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Primeira Edição: Este texto é um capítulo do livro Ditadura e Revolução, publicado pela primeira vez em 1921 e ainda inétito em português. Tradução de Última Barricada a partir da versão em castelhano da Editorial Proyección (Buenos Aires) de 1967. As notas marcadas com * são de Última Barricada, as restantes do autor.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2018/12/23/o-medo-da-liberdade/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
A aberração dos que vêem a salvação da revolução na ditadura, depois de terem durante uma larga série de anos feito da causa do socialismo também uma causa de liberdade, não é distinta da aberração daqueles revolucionários que, ao estalar a última guerra(*), viram comprometidos de repente a liberdade e o socialismo, não tanto pela guerra em si como pela ameaça da vitória de uma das partes beligerantes.
Na realidade estes últimos estavam novamente ofuscados pela ilusão democrática depois de quase um século de experiências, e confiavam de novo à democracia burguesa uma missão salvadora. Os partidários da ditadura proletária caem num erro semelhante, crendo trazer-lhe um remédio ao substituir a mais ou menos mascarada ditadura burguesa pela dos representantes dos trabalhadores. E a nós, que afirmamos que se deve deixar a revolução desencadear-se com o máximo possível de liberdade, deixando o caminho aberto a todas as iniciativas populares, respondem-nos com uma quantidade de objeções que podem ser resumidas num único sentimento, que eles não são capazes de confessar nem sequer a si próprios: o medo da liberdade. Depois de terem exaltado o proletariado durante cinquenta anos, agora que ele está em vésperas de romper as suas correntes duvidam dele, reputam-no no íntimo do seu pensamento incapaz de administrar por si mesmo os seus interesses e pensam no novo freio que será necessário colocar-lhe para guiá-lo “pela força” à libertação.
Todas as objeções que apresentam os partidários da ditadura giram em torno deste principal argumento: a incapacidade da classe operária para se governar por si mesma, para substituir a burguesia na administração da produção, para manter a ordem sem o governo; ou seja, reconhecem-lhe só a capacidade de eleger representantes e governantes. Naturalmente, não expressam este conceito com as nossas mesmas palavras; ao invés, mascaram-no diante de si próprios com maior zelo do que diante dos outros, com raciocínios teóricos diversos. Mas a sua preocupação dominante é esta: que a liberdade é perigosa e que a autoridade é necessária para o povo, assim como os ateus burgueses que dizem ao povo que a religião é necessária para que não se desvie do bom caminho.
Pode suceder, com efeito, que a autoridade se faça necessária, mas não porque seja algo “natural” e não se possa prescindir dela, e sim pelo facto de que o povo se habituou a considerá-la indispensável; porque em lugar de se lhe ensinar a operar por si e as formas em que poderia por sua própria conta resolver as dificuldades, neste ponto ele é mantido nas trevas, oculta-se-lhe a verdade, e para tê-lo mais submetido mostra-se-lhe tudo fácil; porque se lhe ensina desde agora que, apenas sacudido o jugo atual, deverá criar-se imediatamente um novo governo que se ocupará de dirigi-lo e tratar-lhe de tudo.
Aqueles que falam da ditadura como dum mal necessário no primeiro período da revolução – no qual, pelo contrário, seria necessário um máximo de liberdade –, não reparam que eles próprios contribuem, com a sua propaganda, para torná-la necessária. Muitas coisas se fazem inevitáveis à força de crê-las e querê-las como tais; na realidade, criamo-las nós mesmos. Assim sucede com a ditadura que os socialistas estão a preparar com a sua propaganda em lugar de estudar a possibilidade de evitar esse mal, essa preventiva amputação da revolução. Eles não encaram por completo o problema precisamente porque não têm suficiente fé na liberdade, porque, pelo contrário, apoiam toda a sua fé na autoridade. Por conseguinte, não podem resolver o problema. Resolvemo-lo no entanto nós, anarquistas, que vemos na liberdade o melhor meio para a revolução: para fazê-la, para vivê-la e para continuá-la.
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O temor à desordem, ao desencadeamento das paixões, ao florescimento dos egoísmos, aos desafogos da brutalidade, da indisciplina, da negligência, etc., foi sempre o pretexto com que se justificou toda a tirania e se combateu toda a ideia de revolução.
É curioso que alguns socialistas encontrem precisamente neste facto uma uma justificação das suas ideias ditatoriais! No diário Avanti!, de Milão, de 13 de dezembro de 1919, desenvolvia-se em substância este conceito: que também a burguesia fez a sua revolução impondo a ditadura, que na realidade vivemos sob a ditadura burguesa, que a burguesia, para fazer a guerra, acentuou a sua centralização ditatorial, etc., e que por isso também o proletariado tem direito a fazer o mesmo. Que tenha direito diante da burguesia, isto é, que a burguesia seja a menos autorizada a escandalizar-se ante a ideia de uma ditadura proletária, pode ser um argumento justo; mais ainda, nós acrescentaríamos que a burguesia faz mal em alarmar-se, mesmo do seu ponto de vista, porque pior sorte lhe reservaria uma revolução verdadeiramente livre de todo o entrave governamental. Mas que o proletariado tenha interesse em recorrer à ditadura, isso é farinha doutro saco.
O exemplo de que a ditadura tenha servido à burguesia não prova nada; ou melhor, prova o contrário. A revolução social não pode ter a mesma orientação que a burguesa; e além disso, uma coisa é a revolução e outra a guerra. Nem todos os meios que são bons para a guerra ou para uma revolução burguesa são bons para uma revolução social. A centralização autoritária da ditadura é um meio totalmente prejudicial, no que é o mais adequado para transformar uma revolução social em revolução exclusivamente política – em especial ao tirar ao povo a iniciativa da expropriação imediata –, quer dizer, preparar desde o ponto de vista proletário e humano o mesmo fracasso das revoluções precedentes.
Essas revoluções, que todavia foram feitas especialmente pelo povo, o qual era então também impulsionado por um desejo de libertação completa e de igualdade não somente política, terminaram com o triunfo duma classe sobre outras justamente porque a ditadura chamada revolucionária preparou e tornou possível tal triunfo. Se a burguesia a empregou foi precisamente para sufocar a revolução, porque tinha interesse nisso. O proletariado tem, pelo contrário, um interesse oposto, isto é, que a revolução não seja sufocada, mas realize o seu curso completo. A ditadura, portanto, iria contra o seu interesse.
É verdade que uma ditadura proletária e revolucionária poderia também transtornar, arruinar e anular os privilégios atuais da burguesia; mas visto que, devendo ser limitada nos seus componentes, seria sempre a ditadura de alguns partidos ou de algumas classes, ver-se-ia inclinada não a destruir todo o governo de partido e toda a divisão de classes, mas sim a substituir o governo atual por outro, o atual domínio de classe por outro também de classe. E naturalmente, como a existência dum governo implica a existência de súbditos, a existência duma classe dominante significa a existência doutras classes dominadas e exploradas. Teriam mudado os músicos, diria Constantino Lazzari, mas a música seria a mesma.
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Não somos profetas, nem filhos de profetas, e não podemos prever o modo como tudo isto poderá acontecer. Mas reclamamos a atenção dos leitores, e em especial dos socialistas, sobre este facto: que o proletariado não é uma classe única e homogénea, mas um conjunto de categorias diversas, de muitas subclasses, etc., entre as quais há algumas mais ou menos privilegiadas, mais ou menos evoluídas e ainda algumas que são de certo modo parasitas das outras. Há nesta classe minorias e maiorias, divisões de partido, de interesses, etc. Hoje tudo isto é menos percebido porque a dominação burguesa obriga um pouco todos a sentirem-se solidários contra ela; mas o facto é evidente para quem estuda de perto o movimento operário e corporativo. Agora, a ditadura proletária, que seguramente iria ao encontro das categorias operárias mais desenvolvidas, organizadas e armadas, poderia derivar na constituição da classe dominante futura, a qual já gosta de se chamar a si própria elite operária, para dano não só da burguesia, simplesmente destronada nos seus componentes, mas também das grandes massas menos favorecidas pela posição que ocupam no momento da revolução.
Constituir-se-ia, é certo, outra classe dominante – poderia melhor chamar-se uma casta, muito semelhante à atual casta burocrática governamental que justamente substituiria – integrada por todos os atuais funcionários dos partidos, das organizações, dos sindicatos, etc. Ademais, a ditadura terá também, juntamente com o governo central, os seus órgãos, os seus empregados, os seus exércitos, os seus magistrados, os seus politiqueiros; e estes, junto com os demais funcionários atuais do proletariado, poderão precisamente contruir a máquina estatal para o domínio futuro em nome duma parte privilegiada do proletariado e aliada a ela. Esta, naturalmente, deixaria de ser de facto “proletariado” e seria mais ou menos (o nome importa pouco) o que na realidade é hoje a burguesia. As coisas poderão ocorrer diversamente nos detalhes, poderão também tomar outra orientação, mas será semelhante a esta e terá os mesmos inconvenientes. Em termos gerais, o caminho da ditadura não pode conduzir a revolução a mais do que uma saída deste tipo, isto é, ao contrário da finalidade principal do anarquismo, do socialismo e da revolução social.
Também é errado dizer que a ditadura é necessária para a revolução tal como é desejada para a guerra. Que seja desejada para a guerra que a burguesia e o Estado fazem com a pele dos proletários, é natural. Trata-se de fazer a guerra pela força, de obrigar pela força a maioria do povo a combater, contra os seus próprios interesses, contra as suas ideias, contra a sua liberdade, e é natural que para isso seja necessário um verdadeiro esforço violento, uma autoridade coerciva, e que o governo apele a todos os seus poderes para o conseguir.
Mas a revolução é outra coisa: é a luta que o povo empreende por sua vontade (ou por uma vontade determinada pelos factos) no sentido dos seus interesses, das suas ideias, da sua liberdade. É preciso, por conseguinte, não refreá-lo, mas sim deixá-lo livre nos seus movimentos; deixá-lo desencadear com inteira liberdade os seus amores e os seus ódios, para que brote o máximo de energia necessária para vencer a oposição violenta dos dominadores.
Todo o poder limitador da sua liberdade, do seu espírito de iniciativa e da sua violência seria um obstáculo para o triunfo da revolução, a qual nunca se perde por atrever-se demasiado, mas sim quando é tímida e se atreve pouco.
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O temor à desordem e suas consequências é uma superstição infantil, como o medo de cair da criança que há pouco aprendeu a caminhar.
Nenhuma revolução está isenta de desordem, pelo menos nos seus começos. Mesmo nas revoluções mais suaves, mais educadas e mais burguesas, tal não se pôde evitar; nem se evitará numa revolução social, que sacode por completo e desde a sua base a sociedade. Mas certamente, para que a vida continue sendo possível, é preciso que uma ordem se estabeleça quanto antes. Mas o problema que se apresenta não é o de um novo governo, e sim o de se saber o que é o mais apropriado para restabelecer a ordem, como se pode estabelecer uma ordem melhor: com um governo mais ou menos ditatorial ou com a livre iniciativa popular.
Os socialistas optam por um governo revolucionário; nós, ao contrário, cremos que o governo, e pior ainda se for ditatorial, será um elemento mais de desordem, uma vez que estabelecerá uma ordem artifical e nunca de acordo com as tendências e com as necessidades das massas. Estas, pelo contrário, através das suas próprias instituições livres – que já assinalámos em páginas precedentes – poderão prover por via direta, por si mesmas, a organizar-se de forma tal que fique assegurado bastante melhor e mais disciplinadamente a “ordem” necessária, isto é, a ordem livre e voluntária, não a artificial e oficial que os governos impõem de cima.
Esta ordem na desordem tem sido vista e admirada em quase todas as revoluções e durante os períodos de concussões populares. Amiúde se notou, em tais períodos, uma enorme diminuição dos fenómenos de delinquência comum. Quando desaparecem os esbirros e o governo é inexistente, pode dizer-se que o povo assume por si mesmo a responsabilidade da ordem, não por delegação de terceiros mas de forma direta, em todo o lugar, com os meios e pessoas de que localmente dispõe. Algumas vezes até vai mais além dos limites, como quando, em 1848, fuzilava algum mísero ladrão inconsciente detido em flagrante.
Este espírito de ordem do povo tem sido notado por todos os historiadores nos períodos imediatamente sucessivos às insurreições, quando o velho governo havia sido já derrubado e reduzido à impotência, e o novo ainda não havia sido criado ou era ainda demasiado débil. Isto viu-se nos meses mais desordenados, que os historiadores burgueses chamam de anarquia, da revolução de 1789-93, tanto na cidade como no campo; assim também nas diversas revoluções europeias de 1848 e depois na Comuna de 1871. A desordem veio mais tarde, com o regresso dum governo regular, fosse este o antigo ou o novo. Ainda que tenham ocorrido sempre inconvenientes, como é natural, nos períodos “anárquicos” nunca os houve de tal magnitude como aqueles que se vieram a deplorar logo com o retorno da “ordem” imposta por um governo qualquer.
Por outro lado, não há que batizar como excessos revolucionários, como desórdens, certos atos de violência contra a propriedade e as pessoas, que são verdadeiros episódios da revolução, inseparáveis desta, por meio dos quais e através dos quais toda a revolução se realiza. A revolução do 89, por exemplo, é inconcebível sem o enforcamento dos açambarcadores e dos causadores da fome do povo, sem o incêndio dos castelos, sem as jornadas de setembro, sem os chamados excessos de Marat, dos hebertistas, etc. Esta espécie de desordem é totalmente inevitável antes de alcançar a ordem nova que a nós importa; é preciso, portanto, deixar à revolução toda a liberdade para se manifestar e se desenvolver. Bastante mais prejudicial seria querer detê-la, como seria prejudicial opor um dique a uma torrente cujas águas, obstaculizadas no seu curso natural, derramariam em tempestade para arruinar os campos vizinhos; ao passo que, deixando-as prosseguir livremento o seu curso, chegariam mais cedo à planície, onde prosseguiriam o seu caminho até ao mar, cada vez com maior tranquilidade.
O povo em todas as revoluções demonstrou essa mesma capacidade de ordem também num sentido positivo, isto é, como espírito de organização para a satisfação daquelas múltiplas necessidades que mesmo em tempos revolucionários têm o seu imprescindível imperativo categórico. “É preciso nunca ter visto na tarefa o povo laborioso; é preciso ter passado toda a vida com o nariz metido nos infólios e não conhecer nada do povo para poder duvidar dele; ao contrário, falai do espírito de organização desse grande desconhecido que é o Povo àqueles que o viram em Paris nos dias das barricadas ou em Londres, em 1887, durante a grande greve dos docks, quando tinha que cuidar de um milhão de famintos, e dir-vos-ão quão superior é a todos os burocratas das nossas administrações”.(1)
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Contudo, não há que cair no otimismo excessivo de Kropotkin, do qual já falámos, que conduziria a nos deixarmos arrastar pela corrente, a não ter quase necessidade de pensar antes de atuar.
Pelo contrário, é preciso levantar de antemão os problemas da ação e da produção, preparando os ânimos, as vontades, os instrumentos adequados à futura iniciativa popular, para que haja em todos os pontos do território em revolução homens e grupos que a salvem de ser tomada de surpresa e de ter que abdicar ante um poder central qualquer. Quer dizer, desde antes da revolução impõe-se uma preparação prática, positiva mais do que negativa, das minorias revolucionárias e libertárias para que possam atuar e responder às necessidades que se apresentem sem necessidade de confiar num governo.
Mikhail Bakunin via esta necessidade, e crendo estar próxima a revolução procurou responder a ela criando, em 1869, uma Aliaça secreta. Deixando de parte o formalismo, que revelava ainda a influência conspirativa anterior a 1870, continua sendo justo o conceito de conseguir despertar a vida espontânea e todas as potências locais. na maior medida possível e em todas as partes, por meio de minorias revolucionárias que, pilotos invisíveis no meio da tempestade popular, produzirão a anarquia e a guiarão não por virtude dum poder ostensivo, oficial, mas com o exemplo da própria atividade iniciadora. Mas para que esta força possa atuar “é necessário que ela exista (adverte Bakunin) pois não se estruturará por si só”.
Acrescentemos que Bakunin julgava ser possível um movimento revolucionário através da ação e influência, cada vez mais vasta, da organização operária na Internacional; mas para evitar que se convertesse numa autoridade oficial, os membros da Aliança secreta estavam comprometidos a não assumir, se fosse possível, cargos de nenhuma espécie na Internacional pública.
Se em todo o bairro, em toda a aldeia, em toda a fábrica, em todo o centro, etc., existissem grupos resolutos que tomassem desde o primeiro momento, tendo os meios e a preparação para tal, a iniciativa revolucionária tanto para a destruição do velho regime como para continuar a produção, todo o pretexto de fazer surgir uma autoridade governamental ou ditatorial morreria em gérmen. A autoridade seria tão desmezurada, tão pulverizada, que não existiria mais como poder coercivo; estando em todos e em toda a parte, impediria qualquer tentativa de centralização. Preparar deste modo a possibilidade do desenvolvimento das iniciativas locais, especiais, por lugares ou por funções, significará dar à revolução o modo de caminhar livremente sem os torniquetes deformadores e homicidas da ditadura.
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Diz-se que é necessária a ditadura para organizar a luta contra as resistências burguesas. Porquê? Pode-se considerar a revolução como dividida em dois grandes períodos: o que antecede o derrube do poder político da burguesia e o período posterior. Enquanto o poder governamental burguês não tenha sido derrubado, toda a ditadura proletária é impossível; existe somente, todavia, a ditadura burguesa. Vencido o governo burguês, que constitui a resistência armada da classe capitalista, fica esta também implicitamente desarmada e derrotada. Os seus elementos podem, aqui e ali, prolongar por grupos a resistência; mas então encontram-se numa situação de absoluta inferioridade ante o proletariado, muito mais numeroso, e desde esse momento armado e talvez melhor armado que eles. Para sufocar essas resistências não só é inútil constituir um governo central, como é mais prático para aniquilá-las a livre ação insurrecional local, que em todo o lado proceda a limpar o terreno e a desembaraçar-se dos reacionários do lugar, salvo, entende-se, quando é mister convergir com as outras localidades para correr em ajuda daquelas onde os revolucionários a necessitem.
Os distintos centros revolucionários federar-se-ão, estarão em contacto contínuo para a ajuda recíproca, de acordo com um tipo de organização federalista completamente oposta à ditatorial. Isto evitará que se produza, como durante a revolução francesa, e parece que também recentemente na Rússia, o grave inconveniente de que com as melhores intenções do mundo o governo central dite órdens contrárias ao espírito dominante nesta ou naquela região, em contraste com interesses coletivos legítimos de certas populações distantes ou de categorias operárias menos favorecidas, etc., contribuindo assim para diminuir o fervor revolucionário e beneficiar os planos contra-revolucionários. Em especial isto pode suceder quando, para o trabalho de expropriação, se quiserem adotar critérios únicos de forma e de procedimento que, ao contrário, deverão variar segundo as circunstâncias e as tendências das massas em cada localidade.
Dissemos já precedentemente por que não é necessário um orgão central autoritário para a obra da revolução, bastando para ela em todo o centro a ação das organizações operárias existentes e daquelas que se formariam, para cada ramo de atividade, ao primeiro estalido da revolução. Dissemos como isto não implica sequer uma excessiva dificuldade nas nações de população aglomerada, onde tudo o que há que expropriar está ao alcance da mão dos interessados. Esta tarefa poderá ter apresentado quiçá maiores dificuldades na Rússia, nas campanhas, pela sua extensão muitas vezes quase inabitada e com escassas comunicações; mas isto não pode ocorrer nos países de população densa como o nosso.
Em todo o caso, as dificuldades que possam depois surgir serão sempre melhor resolvidas pelos organismos operários do que por um governo central. A menos que se insista no propósito, absolutamente anti-revolucionário e utópico, de se contentar com a conquista do poder e deixar a expropriação para mais tarde, como obra oficial do Estado ditatorial socialista. Pois isso seria o desastre para a revolução!
Mas deste tema já falámos bastante no capítulo anterior.
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Mas o medo da liberdade, ou, o que é praticamente igual, o culto à autoridade, coloca nos lábrios dos partidários da “ditadura” argumentos que são já uma condenação explícita da própria ditadura. Eles dizem com frequência: Mas não faz o mesmo a burguesia? Diz-se que a ditadura do proletariado seria a ditadura duma “elite”; mas a ditadura atual da burguesia não é também a ditadura duma “elite”?(2)
Certíssimo! Mas a revolução não deve substituir uma elite por outra, deve aboli-las todas. Se, ao contrário, o seu resultado não for mais do que substituir uma ditadura por outra, poderemos desde já prever o fracasso da revolução. Se tal é o fim que se propõem os partidários da ditadura proletária, então também se compreende por que atribuem à revolução a função primordial de suprimir a liberdade; ou seja, uma função oposta àquela que está na natureza de toda a revolução: a conquista de cada vez maior liberdade.
Isto explica também a linguagem dos socialistas autoritários e ditatoriais quando acusam de demagogia democrática e pequeno-burguesa a viva preocupação dos anarquistas por defender a liberdade. No entanto, nós partilhamos inteiramente da sua hostilidade à democracia burguesa e pequeno-burguesa; na nossa aversão até nos mostramos mais coerentes que os socialistas ao não aceitarmos servir-nos das instituições parlamentares e administrativas burguesas para a nossa luta revolucionária. Mas enquanto a nossa inimizade para com a democracia e o liberalismo burgueses aponta para o futuro e representa uma superação dos mesmos, o espírito anti-democrático dos partidários da ditadura representa um retorno ao passado. Para os anarquistas não basta a pouca liberdade concedida pelos regimes democráticos: em contrapartida, os partidários da ditadura pensam em tirar ao povo até esse pouco de liberdade. Se, pois, as preocupações libertárias dos anarquistas podem ser tachadas de “democráticas”, nós podemos devolver a acusação dizendo que as aspirações ditatoriais dos socialistas tendem a um retorno ao absolutismo, à autocracia, aos métodos de governo de “festa, farina e forca”(**) que agradavam tanto à plebe napolitana de 1799 e de 1849.
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Naturalmente, os socialistas não se dão conta destas perigosas tendências dos seus sistemas e dizem por isso que desejam tudo o contrário do que tais tendências implicam. Os factos da Rússia poderiam, talvez, com um bom conhecimento dos mesmos, instrui-los muito a esse respeito.
Na Rússia a revolução foi obra muito mais da ação livre popular do que do governo bolchevique. As forças operárias e camponesas, aproveitando-se, especialmente durante o primeiro ano, da debilidade dos diversos governos que se sucederam no poder, romperam, pedaço a pedaço, o antigo regime, transtornaram todos os valores sociais, iniciaram em vasta escala a expropriação, lançaram as bases dos novos institutos de produção e de organização, que depois o governo bolchevique reduziu sob o seu férreo domínio militarista e ditatorial. Foi a liberdade, não a ditadura, que libertou a Rússia do czarismo e de todas as armadilhas da burguesia liberal e da social-democracia patriótica e belicista; foi a liberdade que fez e manteve a revolução. A ditadura simplesmente recolheu os frutos. Mais ainda: dispersou-os e desperdiçou-os. Mas se no que concerne à Russia – enquanto não se fizer luz completa, enquando não se romper o bloqueio de isolamento e silêncio por parte de amigos e inimigos – as nossas afirmações e deduções estarão sempre entorpecidas pela incerteza e as dúvidas, no que se refere à Europa ocidental, pelo contrário – se excetuarmos talvez a Alemanha, educada por tanto tempo sob o regime autoritário –, uma orientação ditatorial, governamental, autoritária da revolução é de facto inconcebível. É preciso ter esquecido quais são as características psicológicas das raças latinas e suas derivadas, o espírito de independência que as anima, a sua escassa tolerância às leis e às autoridades, para ter ilusões nesse sentido.
Sabem os governos que devem adaptar-se a uma observância relativa e sumária das suas próprias leis por parte dos seus súbditos! E eles próprios, para manterem o equilíbrio, devem prescindir frequentemente das mesmas, modificá-las de contínuo, retardá-las por meio de leis de exceção, de amnistias, etc. E contudo os governos atuais têm, para manter a sua autoridade, tradições e instituições seculares, uma força armada que se baseia na ignorância de uns e no privilégio de outros; têm também o hábito, a que se adapta a maioria por lei de inércia. Mas quando a inércia e o hábito se encontram desfeitos e quebrantados, a força armada vencida, os privilégios e as instituições destruídas, as tradições truncadas, e todo um povo cheio de paixão e não certamente apático na sua maioria – como dizem que é o povo russo – se tenha posto em movimento, quem o tornará a submeter à obdiência? Que força poderão jamais invocar os socialistas do fundo do desconhecido, que consiga disciplinar seriamente sob a ditadura um proletariado faminto não só de pão mas também de liberdade?
Nenhuma força e nenhum homem! Os próprios socialistas devem compreendê-lo se examinarem as multidões guiadas por eles, se forem até ao fundo da alma própria. Pois eles falam sempre, todos, de disciplina necessária… para os outros; mas cada fração, cada grupo, cada indivíduo arroga-se o direito de fazer exceção à regra e de reivindicar (para bem, entende-se, do partido e da causa revolucionária) a sua própria liberdade pessoal, o seu próprio direito a desobedecer. Os seus próprios sequazes, os mesmos que hoje magnificam o sistema da ditadura, amanhã, depois da revolução e de uma breve experiência, acabarão por considerá-la insuportável!
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A revolução libertará da sua estreita cadeia o espírito de liberdade que, uma vez libre, se converterá em gigante, como o génio da fábula que um incauto deixou escapar do vaso em que estava trancado pela magia. Voltar a deitar-lhe a mão, voltar a encolhê-lo, a trancá-lo e a encadeá-lo será impossível até para os mesmos que contribuem para o libertar. Especialmente nos países latinos, onde as tendências anarquistas e rebeldes estão tão desenvolvidas, onde os anarquistas propriamente ditos enquanto força político-social têm uma influência que a revolução sem dúvida aumentará enormemente, seriam necessários, para conseguir construir um governo forte – uma ditadura como a que figura no programa bolchevique – ou apenas para o tentar, esforços de tal magnitude que consumiriam e esgotariam as melhores energias socialistas e revolucionárias.
Seria uma perda que não teria compensação. Seriam esforços, sacrifício, tempo e talvez muito sangue subtraídos ao trabalho livre e tanto mais vital de uma reconstrução da sociedade humana.
Notas de rodapé:
(1) P. Kropotkin, A conquista do pão. (retornar ao texto)
(2) Diário Avanti!, Milão, 6-1-1921. (retornar ao texto)
Notas da tradução:
(*) Fabbri refere-se à Primeira Guerra Mundial, que terminara havia poucos anos. (retornar ao texto)
(**) Sobre a origem e significado desta expressão idiomática italiana: https://www.vesuviolive.it/cultura-napoletana/181834-feste-farina-forca-le-tre-f-ferdinando-governare-popolo-napoletano/ (retornar ao texto)