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Na época em que eu trabalhava no porto de Havana, há mais de 35 anos, conheci um velho Liberty da Pacific Line que realizava contínuas viagens ao Extremo Oriente.
O responsável pelo carregamento do navio era um hindu seis anos mais velho que eu; usava um turbante branco e tinha uma barba enorme. Assim que a embarcação atracava, ele se metia silenciosamente no labirinto de botecos, cantinas, bares e bordéis da zona do cais.
Ora, essa figura pitoresca parecia íntima dos dois irmãos encarregados de dirigir a mais importante concessionária da região e de atender ao trânsito de navios da Garcia Line para os portos do Golfo. Eram pessoas muito conhecidas, dadas a extravagâncias que variavam do Buick último modelo às drogas que consumiam com rum Matusalém. Além disso, faziam-se acompanhar das mais lindas mulheres (conta-se até que o irmão mais velho, cada vez que passava um filme de gangsteres, levava a esposa ao cinema do bairro para masturbá-la na penumbra da sala).
O certo é que, enquanto um empregado de uma das cantinas do porto ganhava 25 pesos por mês mais um almoço ou jantar, conforme o dia, os irmãos lhe ofereciam passagem paga no expresso para Havana, com retorno no dia seguinte, e 30 pesos de gratificação, desde que levasse consigo alguns presentes.
Viajou três, talvez quatro vezes. Os irmãos apareciam na estação de trem às 7 horas da noite levando duas grandes cestas de peixe fresco com gelo, a passagem e o dinheiro. Em 10 minutos despediam-se.
A operação consistia em chegar a Havana, tomar um táxi, procurar um endereço na rua Zanja, bater à porta e entregar as cestas a uma pessoa que, sem sequer agradecer, dava-lhe 5 pesos de gorjeta.
Em seguida, o rapaz dirigia-se a um local barato para tomar café. Alugava então um quarto onde dormia durante 3 ou 4 horas. Levantava-se por volta de meio-dia, tomava banho, vestia a velha guayabera(1) e, depois de comer alguma coisa, ia até um daqueles bordéis da rua Zanja, onde se divertia por 2 pesos com alguma moça. Meia hora antes da partida do expresso para Puetro Tarafa, apresentava-se na Estação Central.
Mas, num porto, as mais insólitas revelações podem ocorrer. Certa vez, ele resolveu examinar uma das cestas, coisa que nunca tinha feito para não ficar com fedor de peixe nas mãos. Vasculhou até encontrar o porquê das viagens: vários pacotes feitos com papel grosso, parafinado, daquele utilizado para envolver manteiga; dentro, umas barras que pesavam cerca de 1 quilo cada uma, de cor ocre e cheiro peculiar, desconhecido.
Imediatamente, ele adicionou as suas suspeitas e os comentários que tinha ouvido àquela descoberta e teve a certeza de que o haviam convertido em passador de drogas por três notas de 10 e uma passagem no expresso da noite.
Voltou ao porto. Como não encontrou os irmãos, procurou o senhor Rasca, fiador das viagens, que se desculpou dizendo que não sabia de nada. Meu amigo deu-lhe uma gravata e colocou-o contra a parede, pois era bastante violento e estava se sentindo terrivelmente enganado. Rasca desfez-se em desculpas e perdões.
No dia seguinte, a polícia local deteve o rapaz. Foram buscá-lo e o deixaram por vários dias na cadeia, até que um tenente o aconselhou: o melhor que tinha a fazer era um acordo com o chefe, pois aquilo ainda poderia lhe causar mais aborrecimentos.
Então, resolveu ir ter com ele. Rasca entregou-lhe um cheque de 300 pesos, recomendando-lhe que não tratasse do assunto com nenhum dos irmãos e que se esquecesse inclusive do endereço na rua Zanja. Devia comprar um carro com o dinheiro e virar taxista, porque ele não queria vê-lo outra vez por ali.
Quinze anos mais tarde, li pela primeira vez O Chefão e confesso que fiquei impressionado — não pela linguagem, pela estrutura do livro ou pela história narrada; mas pela sabedoria presente em certas passagens mais interessantes e pelos enigmas humanos, raízes já encontradas em obras de alguns mestres do renascimento italiano.
Mas o livro de Puzo ambienta-se nos Estados Unidos, dos anos 20 a nossos dias (pelo menos nos filmes que esses textos originaram).
Da mesma forma, aquela leitura também me frustrou, pois eu já estava persuadido de que a Máfia que os cubanos conheceram era diferente dessa malta que Puzo nos apresenta com singular maestria.
Eu sabia de algumas histórias sobre Cuba, contadas por amigos que conheceram a deslumbrante Havana na ocasião em que Meyer Lansky inaugurava o Hotel Riviera; no entanto, ainda que naquela época tratassem de me incitar, nunca escrevi uma única linha a esse respeito, embora o tema fosse fascinante, sem dúvida. Depois, ele foi-se convertendo em assunto cotidiano, de apelo quase extraordinário, especialmente na literatura: diversos autores ficaram célebres, talvez pelas histórias imprevisíveis que, à força de tanto se repetir, acompanham o grande público como um enorme mistério. Alguns desses autores incluíram em suas fitas ou textos alusões audazes à presença voraz de uma máfia em Havana, de forma que o estudo histórico desse problema tornou-se ainda mais excitante, além de ser um convite à reflexão.
Em relação a Cuba, ainda que não se tenha realizado até agora uma pesquisa sobre o assunto, sabe-se que a presença da Máfia norte-americana era tão ameaçadora que nada se falava a respeito.
Posteriormente, no verão de 1988, realizei minha primeira viagem à Colômbia, país sobre o qual eu tinha muitas referências, através da leitura de bons livros e das histórias e lendas que me foram contadas por amigos.
Foi uma viagem de apenas quatro semanas ao país dos grandes contrastes: violência, amor, riqueza, miséria, beleza, abandono, ódio e ternura. Gente extraordinariamente gentil e bondosa. Nação de grandes rios, altitudes colossais, selvas intermináveis, extensas planícies e prados e uma belíssima paisagem costeira, com muitas praias, ilhotas e enseadas.
Um ano depois, no verão de 1989, regressei àquele país, sempre tão querido pelos cubanos, dessa vez em companhia de Mercedes: seu avô tinha estudado em Medellín no começo do século e aquela viagem era muito importante para ela.
A estada seria dessa vez muito maior, não só em Santa Fé de Bogotá, mas também na própria zona costeira. Instalamo-nos na acolhedora Barranquilla, mas fizemos breves passeios à antiga Santa Marta e visitamos a histórica Cartagena de Índias, convidados por amigos do Congresso.
Na realidade, entre todas as minhas experiências, nenhuma foi comparável ao contato com a hospitalidade, generosidade e cordialidade dos colombianos, costenhos ou da meseta bogotana. Os vínculos entre colombianos e cubanos são muito profundos e antigos: diversos colombianos lutaram nas guerras anticoloniais de Cuba contra a Espanha e encontraram na ilha uma mão amiga, um refúgio.
Essa segunda estada, de quase três meses, permitiu que conhecêssemos um grupo de intelectuais e que então entrássemos em contato com o estudo de temas imprescindíveis para o entendimento dos aspectos essenciais daquele país.
Em Barranquilla, conhecemos também jovens de grande talento: poetas e escritores, pintores, professores universitários, músicos e jornalistas.
Uma das lembranças agradáveis refere-se ao início de nossa amizade com o prestigioso Germán Vargas, profundo admirador de Cuba e verdadeira instituição do jornal El Heraldo.
Outra recordação especial é a do nosso contato com Rafael Ortegón Paéz, fundador de centros educacionais, professor preocupado com os problemas do estudantado colombiano e autor de um lúcido estudo: Vorágine alucinante en la historia de las drogas.
Tivemos excelentes conversas com o professor Ortegón, que nos transmitiu sua experiência sobre os diversos aspectos da problemática contemporânea do narcotráfico internacional. Ainda que esse não fosse o objetivo da nossa viagem, foi extremamente interessante conhecer os dados de que os estudiosos colombianos dispõem sobre oassunto.
Naquele período, iniciava-se uma das mais ferozes campanhas internacionais de manipulação dos acontecimentos que se desencadearam contra a Revolução Cubana, durante junho e julho de 1989, embora o tráfico e o consumo de drogas em nosso país fosse um assunto resolvido desde as primeiras semanas de 1959.
De qualquer maneira, as tentativas de implicar a Cuba revolucionária naqueles negócios sujos foram extirpadas de maneira exemplar.
Foi então, ainda em Barranquilla e, mais tarde, em Santa Fé de Bogotá, que compreendi que não seria possível escrever um livro sobre o narcotráfico sem abordar o mundo financeiro e seus vínculos com os serviços de inteligência norte-americanos, além dos centros da Máfia radicados nos Estados Unidos que, durante anos, de uma maneira reiterada, entrelaçados com essas mesmas forças, se haviam dedicado a atacar ou perseguir o processo revolucionário cubano.
No entanto, depois de publicar uma série de artigos que abordavam aspectos do narcotráfico, senti que estava diante de um grande dilema: tinha informações suficientes para escrever sobre esse problema, mas na realidade o projeto seria tomado da montanha de publicações anuais sobre o assunto: livros, revistas, artigos e notícias sobre as drogas e os interesses norte-americanos.
Decidi então dar uma guinada no projeto. O narcotráfico internacional realmente não era uma problemática cubana, mas um assunto resolvido assim que o Exército Rebelde derrubou o esquema de poder imperialista imposto em Cuba, iniciando-se um processo de justiça social com todas as forças dispostas a realizar as transformações essenciais ao país.
O fundamental, porém — e essa ideia foi surgindo pouco a pouco —, era estudar a máfia que havia operado em Cuba, tema que nem sequer havia sido cogitado.
As atividades da Máfia norte-americana teriam de fato alcançado em Cuba as proporções que alguns autores ou cineastas estrangeiros afirmavam? Teriam mesmo todo o poder que a tradição oral dos cubanos assegurava? Ou seria apenas ficção?
Indicado o rumo que devia tomar a pesquisa, é necessário dizer que no começo só me propus a estudar a presença de alguns célebres personagens da Máfia que escolheram Havana como centro de operações ou como lugar de residência eventual, deixando na sua passagem uma poeira de mistérios e lendas próprias de sua profissão.
De início, o processo de pesquisa revelou a precariedade da bibliografia cubana sobre o assunto, tratado com uma incrível discrição e amparado por uma extraordinária cobertura oficial. Na maioria dos casos, os mafiosos haviam operado com o reconhecimento ou a documentação que os credenciavam como homens de grande prestígio no mundo dos negócios, controlando bancos, dominando jornais, canais de rádio e de televisão ou dirigindo importantes companhias, além de muitas outras atividades puramente delituosas.
Para o estudo do período de 1934 a 1958, contávamos com a colaboração de um grupo de testemunhas que haviam conhecido muitos desses mafiosos. Começamos a reconstruir lugares frequentados, locais de reuniões, características pessoais como gostos, comportamentos, métodos preferidos, e, claro, surgiram ajudantes e guarda-costas, amigos, mulheres e esferas de influência; o mais assombroso foi comprovar a impunidade que chegaram a ter, num período que incluía a gestão de vários presidentes.
Eram tão incríveis alguns dos testemunhos sobre esse período histórico e pareciam tão fantásticas as histórias das operações da Máfia em Cuba que, para nós, também se tornou válido o que o senador norte-americano Estes Kefauver expressou em maio de 1950, quando começou a estudar as atividades da Máfia nos Estados Unidos:
“Trata-se de uma conspiração tão monstruosa e ultrajante que muita gente não vai acreditar”.
Mas, por sorte, não corriam os anos de 1950 nem estávamos nesse processo evasivo em que se diluíram os assuntos da Máfia nos Estados Unidos; por isso iniciamos imediatamente o exaustivo trabalho de verificação de cada um dos testemunhos, coisa que nos levaria a utilizar ou consultar diversas fontes:
Como não se tratava apenas de aprofundar as relações ou os vínculos da Máfia norte-americana com as cúpulas político-militares do poder aparente (para as quais estava reservada uma parte dos fraudulentos negócios do Estado ou o roubo do erário público), era necessário também refletir sobre essa complexa rede (coerência ou complementação) de negócios compartilhados e de interesses comuns com os grupos financeiros dominantes.
Uma primeira conclusão sempre nos conduziu a uma segunda questão: como foi possível que uma vasta organização delituosa pudesse operar em Cuba durante mais de 25 anos sem sofrer a mais leve resistência oficial? Que grupos políticos e financeiros, dentro e fora da ilha, estivessem diretamente comprometidos na constituição daquele Estado de caráter criminoso?
Em consequência disso, não era possível entender nem de forma mediana a dimensão da influência da Máfia norte-americana sem um profundo estudo da realidade econômica, política e social daquele período. Mais do que isso, para responder a qualquer outra questão significativa era uma necessidade inadiável conhecer quais os fatores (não apenas internos, mas também externos) que permitiram que o crime organizado dos Estados Unidos criasse um império poderoso de delinquência na maior das Antilhas.
Hoje podemos assegurar que as atividades da Máfia norte-americana em Cuba não se referiam apenas aos hotéis e cassinos, às drogas e à prostituição organizada. As pesquisas mais recentes revelam que se tratava de um projeto de longo alcance, encaminhado de forma a ocupar espaços cada vez mais rentáveis. Realizamos até agora o estudo de quatro poderosas famílias que, desde os anos 30, possuíam um fabuloso entrelaçamento de interesses e não poucas contradições com o resto da Máfia norte-americana: essas famílias estiveram a cargo de Amleto Battisti y Lora, Amadeo Barletta Barletta, Santo Trafficante (pai e filho) e o mais célebre de todos os mafiosos que operaram em Cuba: Meyer Lansky, o financista da Máfia.
Os primeiros resultados dessas pesquisas foram publicados na revista Bohemia em sete artigos, entre outubro de 1991 e abril de 1992.
No final, junto à bibliografia, incluo uma lista de testemunhas e de consultores sem os quais não teria sido possível realizar com sucesso este trabalho. A tradição oral, como fonte histórica, ocupou um lugar de primeira ordem.
As testemunhas (o autor assumiu o conjunto dos testemunhos) podem ser agrupadas em três grandes grupos: antigos homens de negócios ou intelectuais; revolucionários profissionais; e empregados das instituições em que operava a Máfia norte-americana: dealers, motoristas ou empregados. Alguns empregados de hotéis e cassinos solicitaram o anonimato. Os processos e apreciações de jornalistas e historiadores consultados foram de grande utilidade.
Notas de rodapé:
(1) Camisa muito comum nos trópicos, com bordado ou estampa, em geralde linho, para ser usada fora da calça. (retornar ao texto)