Perfil do Negro Brasileiro

Edison Carneiro

Agosto de 1985


Fonte: Revista Princípios nº 11, ago/1985, pag:45-50.

Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.


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Parece que o primeiro negro a aportar ao Brasil veio da armada de Martin Afonso. Negros e mulatos, uns ainda escravos, outros já forros, acompanharam o Governador Tomé de Sousa na edificação da Cidade de Salvador (1549). Eram os precursores de milhões de negros africanos que, durante dois séculos e meio, foram carregados pelo tráfico para o trabalho na nova terra.

Na época do descobrimento, Portugal já estava na posse dos arquipélagos da Madeira e do Cabo Verde, do litoral da Guiné, das ilhas São Tomé e Príncipe, da embocadura do Zaire e de Moçambique e havia plantado uma fortaleza na antiga Costa do Ouro (Gana). E, no século XVI, começaria a conquista de Angola. De todos esses pontos vieram escravos para o Brasil.

As feitorias estabelecidas nas ilhas desertas da Madeira e do Cabo Verde detinham o monopólio do comércio de escravos que os negreiros iam buscar nos “rios de Guiné", uma extensa região cortada de rios e canais navegáveis, muito maior do que a atual Guiné Portuguesa, afinal reduzida pela crescente pressão dos franceses ao Norte (Senegal) e dos ingleses ao Sul (Serra Leoa). Os entrepostos ficavam no Rio de Cacheu e na Ilha de Bissau, cercados de paliçadas e guarnecidos com artilharia, a cargo de “lançados”, brancos e mulatos corajosos que se incumbiam de reunir escravos e mercadorias em pontos onde os pudessem recolher as embarcações portuguesas. Habitavam os “rios de Guiné” tribos de biafadas, papéis, manjacos, brames, balantas. felupes, baiotes, banhuns, nalus e bijagós, que, se chegaram até o Brasil, nem mesmo o nome deixaram de lembrança, assim como fulas e mandingas. Estes últimos, alcançados de algum modo pela penetração religiosa, política e militar do Islã em terras sudanesas, estavam em pleno processo histórico de criação de Estados e nacionalidades, interrompido violentamente pela escravidão e, mais tarde, pela ocupação militar de seu território pelas potências coloniais da Europa. Uns e outros cobriam, com milhares de povoados, a faixa meridional do Sudão, virtualmente desde o Rio Senegal até quase o lago Tchad.

Os fulas (Fullah, Fellata, Foublé, Peul) e os mandingas (Mali, Mandinka, Mandê), vindos da Guiné Portuguesa, foram desembarcados em todo o Nordeste, para a lavoura e as fábricas de açúcar; e, a partir da fundação de Belém (1616), na Amazônia. Uma companhia privilegiada, a de Cacheu, fazia o transporte. Esses negros, genericamente chamados “peças de Guiné”, logo foram absorvidos na incipiente população brasileira. Os fulas singularizavam-se pela cor opaca, tendendo para o pálido,e o gentílico em pouco tempo se tornou um qualificativo comum para todo negro com a mesma compleição (fulo, negro fulo, negrinha fula) e, mais tarde, por extensão, passou a aplicar-se à ausência momentânea de cor nas faces da pessoas, negros ou brancos (fulo de raiva). Os mandingas, que não haviam perdido de todo as antigas crenças pagãs ao contato com o Islã, pois na África Negra a adesão ao maometanismo foi um fenômeno essencialmente de cúpula, deram à língua portuguesa, com a sua designação tribal, um novo sinônimo para encarnações e artes mágicas. O tráfico procedente da Guiné foi, entretanto, reduzido, sem termo de comparação com o das outras áreas.

De Angola para cá

Mal se afirmava o tráfico na Guiné, contra o qual até a geografia do país militava, e já os portugueses se assenhoreavam, pela força das armas, de nova fonte de braços na África. Em 1576 Paulo Dias de Novais fundava Luanda. O negro de Angola passou a concorrer com os de Guiné em todos os portos principais de escravos: Rio de Janeiro, Bahia, Recife e São Luís. Enquanto duraram as lutas por avassalar o régulo Ngola e os seus sucessores, Inácio Airi e a Rainha Jinga (Ana de Sousa). O comércio de escravos se fez em pequena escala. Em 1641, os holandeses, já senhores de Pernambuco, tomaram a nova colônia portuguesa de Angola e de lá trouxeram os negros, em grande número, para o Recife, onde os vendiam para toda a zona sob o domínio batavo, do Ceará a Alagoas. Cabia ao Brasil, no sistema administrativo colonial, a responsabilidade pelo governo de Angola: os negreiros emprestavam o dinheiro necessário para uma expedição armada contra os holandeses e sete anos mais tarde (1648), Salvador de Sá ganhava a batalha da restauração. Assim, povos negros de língua banto chegaram ao Brasil, quase ininterruptamente, até o fim do tráfico (1850): muxicongos (Mushicongo), banguelas (ganguelas),rebolos (libollos) e caçanjes de Angola, cambindas (cabindas) da colônia vizinha do Congo. E, com base ou escala em Luanda, os tumbeiros contornavam a região meridional do continente para alcançar Moçambique, ou seja, a Contra-Costa, de onde traziam, para vender no Brasil, negros macuas e anjicos.

Com o século XVIII inicia-se o tráfico com a Costa da Mina, vale dizer, o litoral setentrional do Golfo da Guiné. Dos “rios da Guiné" para o sul o litoral africano estava subdividido em várias “costas”: a da Guiné, a da Malagueta, a do Marfim, a do Ouro e a dos Escravos. No século XVIII, a Costa da Mina englobava as três últimas “costas”, numa extensão total de 426 léguas, do Cabo de Palmas ao Cabo Lopez, no Delta do Ogooué (Gabão). Os portugueses já haviam tentado estabelecer- se nessa região, tendo levantado, anteriormente ao descobrimento do Brasil (1482), o Castelo de São Jorge da Mina, que lhe deu o nome. O forte, entretanto, caíra em poder dos holandeses ao tempo em que dominavam o Nordeste brasileiro (1637). Uma provisão real de 1644 permitiu a navios matriculados na Bahia e no Recife o comércio na Costa da Mina e mais ou menos em 1680 os governadores das ilhas de São Tomé e Príncipe erigiram no Daomé, o Forte de São João Batista de Ajudá (whydah dos ingleses, Ouidah dos franceses), recentemente incendiado e abandonado, ao perder a sua extraterritorialidade, pelos portugueses. Mas o comércio com a Costa da Mina só teve confirmação real em 1699. Foram então autorizadas a realizar o resgate de escravos naquela área 24 embarcações, registradas no porto da Bahia, levando cada qual mercadoria, tabaco, açúcar, aguardente, equivalente a 500 negros.

Várias Nações Negras

Os negros dessa região costumavam subir a bordo dos navios para fazer o alborque de ouro em pó, que traziam ao pescoço em barrilinhos (aquis) nominalmente equivalentes a meia oitava brasileira. A experiência com o ouro os indicava e predispunha, no consenso geral, para o trabalho nas catas de ouro e diamantes em Minas Gerais. O tráfico trouxe negros das mais variadas tribos, como fântis e axântis (Ashanti), chamados no Brasil minas; txis (Tshi) e gás, das vizinhanças do Castelo da Mina; euês e fons, conhecidos aqui por uma das suas designações menores, jejes (djeje); iorubas, que os brasileiros preferem, como os franceses, dizer nagôs; tapas, hauças, canures (Kanuri), fulas, mandingas e grunces (Gurunsi). Estes negros, trazidos para a Bahia, eram daí transferidos, pelo interior, para as minas, onde se vendiam a bom preço. As condições de transporte eram as melhores de todo o período do tráfico: enquanto os tumbeiros procedentes de Angola perdiam, em média, um décimo da carga humana, os que vinham da Costa da Mina registravam apenas um prejuízo de 5%. E. dada a pressuposição de experiência em mineração, o negro da Costa da Mina custava mais caro do que o de Angola, simples braço de trabalho. Em pouco tempo estes negros se constituíram numa elite da massa escrava, em especial do ponto de vista religioso. Tapas, nagôs e hauçás, muçulmanos (malês), comandaram os negros da Bahia em sucessivas insurreições entre 1806 e 1835: uma projeção da jihad no Novo Mundo. Xangôs, candomblés, macumbas, todos os cultos negros do Brasil obedecem, em linhas gerais, ao modelo de culto oferecido por nagôs e jejes. Muito procurados nos primeiros anos da mineração, por volta de 1750 apenas mil deles eram adquiridos anualmente em Minas Gerais, à medida que a exploração de ouro e dos diamantes passava das mãos dos particulares para o governo da metrópole. Concentrados em maior número na Bahia, foram subsequentemente vendidos para serviços domésticos urbanos no Rio de Janeiro, no Recife e no Maranhão.

A ocupação efetiva do território brasileiro alterou substancialmente esta disposição do elemento escravo. Desde o começo dos portos de desembarque foram centros de distribuição de negros: o de São Luís abastecia a Amazônia, o de Recife o Nordeste; a Bahia servia a Minas Gerais, o Rio de Janeiro a Minas e São Paulo. E desses destinos secundários o negro era revendido para mercados menores do interior, como Goiás e o Rio Grande do Sul. A sucessiva mudança do interesse econômico principal, do açúcar para o ouro, do ouro para o café, impôs demorado e variado contato linguístico, religioso e sexual entre negros das mais diversas nações africanas.

A exploração do açúcar, decadente e em ruína, estava praticamente em bancarrota com o envilecimento dos preços no mercado internacional, quando se inaugurou o ciclo do ouro. Os braços ociosos no litoral foram absorvidos pelas minas, que, insaciáveis, forçaram a intensificação do comércio com Angola e impuseram a navegação para a Costa da Mina. Em breve, porém, a exploração do ouro e dos diamantes, antes de iniciativa particular, passou a fazer-se sob o controle direto do governo da metrópole, a princípio com os contratos, em seguida com a Real Extração. O negro, já parcialmente desviado das minas para a agricultura e pecuária, foi então utilizado na cultura do café e, durante a guerra civil americana, do algodão. Em consequência, o negro adotou a língua portuguesa, a religião cristã, os costumes nacionais e, em suma, se destribalizou por completo.

Assimilação Local

Durante a escravidão, distinguiam-se o negro boçal ou novo, recém chegado da Africa, ainda sem conhecimento dos costumes do país; o negro ladino, africano, mas já com experiência da sociedade brasileira, e o negro crioulo, nascido e criado aqui. Uns e outros foram compelidos a ajustar-se às condições vigentes no Novo Mundo. A Igreja Católica, oficial, apenas batizava o negro novo antes de seguir para o interior, mas durante algum tempo, tentou orientar para a religião cristã, nas cidades, primeiro os ladinos, em seguida os crioulos e os mulatos, favorecendo a criação de Irmandades. O Estado recrutou negros e pardos para formações militares subalternas, as ordenanças, depois chamadas Henriques, do nome do chefe de uma delas, que se distinguira na guerra contra os holandeses. O trabalho produtivo na cana-de-açúcar, na moenda dos engenhos, no tabaco, na cata do ouro e dos diamantes, no algodão, no café, na pesca da baleia, em artes e ofícios diversos e na prestação de serviços foi, porém, o fator mais constante de assimilação, impondo a língua, a alimentação, os trajes, os hábitos de trabalho e repouso, as relações familiares, a etiqueta e a disciplina. Esta vigorosa compulsão social, comparável, segundo imagem corrente, a um rolo compressor, produziu, por um lado, negros forros e libertos (livres) e, por outro, três tipos de trabalhadores escravos, o negro de campo, o negro de ofício e o negro doméstico. A adaptação forçada do negro preparou o caminho para a sua ascensão social, que se fez, penosamente, com o estabelecimento de relações primárias, de confiança e de respeito mútuos, entre senhor e escravo e, por fim, com a alienação e socialização do trabalho deste último.

De muitas maneiras o negro conquistava a liberdade, uma liberdade precária, constantemente ameaçada pela polícia e pelo arbítrio dos brancos. Havia o negro forro, beneficiado diretamente pelo senhor, em geral em testamento, e o negro liberto, que comprava a sua liberdade ou a obtinha em virtude de lei ou de promessa do governo por serviços especiais. A alforria contemplava de preferência os velhos, doentes e inabilitados.

Se de muitos dos forros se pode dizer que foram produto da bondade e do reconhecimento, a maioria deles, certamente serviu à conveniência do senhor, que deste modo se eximia de alimentá-los e vesti-los, em especial sempre que a exploração econômica pôs em perigo a sua estabilidade financeira. O escravo, por si mesmo, podia obter a alforria se, tendo juntado soma igual àquela por que fora adquirido, propusesse a transação ao senhor. Do plano individual, este esforço pela liberdade passou ao plano coletivo. Conhece-se a lenda de Chico-Rei, em Vila Rica; mas a lenda se tornou realidade em toda parte, com as juntas de alforria, mais ou menos associadas às Irmandades do Rosário e de São Benedito, em que o dinheiro angariado por todos servia, sucessivamente, à libertação de cada qual dos seus componentes. A lei civil protegeu os ingênuos após o Ventre-Livre (1871) e os sexagenários (1885); libertos por serviços especiais foram os homens de Henrique Dias, os praças do Batalhão dos Libertos da guerra da Independência na Bahia, os escravos que serviram no Paraguai. E. nos fins do Império, em virtude da hábil argumentação do advogado João Marques, muitos negros de “filiação desconhecida” (o brasileiro só seria escravo se nascido de ventre escravo) obtiveram a sua liberdade nos tribunais.

O Sofrimento no Campo

A grande maioria dos escravos, porém, não teve a ajuda de circunstâncias tão propícias. O negro de campo foi o braço agrícola. Mão-de-obra desqualificada, mourejou no cabo da enxada nos canaviais e nas roças de tabaco, no tempo da colônia e nas plantações de café e de algodão no Império. Esteve, mais do que os outros, sujeito à discrição do senhor e era este quem dispunha da sua vestimenta, da sua alimentação, da sua moradia, do seu tempo e mesmo das suas relações sexuais. Os castigos mais atrozes e aviltantes, o tronco, vira-mundo, cepo, libambo, peia, gonilha e as brutalidades mais terríveis, pontapés no ventre de escravas gestantes, olhos vazados e dentes quebrados a martelo, emparedamentos em vida, mutilações e aleijões, foram o quinhão do negro de campo, em especial enquanto o tráfico não sofreu limitações internacionais e, em consequência, a mercadoria humana era abundante e barata. Em sete a dez anos, estafado pelo trabalho de sol a sol (14 horas por dia), o negro de campo se transformava num trapo humano. Enquanto dispunha de alguma energia, organizava-se em quilombos, promovia levantes locais (Estado do Rio) ou regionais (Maranhão) ou abandonava em massa as fazendas (São Paulo). O Recenseamento de 1872, o último do Império, acusou menos de um milhão de lavradores entre a população escrava. Sobre seus ombros o negro de campo sustentou todo o comércio exterior do Brasil.

Com o negro de campo coexistiu o negro de ofício, que ocupava um escalão ligeiramente superior. Sob as vistas do senhor, ou às suas expensas, desenvolvia as suas aptidões naturais, especializando- se quer em serviços essenciais a exploração econômica preponderantes. quer em profissões ancila- res. O negro “de partes” ou “oficial” surgiu, primeiro, na fábrica de açúcar, ainda no século XVI, na moenda, na caldeira, na casa de purgar e na caixaria do engenho. Mais tarde encontramos os homens como barbeiros, ferreiros, pedreiros, marceneiros, seleiros, canoeiros, as mulheres costureiras. Pouco após a descoberta das minas, o negro “de partes” valia 500 oitavas de ouro (800$000). No litoral, em 1837, um escravo qualquer custava 400$000, mas o preço de um “oficial” oscilava entre 600$000, 800$000 e um conto de réis; e o jornal médio do negro de ofício (640 réis) era o dobro dos demais. Por essa época já havia, no Rio de Janeiro, bons profissionais negros alfaiates capazes de cortar casaca, chapeleiras que competiam com as francesas, serralheiros, ourives, sapateiros etc. Estes negros tanto serviam ao senhor como aos seus vizinhos e, às vezes, a toda a comunidade. A capacidade pessoal, o interesse social do trabalho executado, os anos e o dinheiro gastos na sua aprendizagem, os elevavam na consideração geral, poupando-os à enxada e aos castigos corporais.

Trabalho doméstico e social

O negro doméstico integrou a famulagem do senhor. As mulheres mais bonitas e agradáveis e os homens mais sociáveis, inteligentes ou expeditos, e posteriormente os filhos destes, foram retirados do trabalho sempre que as flutuações do mercado internacional impuseram a diminuição da produção. Pajem, moço de recados, capanga, criados, quando homem, babá, mucama, cozinheira, doceira, quando mulher, o negro doméstico proliferou nas cidades, estabelecendo com a família do senhor relações amistosas que se traduziram em “crias da casa”, “afilhados”, “homens de confiança”. Todos serviam à ostentação do senhor, como sinal da sua riqueza e poder. Muitos deles aprenderam a ler, outros conseguiram reunir pecúlio suficiente a uma vida mais ou menos folgada. Estes negros foram mais numerosos no Nordeste açucareiro, na região das minas em fins do século XVIII e no Rio de Janeiro, nos últimos anos de escravidão.

Os excedentes do negro doméstico, produto da ociosidade parcial nas cidades, deram dois subtipos: o negro de aluguel e o negro de ganho, o primeiro preparado deliberadamente pelo senhor para, servindo a outrem, lhe trazer ganho, o segundo pagando ao senhor certa soma por dia em troca da sua liberdade de ação.

Desde o regime da Real Extração nas minas se alugavam escravos. O crescimento numérico do negro doméstico forçou o senhor a recorrer a esse expediente, que lhe economizava despesas e trazia algum lucro. Em parte, o negro de aluguel teve colocação em atividades de tipo industrial, em especial na fabricação de tecidos, mas também em metais, madeiras, edificações, couros e peles, tinturaria, vestuário, chapéus, calçados ou como canteiros, calceteiros, mineiros e cavouqueiros, perfazendo, em 1872, um total de cerca de 30.000 escravos. Os restantes, em maior número no Rio de Janeiro e em São Paulo, foram absorvidos no século XIX, pelo serviço doméstico alheio, de estrangeiros e burgueses, nas cidades. O inglês John Luccock, que esteve no Brasil durante o reinado de João VI, vislumbrou “uma nova classe social” no grande número de pessoas que se davam à tarefa de habilitar escravos para aluguel ou venda, se possível. É ilustrativo do requinte com que eram preparados os anúncios de venda (1850) de “uma linda parda muito prendada, perfeitíssima costureira de cortar e fazer camisas de homem e vestidos de senhoras de qualquer moda que se lhe apresente, borda, marca e faz crivo com toda a perfeição, enfeita chapéus para senhora como qualquer francesa, engoma o melhor possível, é boa doceira, penteia e veste uma senhora com toda delicadeza, enfim, é uma mucama prendada no último ponto, por ter aprendido em um colégio...”

Carregadores, moços de recados, condutores de cadeiras de arruar, vendedores ambulantes, os ganhadores, — o negro do ganho — se incumbiam da movimentação de fardos, cargas e encomendas e da locomoção pública nas cidades e prestavam serviços de toda natureza em troca de alguns vinténs. No Rio de Janeiro traziam cestas e varas, na Bahia e no Recife balaios e rodilhas. Se, em grupo, transportavam volumes pesados, cantavam para aliviar o trabalho. Uma dessas canções foi recolhida na Bahia:

É, cuê
ganhadô
gana Bahia: “Ê, cuê
ganhadô
ganha dinherô
prá seu sinhô.

O vivia por conta própria, às vezes sem fazer refeições ou dormir na casa do senhor, mas com a obrigação de pagar-lhe uma pataca (360 réis) por dia. Estes escravos desfrutavam assim, de quase completa liberdade de movimentos, de que usavam para, em outras bases, reconstruir a vida.

Transformando-se em cidadão

Assim, mais do que as leis, as condições sociais e econômicas, ajudadas pelo esforço individual e coletivo dos negros, propiciaram e prepararam a progressiva elevação do escravo a cidadão. O ritmo crescente deste processo explica por que o Treze de Maio beneficiou apenas uns 750.000 escravos, cerca da metade dos recenseados 16 anos antes (1872) e menos de um décimo do total da população de cor.

Paralelamente, o negro vinha influenciando os costumes brasileiros. As estórias do Quibungo deleitaram e aterrorizaram a meninada; os cultos de origem africana, já com orientação jeje-nagô, floresceram nos centros principais, conquistando adeptos em todas as classes; a capoeira e a pernada, que antes haviam defendido a liberdade de negros e mulatos, se acrescentaram às formas nacionais de ataque e defesa; o batuque de Angola invadiu o terreiro das fazendas e daí fez o caminho para as cidades, sob a forma de lundu, baiano, coco, samba; os modos de fazer da África encontraram lugar na cozinha, com a introdução do vatapá, caruru, do arroz de cuxá; o traje da baiana substituiu os antigos, impostos pelo senhor.

O negro tomou conta da rua. Sendo a maioria da população ativa, participou de todas as atividades, urbanas, procissões, festas tradicionais, batizados, casamentos, enterros, eleições. Os cortejos do rei do Congo serviram de modelo a maracatus e afoxés. O frevo, produto remoto da capoeira, a folia de São Benedito, inspirada na do Divino, e a escola de samba, que valorizou elementos de ternos e ranchos de Reis, fizeram o seu aparecimento. O bumba-meu-boi e a dança dos bastões, folguedos da Europa, encontraram tal receptividade entre os negros, que ao primeiro foram incorporados personagens e à segunda rituais que os lembram. Tão brasileiro se sentia o negro, que se engajou na aventura das bandeiras; que em 1798 participou de uma revolta na Bahia por “um governo de igualdade”; que aderiu à exaltação do indígena como símbolo da nacionalidade, durante a revolução da Independência, e o sacrificou nos seus cultos (caboclos) ou o festejou nos seus folguedos (cucumbis, caboclinhos e caiapós); que, por palavras e atos, fez a campanha abolicionista (Luís Gama, José do Patrocínio, Rebouças).

Ao se instalar a República, o negro já era, em toda a força do termo, um brasileiro, integrado na vida, na paisagem cultural e humana e nos destinos do país, credor de contribuições valiosas à formação da nacionalidade. A força de trabalho, inteligência, cordialidade e senso de oportunidade, forjara para si, em três séculos de escravidão, marcados a suor e sangue, um lugar ao sol.

Insubstituível, esse lugar se exprime, não apenas nas terça parte da população que negros e mulatos preenchem, mas na democracia racial que cada dia torna mais indiferente a questão da cor entre os brasileiros.


Inclusão: 11/11/2019