O Parto dos Montes

Fidel Castro

16 de Novembro de 2008


Fonte: Cuba Debate

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


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Bush se mostrava feliz com ter Lula a sua destra no jantar da sexta-feira. A Hu Jintao, ao qual respeita pelo enorme mercado de seu país, pela capacidade de produzir bens de consumo a baixo preço e o caudal de suas reservas em dólares e bônus dos Estados Unidos, sentou-o a sua esquerda.

Medvédev, a quem ofende com a ameaça de colocar os radares e os mísseis estratégicos nucleares não longe de Moscou, foi situado em um assento distante do anfitrião da Casa Branca.

O rei da Arábia Saudita, um país que produzirá em um futuro próximo 15 milhões de toneladas de petróleo ligeiro a preços altamente competitivos, ficou também a sua esquerda, junto de Hu.

Seu aliado mais fiel na Europa, Gordon Brown, Primeiro-ministro do Reino Unido, não aparecia perto dele nas imagens.

Nicolás Sarkozy, descontente com a arquitetura atual da ordem financeira, ficou distante dele, com o rosto amargado.

Ao Presidente do Governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, vítima do ressentimento pessoal de Bush e comparecente ao conclave de Washington, nem sequer o vi nas imagens televisadas do jantar.

Dessa forma foram colocados os participantes no banquete.

Qualquer um teria pensado que no dia seguinte se produziria o debate de fundo sobre o peliagudo tema.

Na manhã do sábado, cedo, as agências informavam sobre o programa que teria lugar no National Building Museum de Washington. Cada segundo estava programado. Seriam analisadas a crise atual e as medidas a serem tomadas. Começaria às 11h30, hora local. Primeiro, sessão gráfica: “fotos de família”, como as chamou Bush; vinte minutos depois, a primeira plenária, seguida de uma segunda na metade do dia. Tudo rigorosamente programado, até os nobres serviços sanitários.

Os discursos e análises durariam aproximadamente três horas e 30 minutos. Pelas 15h25, hora local, o almoço. Logo a seguir, às 17h05, declaração final. Uma hora depois, às 18h05, Bush marcharia a descansar, jantar e dormir placidamente em Camp David.

O dia decorria, para os que acompanhavam o evento, com a impaciência por conhecer como em tão breve tempo seriam abordados os problemas do planeta e da espécie humana. Estava anunciada uma declaração final.

O fato real é que a declaração final da Cúpula foi elaborada por assessores econômicos pré-selecionados, bastante afins ao pensamento neoliberal, enquanto Bush em seus pronunciamentos pré e pós Cúpula reclamava mais poder e mais dinheiro para o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e para outras instituições mundiais que estão sob o rigoroso controle dos Estados Unidos e seus aliados mais próximos. Esse país tinha decidido injetar 700 biliões de dólares para salvar seus bancos e suas empresas transnacionais. A Europa oferecia uma cifra igual ou maior. O Japão, seu mais firme alicerce na Ásia, prometera uma contribuição de 100 biliões de dólares. Esperam da República Popular China, que desenvolva crescentes e convenientes vínculos comerciais com os países da América Latina, outra contribuição de 100 biliões procedentes de suas reservas.

Donde sairão tantos dólares, euros e libras esterlinas como não fosse endividando seriamente as novas gerações? Como se pode construir o edifício da economia mundial sobre notas de papel, que é no imediato o que realmente se coloca em circulação, quando o país que os emite sofre um enorme déficit fiscal? Valeria a pena tanta viagem por ar rumo a um ponto do planeta chamado Washington para se reunir com um Presidente a quem lhe restam apenas 60 dias de governo, e subscrever um documento que já estava formulado de antemão para ser aprovado no Washington Museum? Teria razão a imprensa radial, televisiva e escrita dos Estados Unidos ao não outorgar-lhe atenção especial a esse velho mecanismo imperialista na cacarejante reunião?

O inacreditável é a própria declaração final, aprovada por consenso dos participantes no evento. É óbvio que constitui uma aceitação plena das exigências de Bush, antes e durante a Cúpula. A vários dos países participantes não lhes restava outra alternativa que aprová-la; em sua luta desesperada pelo desenvolvimento, não desejavam ficar isolados dos mais ricos e poderosos, bem como de suas instituições financeiras, que constituem a maioria no seio do Grupo G‑20.

Bush falou com verdadeira euforia, usando palavras demagógicas, leu frases que retratam a declaração final:

“A primeira decisão que tive que adotar ― disse ― foi indicar quem viriam à reunião. Decidi que deveríamos ter as nações do Grupo dos 20, em lugar de apenas o Grupo dos Oito ou o Grupo dos Treze.

“Mas, uma vez que é adotada a decisão de ter o Grupo dos 20, a pergunta fundamental é com quantas nações de seis diferentes continentes, que representam diferentes etapas de desenvolvimento econômico, será possível chegar a acordos que sejam substanciais, e me compraz informar-lhes que a resposta a essa pergunta é que o conseguimos.

“Os Estados Unidos tomaram algumas medidas extraordinárias. Vocês, que acompanharam minha carreira, sabem, eu sou um partidário do livre mercado, e se a gente não toma medidas decisivas, é possível que nosso país se submirja em uma depressão mais terrível que a Grande Depressão.”

“Recém-começamos a trabalhar com o fundo de 700 biliões de dólares que está começando a liberar dinheiro para os bancos.”

“Portanto, todos entendemos a necessidade de promover políticas econômicas a favor do crescimento”.

“A transparência é muito importante para que os investidores e os reguladores possam saber exatamente o quê está acontecendo.”

O texto do resto do que disse Bush é do mesmo estilo.

A declaração final da Cúpula, que precisa por sua extensão de meia hora para ser lida em público, define-se a si própria em um grupo de parágrafos selecionados:

“Nós, líderes do Grupo dos 20, celebramos uma reunião inicial em Washington no dia 15 de novembro entre sérios desafios para a economia e para os mercados financeiros mundiais…”

“…devemos colocar as bases para uma reforma que nos ajude a assegurar-nos que uma crise global como esta não voltará a acontecer. Nosso trabalho deve estar norteado pelos princípios do mercado, o regime de livre comércio e investimento…”

“…os atores do mercado procuraram rentabilidades mais altas sem uma avaliação adequada dos riscos, e fracassaram…”

“As autoridades, reguladores e supervisores de alguns países desenvolvidos não constataram nem advertiram adequadamente dos riscos que eram criados nos mercados financeiros…”

“…as políticas macroeconômicas insuficientes e inconsistentemente coordenadas, e inadequadas reformas estruturais, conduziram a um insustentável resultado macroeconômico global.”

“Muitas economias emergentes, que ajudaram a sustentar a economia mundial, sofrem cada vez mais o impacto da travação mundial.”

“Sublinhamos o importante papel do FMI na resposta à crise, saudamos o novo mecanismo de liqüidez a curto prazo e urgimos para a contínua revisão de seus instrumentos para garantir a flexibilidade.

“Encorajaremos o Banco Mundial e outros bancos multilaterais de desenvolvimento para usarem sua plena capacidade em apoio de sua agenda de ajuda…”

“Assegurar-nos-emos que o FMI, o Banco Mundial e os outros bancos multilaterais de desenvolvimento tenham os recursos suficientes para continuar desempenhando seu papel na resolução da crise.”

“Exercitaremos uma forte vigilância sobre as agências de crédito, com o desenvolvimento de um código de conduta internacional.”

“Comprometemo-nos a proteger a integridade dos mercados financeiros do mundo, reforçando a proteção do investidor e do consumidor.”

“Estamos comprometidos a avançar na reforma das instituições de Bretton Woods, de molde a que possam refletir as mudanças na economia mundial para incrementar sua legitimidade e efetividade.”

“Reunir-nos-emos de novo no dia 30 de abril de 2009 para rever a entrada em funcionamento dos princípios e decisões tomadas hoje.”

“Admitimos que estas reformas só terão sucesso se estão na base do compromisso com os princípios do livre mercado, incluindo o império da lei, respeito à propriedade privada, investimento e comércio livre, mercados competitivos e eficientes e sistemas financeiros regulados efetivamente.”

“Abster-nos-emos de colocar barreiras ao investimento e ao comércio de bens e serviços.”

“Somos conscientes do impacto da atual crise nos países em desenvolvimento, nomeadamente nos mais vulneráveis.

“Enquanto avançamos, temos a certeza de que mediante a colaboração, a cooperação e o multilateralismo superaremos os desafios que temos ante nós e conseguiremos restabelecer a estabilidade e a prosperidade na economia mundial.”

Linguagem tecnocrática, inaccessível para as massas.

Preitesia ao império, que não recebe crítica alguma a seus métodos abusivos.

Louvores ao FMI, ao Banco Mundial e às organizações multilaterais de créditos, criadores de dívidas, despesas burocráticas fabulosas e investimentos encaminhados ao fornecimento de matérias-primas às grandes transnacionais, que além disso são responsáveis pela crise.

E assim por diante, até o último parágrafo. É aborrecida, pragada de lugares comuns. Não disse absolutamente nada. Foi subscrita por Bush, campeão do neoliberalismo, responsável de chacinas e guerras genocidas, que investiu em suas aventuras sangrentas todo o dinheiro que teria sido suficiente para mudar a face econômica do mundo.

No documento não se diz uma palavra do absurdo da política de converter os alimentos em combustível que propugnam os Estados Unidos, do intercâmbio desigual de que somos vítimas os povos do Terceiro Mundo, nem sobre a estéril carreira armamentista, a produção e comércio de armas, a ruptura do equilíbrio ecológico, e as gravíssimas ameaças à paz que colocam o mundo à beira do extermínio.

Só uma pequena frase perdida no comprido documento menciona a necessidade de “encarar a mudança climática”, quatro palavras.

Pela declaração se verá como os países presentes no conclave demandam reunir-se de novo em abril de 2009, no Reino Unido, no Japão ou em qualquer outro país que possua os requisitos adequados ―ninguém sabe qual―, para analisar a situação das finanças mundiais, com o sonho de que as crises cíclicas nunca voltem a se repetir com suas dramáticas conseqüências.

Agora corresponderá aos teóricos de esquerda e de direita opinar fria ou acaloradamente sobre o documento.

Do meu ponto de vista, não foram roçados nem com a pétala de uma flor os privilégios do império. Se se dispor da paciência necessária para lê-lo desde o princípio até o final, poderá se constatar como se trata simplesmente de um apelo piedoso à ética do país mais poderoso do planeta, tecnológica e militarmente, na época da globalização da economia, como quem rogam ao lobo que não devore o Chapeuzinho Vermelho.


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Inclusão 09/07/2019