos útil e menos adequada às necessidades práticas da vida social. Mas isso de modo nenhum nos impede de reconhecer que possa haver determinados ramos da produção, certos serviços públicos, alguns escritórios administrativos, de câmbio, etc., em que também a centralização de funções seja necessária. Nesse caso, ninguém se oporá. O importante para os anarquistas é que não haja centralização de poder; isto é, que sob o pretexto de uma necessidade prática, não se chegue a impor pela força a todos um método desejado por poucos. Perigo que será eliminado se desde o princípio for abolida toda a autoridade governamental, todo o organismo policial que se possa impor com a força e com o monopólio da violência armada.

Ao erro dos neo-marxistas da centralização forçada e absoluta não opomos a descentralização pela força e em todas as coisas, de modo nenhum, o que seria um erro idêntico em direção oposta. Nós preferimos uma orientação descentralizadora; mas, em última instância, tratando-se dum problema prático e técnico, remetemos à livre experiência, sob guia da qual se decidirá de acordo com os casos e as circunstâncias no interesse comum, pelo aumento da produção e de modo que, dum ou doutro sistema, não possa mais resultar dominação ou exploração do homem sobre o homem.

Não devemos confundir a centralização política da força estatal nas mãos de poucos com a centralização da produção. Tanto assim que hoje a produção não é de todo centralizada no governo, pelo contrário, é independente deste e descentralizada entre os vários proprietários, industriais, empresas, companhias anónimas, companhias internacionais, etc.

A essência do Estado, segundo os anarquistas, não consiste portanto (como imaginam os comunistas autoritários) na centralização mecânica da produção — que é uma questão diferente, de que já falámos acima —, mas na centralização do poder, isto é, consiste sobretudo na autoridade coerciva da qual o Estado detém o monopólio, na organização da violência chamada «governo»; no despotismo hierárquico, jurídico, policial e militar que impõe a todos as suas leis, que defende os privilégios da classe proprietária e cria os seus próprios. Mas entenda-se que, se à centralização no governo — mais ou menos ditatorial que seja — de todos os poderes militares e políticos se adicionasse a centralização económica da produção, isto é, se o Estado fosse ao mesmo tempo carabineiro e patrão, e a oficina fosse também uma caserna, então a opressão estatal tornar-se-ia intolerável — e multiplicar-se-iam as razões para os anarquistas se lhe oporem.

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Infelizmente, esse é o resultado evidente da via tomada pelos comunistas autoritários. Nem eles próprios o negam.

De facto, o que querem fazer os comunistas na prática? O que começaram a fazer na Rússia? A ditadura estatal e militar mais centralizada, opressiva e violenta. E com isso, ao Estado ditatorial confiam ou tencionam confiar conjuntamente a gestão da riqueza social e da produção: o que exagera e torna hipertrófica a autoridade estatal, também em prejuízo da produção, e tem por consequência a constituição de uma nova classe ou casta privilegiada no lugar da antiga. Sobretudo em prejuízo da produção: não é demais insistir nisto; e a experiência russa tem demonstrado que não estamos equivocados, — pois se hoje a Rússia se debate com os terríveis apertos da fome, isso deve-se certamente ao infame bloqueio do capitalismo ocidental e à excecional seca do clima; mas contribuiram em boa parte os efeitos desorganizadores da centralização burocrática, política e militaresco-ditatorial.

Os comunistas autoritários dizem querer também eles alcançar a abolição do Estado: sabíamos desta posição desde os tempos de Marx e Engels. Mas a posição ou intenção não basta: é necessário agir em conformidade desde o início. Ao invés, os comunistas ditatoriais, com a direção que dão ao seu movimento e que querem imprimir à revolução, colocam-se precisamente na via oposta àquela que conduz à abolição do Estado e ao comunismo.

Eles vão diretamente para o «Estado forte e soberano» de social-democrática memória, e para uma mais arbitrária dominação de classe, sob a qual o proletariado de amanhã será obrigado a fazer uma nova revolução. Os comunistas que querem o comunismo a sério que meditem sobre este erro fatal que mina nas suas bases todo o edifício dos partidos comunistas autoritários, em vez de perder tempo a fantasiar sobre os erros imaginários dos anarquistas.

Os quais têm todo o direito de responder às críticas dos estatólatras do comunismo: Medico, cura te stesso!(*)


Notas de rodapé:

(1) Opere di Marx, Engels e Lassalle, editado pela «Avanti!», Milão. — Vol. II «L’Alleanza della Democrazia Socialista e l’Associazione Internazionale dei Lavoratori». — Pág. 13. (retornar ao texto)

(2) Esta e outras afirmações, que reproduzimos entre aspas ou em itálico, são palavras textuais de Bukharin no seu opúsculo. Ele de resto repete as mesmas coisas no escrito já citado L’A B C del Comunismo e num outro, Il programma dei Comunisti, editado pela «Avanti!» em 1920. (retornar ao texto)

Nota da tradução:

(*) (N.T.)”Médico, cura-te a ti mesmo!”. Provérbio da Bíblia (Lucas 4:23). (retornar ao texto)

Inclusão: 2802/2021