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Fonte: http://www.didinho.org/Arquivo/partirdarealidadedanossater.html
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Outro problema que podemos passar a discutir é o seguinte princípio do nosso Partido: Nós avançamos para a nossa luta seguros da realidade da nossa terra (com os pés fincados na terra).
Quer dizer, em nosso entender não é possível fazer uma luta nas nossas condições, não é possível lutar de facto pela independência de um povo, não é possível estabelecer de facto uma luta armada como a que tivemos que estabelecer na nossa terra, sem conhecermos a sério a nossa realidade e sem partirmos a sério dessa realidade para fazer a luta.
A nossa realidade, como todas as outras realidades, tem aspectos positivos e aspectos negativos, tem forças e tem fraquezas.
Qualquer que seja o lugar onde tenhamos a nossa cabeça, os nossos pés estão fincados no chão da nossa terra, na Guiné e Cabo Verde, na realidade concreta da nossa terra, que é o facto principal que pode orientar o trabalho do nosso Partido.
Há gente no mundo que pensa que a realidade depende da maneira como o homem a interpreta. A realidade, coisas que se vêem, que se tocam, que se sentem, o mundo que está á volta de cada ser humano, para essa gente é o resultado daquilo que o homem tem na cabeça. Há outras pessoas que pensam que a realidade existe e o homem faz parte da realidade. Não é o que ele tem na cabeça que vai determinar a realidade, mas é a própria realidade que determina o homem. O homem é parte da realidade, o homem está dentro da realidade e não é aquilo que se tem na cabeça que determina a realidade. Pelo contrário, a própria realidade em que o homem vive é que determina as coisas que o homem tem na sua cabeça.
Os camaradas podem perguntar: Qual é a nossa posição, do PAIGC, em relação a essas duas opiniões? A nossa opinião é a seguinte: O homem é parte da realidade, a realidade existe independentemente da vontade do homem, e o homem, na medida em que adquire consciência da realidade, na medida em que a realidade influencia a sua consciência, cria a sua consciência, ele pode adquirir a possibilidade de transformar a realidade a pouco e pouco. Esta é que é a nossa opinião, digamos, o princípio do nosso Partido, sobre as relações entre o homem e a realidade.
Uma coisa muito importante numa luta de libertação nacional é que aqueles que dirigem a luta nunca devem confundir aquilo que têm na cabeça com a realidade. Pelo contrário, quem dirige uma luta de libertação nacional deve ter muitas coisas na cabeça, cada dia mais, tanto a partir da própria realidade da sua terra, como da realidade doutras terras, mas ele deve medir, fazer planos, respeitando a realidade e não aquilo que tem na cabeça. Isso é muito importante, e o facto de não o respeitar tem criado muitos problemas na luta de libertação dos povos, principalmente em África.
Eu posso ter a minha opinião sobre vários assuntos, sobre a forma de organizar a luta, de organizar um Partido, opinião que aprendi, por exemplo, na Europa, na Ásia, até mesmo talvez noutros países de África, nos livros, em documentos que li, com alguém que me influenciou. Mas não posso pretender organizar um Partido, organizar uma luta de acordo com aquilo que tenho na cabeça. Tem que ser de acordo com a realidade concreta da terra.
Podemos dar muitos exemplos. Claro que não podemos pretender, por exemplo, organizar o nosso Partido de acordo com os partidos da França ou de qualquer país da Europa, ou mesmo da Ásia, com a mesma forma de Partido. Começámos um bocado assim, mas aos poucos tivemos que mudar para nos adaptarmos à realidade concreta da nossa terra. Outro exemplo: no começo da nossa luta, estávamos convencidos de que, se mobilizássemos os trabalhadores de Bissau, de Bolama, de Bafatá para fazerem greves, para protestarem nas ruas, para reclamarem na Administração, os tugas mudariam, nos dariam a independência. Mas isso não é verdade. Em primeiro lugar, na nossa terra, os trabalhadores não têm tanta força como noutras terras. Não é uma força tão grande do ponto de vista económico, porque na nossa terra é fundamentalmente no campo, que reside a grande força económica. Mas no campo era quase impossível fazer greves, dadas as condições da situação política do nosso povo, da sua consciência política, e até dos seus interesses imediatos. Era impossível fazer o nosso povo parar de cultivar aquelas coisas que os colonialistas estavam a explorar. Além disso, o tuga, nosso inimigo colonialista, não é como nós, que temos um certo respeito por certas coisas. Às greves e às manifestações, os tugas responderam caindo em cima de nós para matar todos, para acabar com tudo.
Assim, tínhamos que adaptar a nossa luta a condições diferentes, à nossa terra, e não fazer como se fez noutras terras.
E muitas outras coisas mostram claramente que é preciso ter em conta de facto a realidade concreta da terra, para fazer a luta. Mesmo na questão da mobilização, preparação de gente, etc., tivemos que considerar o problema na Guiné duma maneira e em Cabo Verde doutra maneira.
Porque no caso da Guiné, podemos estar ou na República da Guiné ou no Senegal, ir e vir. Em Cabo Verde já é mais difícil porque está no meio do mar, temos que arranjar um outro processo para garantir melhor a luta, para não haver necessidade de muito vai e vem. E na evolução da luta, mais tarde, quando começarmos a luta armada em Cabo Verde, tem que ser uma luta armada feita duma maneira um bocado diferente da Guiné. Porque não podemos pôr o problema como, por exemplo, em 1962, na nossa terra, em que os nossos camaradas estavam muito afrontados (fronta) no mato — ainda não tínhamos armas — e nós demos ordens para saírem todos os quadros. E saíram mais de 200 quadros para evitar muitas desgraças. Até que depois entrámos de novo e avançámos com a luta. Em Cabo Verde não podemos fazer isso, fazer muita gente sair rapidamente.
Temos que considerar em cada caso concreto, a realidade concreta. Mesmo na Guiné, por exemplo: cometemos um erro grave na nossa análise antes da luta, embora tivéssemos tomado em atenção bastante as condições de vida do povo balanta, do povo fula, do povo mandinga, do povo papel... e qual a sua posição na luta. Tivemos em atenção os pequeno-burgueses, os trabalhadores assalariados, empregados de balcão, empregados do porto... e qual a sua posição na luta, descendentes de cabo-verdianos e qual a sua posição na luta. Tomámos tudo isso em atenção, mas cometemos um erro grande. É que não tomámos bem em consideração a situação dos chefes tradicionais, dos régulos (fulas, manjacos), esses dois sobretudo. Não o tomámos bem em atenção, porque partimos do princípio seguinte: eles (os seus grandes) anteriormente lutaram contra os tugas, foram vencidos, portanto devem ter vontade de lutar outra vez. Foi um erro; enganámo-nos.
Devemos considerar que aprendemos a fazer a luta à medida em que fomos avançando (no caminho). A luta no litoral da nossa terra é uma, entre os manjacos é outra, no Oio tem que ser de outra maneira. Há muitas diferenças. Por exemplo, os homens grandes mandingas: temos que ver a maneira de lidar com eles, não da mesma maneira que tratamos com os homens grandes balantas. Mas em Gabú tivemos que fazer a luta duma maneira completamente diferente. Se compararmos a luta em Gabú com a luta no Sul da nossa terra, são duas lutas como se se tratasse de duas terras diferentes.
É preciso realismo, considerar a realidade concreta. Mesmo na questão de certas coisas que estão a avançar aos poucos. No começo, os homens não queriam reuniões com as mulheres. Passo a passo, não forçámos, enquanto noutras áreas as mulheres entraram logo nas reuniões, sem problemas. Nós temos que ter consciência da realidade, não só da realidade geral da nossa terra, mas das realidades particulares de cada coisa, para podermos orientar a luta correctamente. Os responsáveis ou dirigentes que têm esse sentido da realidade em consideração, que não pensam que a verdade é aquilo que têm na cabeça, mas que a verdade é aquilo que está fora da sua cabeça, só esses é que podem orientar bem o seu trabalho de militantes, de responsáveis, numa luta como a nossa. Infelizmente, devemos reconhecer que muitos camaradas tomaram responsabilidades nesta luta sem considerar esse factor, embora nós sempre tenhamos dito isso.
Mas a realidade não é nenhuma coisa que existe ela só, por exemplo: o nosso camarada Manuel Nandigna é uma realidade, é um facto real. Mas ele não pode existir sozinho, ele só não é nada, uma realidade nunca está isolada de outras realidades. Qualquer que seja a realidade que considerarmos no mundo ou na vida, por mais pequena ou por maior que seja, ela faz sempre parte de outra realidade, está integrada noutra realidade, está influenciada por outras realidades, que também têm influência noutras ou doutras realidades. Tanto a nossa terra, Guiné e Cabo Verde, como a nossa luta, fazem parte de uma realidade maior que essa, e é influenciada e influencia outras realidades no mundo. Por exemplo, se considerarmos a realidade da Guiné e a realidade de Cabo Verde: primeiramente, existe já uma realidade maior, Guiné e Cabo Verde.
Mas essa realidade está dentro da realidade da África Ocidental; com os nossos dois países vizinhos ainda mais perto; podemos alargar um bocadinho mais, com os nossos dois países vizinhos primeiro, com a África Ocidental depois, e com a realidade da África toda e com a realidade do mundo, embora haja outras realidades entre estas.
Quer dizer, a nossa realidade, para nós, está no centro duma realidade complexa, porque é a que mais nos interessa. Para outras gentes não seria assim, ela estaria noutro lado qualquer, e a realidade central seria a delas. Mas mesmo que a consideremos no centro, a nossa realidade não está isolada, não está só. Em muitas coisas que temos de fazer, temos que pensar antes que estamos integrados noutras realidades. Isso é muito importante para não cometermos erros.
Suponhamos a posição dum corpo do nosso Exército num lado qualquer. Ele não pode agir nunca como se fosse uma realidade isolada, tem que agir sempre como integrado num Exército do PAIGC, integrado na luta do povo da Guiné e Cabo Verde. Se agir assim, está a agir bem, se não agir assim, está a agir mal. Um comissário político, por exemplo, de Quinara ou de qualquer outro lado, por exemplo S. João, tem que agir sempre como integrado em Quinara, mas não só em Quinara, no Sul, em todo o Sul, e não só aí, na Guiné inteira, e não só aí, na Guiné e Cabo Verde juntos. Temos que ter em cada momento a parte e o conjunto. Só assim é que podemos agir bem, mas infelizmente a tendência de muitos camaradas é fazer da sua realidade a única realidade que existe, esquecendo-se do resto. A tal ponto que é possível encontrar, por exemplo, camaradas numa determinada área que sabem que os camaradas doutra área não têm munições e não são capazes de mobilizar a sua gente para levar as munições. Isso mostra a nossa falta de consciência de ver a nossa própria realidade, e como é que estamos integrados numa realidade maior, que nós próprios criámos, mas que não temos ainda plena consciência dela.
Além disso, temos que contar com a realidade dos outros. Dentro da nossa terra, por exemplo, o trabalho de um comissário político pode ser muito bom, suponhamos em Sara. Mas se no Oio, em Biambi, ou na área de Bafatá, o trabalho político não é bom, o trabalho em Sara não avança tanto.
Um corpo do nosso Exército, suponhamos, de Canchungo, ou da área de Nhacra, pode lutar bastante, atacar os tugas todos os dias. Mas se, noutras áreas, outras unidades do nosso Exército não lutam bastante, o sacrifício e as vitórias de Nhacra ou de Canchungo não têm o devido valor.
Mas para nós ainda há mais: se a luta na Guiné avançar muito, mas a luta em Cabo Verde não avançar nada, mais dias menos dias prejudicamos a luta na Guiné grandemente. Basta dizer o seguinte, do ponto de vista estratégico: não pode haver paz na Guiné se os tugas tiverem bases aéreas em Cabo Verde, é impossível. Se libertamos totalmente a Guiné, por exemplo, os tugas podem bombardear-nos com bases aéreas instaladas em Cabo Verde. Podem conseguir muitos mais aviões e a África do Sul, que tem interesses em Cabo Verde, pode fornecer-lhes grande quantidade. Temos que estudar a possibilidade de levar para a frente estas duas realidades ao mesmo tempo, como uma realidade de conjunto, uma só realidade.
Mas se nós, na Guiné e em Cabo Verde, lutarmos muito, e os povos de Angola e Moçambique não lutarem nada, se porventura os tugas pudessem tirar todas as tropas de Angola e Moçambique e mandá-las para a nossa terra, não sei quando conquistaríamos a nossa independência, porque os tugas iriam morar em todas as nossas tabancas. Seriam tantos que poderiam ocupar todas as tabancas e lavrar o arroz. Estamos a ver, portanto, que a realidade da nossa luta faz parte da realidade da luta das colónias portuguesas, que nós queiramos ou não; não é uma questão da vontade, não que eu decidi isso, nem o Bureau Político do Partido, não foi nenhum de vocês que decidiu. Que nós queiramos ou não, é assim. Essa é que é a força da realidade. Tudo está é no seguinte: termos consciência disso, trabalharmos para podermos caminhar todos juntos, como deve ser. É a única coisa que pode explicar a política do nosso Partido, a teimosia do nosso Partido com a CONCP, quer dizer, com o grupo dos movimentos das colónias portuguesas, no seu conjunto. Porque nós sabemos o que é a realidade. Nós mesmos, tivemos uma grande influência na criação da FRELIMO, movimento de Moçambique, porque era preciso lutar em Moçambique e depressa.
Mas nós podemos lutar em todas as colónias portuguesas e até ganhar a nossa independência, mas se o racismo continuar na África do Sul, com os colonialistas a mandar ainda, directa ou indirectamente, em muitas terras de África, não podemos acreditar numa independência a sério em África. Mais dia menos dia a desgraça virá de novo. Portanto, nós fazemos parte de uma realidade concreta que é a África, lutando contra o imperialismo, contra o racismo, contra o colonialismo. Se não temos consciência disso, podemos cometer muitos erros.
E mesmo do lado da nossa terra, olhando para a República de Guiné e o Senegal, com Cabo Verde à frente, no meio do mar, tendo em frente a Mauritânia, o Senegal, a Guiné. Nós constituímos um conjunto em que as partes estão dependentes umas das outras. Por exemplo, a nossa luta depende muito da República de Guiné e do Senegal também. Desde o princípio realizámos a importância que tinham para nós a República da Guiné e o Senegal. Nós orientámos toda a nossa luta no sentido de avançarmos com eles, de criar condições favoráveis para beneficiar das consequências dessa realidade. Mas é preciso termos consciência do seguinte: é que tanto a República da Guiné como o Senegal têm consciência de que a nossa realidade também é importante para a sua realidade, e dessa consciência depende a maior ou menor ajuda que eles possam dar. Porque cada um deles deve pensar: — Quem é que amanhã vai mandar naquela terra? Isso é importante para nós ou é contra o nosso interesse? É todo um problema. Mas os tugas têm também a noção clara disso. Ainda há dias, por exemplo, eu fui à Mauritânia, e todos as rádios do mundo disseram que tive conversações com o presidente Ould Dadah, que fui muito bem recebido, etc. Imediatamente, os tugas desencadearam uma campanha na sua Rádio, a África do Sul também desencadeou por seu lado outra campanha, dizendo que eu fui à Mauritânia para estabelecer uma base para atacar Cabo Verde. E que já disseram há muito tempo que o nosso objectivo é prejudicar o pacto do Atlântico. Vocês vêem, portanto, como é que todas as realidades têm uma relação. Mas todos nós, em África, fazemos parte de uma realidade — do Mundo — que tem todos os problemas que vocês conhecem e, queiramos ou não, estamos metidos nesses problemas.
Hoje, o homem passeia na lua, colhendo os pedaços do solo da lua para trazer para a Terra. Parece que isso não tem nada a ver connosco, filhos da Guiné e Cabo Verde. Nós ainda estamos com os pés na lama para tirar os tugas da nossa terra. Mas tem uma grande importância para a nossa causa amanhã, e se não estivéssemos nesta luta difícil, devíamos fazer uma festa grande pelo facto de o homem ter chegado à lua. Isso é muito importante para o futuro da humanidade, da nossa Terra, deste planeta onde vivemos.
A realidade dos outros tem interesse para nós, portanto. A experiência dos outros também. Se eu souber que um de vocês saiu por um dado caminho, tropeçou por todos os lados, magoou-se, e chegou todo quebrado, e se eu tiver de ir pelo mesmo caminho, tenho que ter cuidado, porque alguém já conhece a realidade desse caminho e eu conheço a sua experiência. Se houver outro caminho melhor eu procuro segui-lo, mas se não houver, então tenho de apalpar com todo o cuidado, arrastando no chão se for preciso. A experiência dos outros tem grande importância para quem faz uma experiência qualquer. A realidade dos outros tem grande importância para a realidade de cada um. Muita gente não entende isso, pega na sua realidade com a mania de que vão inventar tudo: «Eu não quero fazer o mesmo que os outros fizeram, nada que os outros fizeram». Isso é uma prova de grande ignorância. Se queremos fazer uma coisa na realidade, temos que ver quem é que já fez igual, quem fez parecido, quem fez ao contrário, para podermos adquirir alguma coisa da sua experiência. Não é para copiar totalmente, porque cada realidade tem os seus problemas próprios e a solução própria para esses problemas.
Mas há muitas coisas que pertencem a muitas realidades juntas. É preciso que a experiência dos outros nos sirva, temos que ser capazes de tirar da experiência de cada um aquilo que podemos adaptar às nossas condições, para evitar esforços e sacrifícios desnecessários. Isso é muito importante. Claro que dentro da nossa luta é a mesma coisa. Um bom comissário político, por exemplo está a trabalhar, outro comissário político está ao lado, mas não se interessa pelo trabalho do primeiro, não procura conhecer a sua experiência, não procura saber porquê é que ele está a trabalhar bem. Vira as costas e vai sozinho fazer o seu trabalho. Um comandante está numa área, outros comandantes estão na mesma área, mesmo de nível mais baixo do que ele, mas não são capazes de trocar impressões com ele, não são capazes de lhe perguntar a maneira de resolver certos problemas, porque ele tem mais experiência, ele já viveu mais a luta. Mas não querem saber. Esses são os destruidores da luta. Claro que, para uma luta como a nossa, é preciso ligar a realidade com o desenvolvimento da luta. Ontem falámos bastante sobre certas contradições da nossa terra, tanto na Guiné como em Cabo Verde, no plano social.
Para desenvolvermos a nossa luta tivemos que considerar a realidade geográfica da nossa terra, a sua realidade histórica, a sua realidade étnica, quer dizer, de raças, de culturas; a realidade económica, social e cultural. E tudo isso envolvido pela realidade maior a nossa terra, no plano da luta, que é a realidade política, quer dizer: nós estamos sob a dominação colonial portuguesa, tanto na Guiné como em Cabo Verde.
Os camaradas conhecem, em geral, a realidade geográfica da nossa terra. Nós somos uma terra pequenina, ao todo cerca de 40.000 Km2, incluindo Guiné e Cabo Verde, sendo a Guiné nove vezes maior que Cabo Verde que são 10 ilhas na costa ocidental da África, encravado entre dois países africanos (a Guiné e o Senegal) e Cabo Verde, a cerca de 400 milhas da costa. Portanto, a nossa realidade é que nós temos uma parte continental e uma parte insular ou ilhas, constituída pelos ilhéus dos Bijagós e ilhas de Cabo Verde, formando ao todo mais de 100 ilhas e ilhéus.
Muita gente hoje talvez ainda não tenha compreendido a importância que isso tem, mas isso é muito importante para todas as coisas da nossa terra. Desde a defesa da nossa terra até à economia e riqueza e força da nossa terra. A nossa realidade geográfica, ainda, é que a Guiné na sua quase maioria, não tem nenhuma montanha, nenhuma elevação, (só para os lados do Boé é que tem algumas colinas, com o máximo de 300 metros de altura) e Cabo Verde são ilhas vulcânicas e montanhosas. Mesmo nesse aspecto vemos que um completa o outro. Uma terra não tem nenhuma montanha e a outra é toda de montanhas. Isso também tem grande importância, não só na sua economia, como na vida social, cultural etc., que podemos encontrar na vida do nosso povo.
Na Guiné, terra cortada por braços de mar, que nós chamamos rios, mas que no fundo não são rios: Farim só é rio para lá de Candjambari; o Geba só é rio de Bambadinca para cima e por vezes mesmo para lá de Bambadinca há água salgada Mansoa só é rio depois de Mansoa para cima, já a caminho de Sara, perto de Caroalo; Buba, esse não é rio de lado nenhum, porque até chegarmos a terra seca, é só água salgada; Cumbidjã, Tombali, são todos braços de mar, a não ser na parte superior com um bocadinho de água doce na época das chuvas, sobretudo o rio de Bedanda, que vem a Balama buscar água doce. O único rio de facto a sério, na nossa terra, é o Corubal. Esta é uma realidade muito importante para nós, porque se, por um lado, temos muitos portos para entrar na nossa terra, com barcos, por outro lado podem ver o perigo que isso representa para nós.
Se a nossa terra fosse toda fechada, com as andanças todas em que estamos nesta luta, o tuga já estava desesperado porque os quartéis não tinham comida. Mas como eles têm barcos e a nossa gente não ataca bastante os barcos, eles podem usar os braços de mar para levar comida e material aos seus quartéis do interior.
Enquanto, por exemplo, do ponto de vista económico, é muito importante e mesmo bom, ter rios ou braços de mar navegáveis. Isso do ponto de vista do futuro da nossa terra. Para a luta propriamente, podemos ver a importância que teve para nós considerar todas essas coisas para podermos desenvolver nossa luta. Se no começo da luta era muito bom haver muitos rios na nossa terra, muitos braços de mar, riozinhos, etc., porque assim isolámo-nos, podemos defender-nos sempre dos tugas, criar-lhes dificuldades com terrenos molhados, ter que atravessar os rios etc., hoje, para nós, já é um bocado mais difícil, porque se Bissau estivesse no Continente, se não houvesse a ilha de Bissau, se não fosse o Corubal se o rio Mansoa não estivesse do outro lado, já estávamos dentro de Bissau, todos os dias daríamos tiros em Bissau como o fazemos em Mansoa, por exemplo. Mas, por isso, agora é favorável aos tugas; assim como é favorável aos tugas o rio de Buba que serve bem para os seus barcos. Em Farim é a mesma coisa. Vocês vêem, portanto, a importância que tem considerar essa coisa simples que é a realidade geográfica.
Quem leu os livros de guerrilha lembra-se de certeza da afirmação de que maior força física para se poder fazer guerrilha numa terra, são as montanhas. Mas na Guiné não há montanhas. Se nós não ligarmos importância à nossa própria realidade, para a analisarmos e chegarmos à conclusão de como agir, nós teríamos dito que na Guiné não se pode fazer guerrilha, porque não há montanhas. Cabo Verde tem montanhas, isso é muito importante, mas que espécie de montanhas?
É preciso ter isso em conta e, além disso, só as montanhas não bastam. Não são as montanhas que dão tiros, é preciso mobilizar o povo. Na Guiné por exemplo, temos as ilhas de Bijagós. E porque é que não começámos a luta nas ilhas de Bijagós e começámos do outro lado, na terra firme? É por causa duma outra realidade, a realidade económica.
Em Cabo Verde temos um problema grave. Se Cabo Verde fosse uma ilha só, como Chipre, ou como Cuba, seria mais fácil, mas são 10 ilhas. E então temos de pensar em qual das ilhas é que vamos começar a luta armada, para ela ter importância de facto. E mesmo a mobilização, em que ilha ou ilhas é que devíamos começar a mobilização? Tudo isso teve e tem muita importância.
Problemas de comunicação de onde estamos para as ilhas, entre as ilhas, etc. Tudo isso é consequência da realidade geográfica da nossa terra.
Outra realidade que temos de considerar é a realidade económica. A nossa realidade económica principal é que nós somos colónias portuguesas, porque ao fim e ao cabo a situação política é uma consequência da situação económica.
Nós, a Guiné e Cabo Verde, somos um povo explorado pelos colonialistas portugueses, o nosso trabalho é explorado pelos colonialistas portugueses. Isso é que é importante. Essa é que é a realidade económica.
Mas nós somos uma terra desenvolvida? Não. Somos atrasados economicamente, sem desenvolvimento quase nenhum, tanto na Guiné como em Cabo Verde: Não há indústria a sério, a agricultura é atrasada, a nossa agricultura é do tempo dos nossos avós. As riquezas da nossa terra foram tiradas, sobretudo, do trabalho do homem. Mas os tugas não fizeram nada para desenvolver qualquer riqueza da nossa terra, absolutamente nada. Os nossos portos não valem nada, tanto o de Bissau, como o de S. Vicente. Poderiam ter feito bons portos, mas fizeram uns cais acostáveis que não valem nada. Quando vemos o porto de Dacar, ou mesmo o porto de Conakry, que são bons portos, e melhores ainda os de Abidjan ou de Lagos, na Nigéria, podemos verificar como é que os franceses e os ingleses fizeram grandes portos, onde vinte e tal barcos ou mais podem atracar. E vemos quanto tempo o tuga perdeu a gozar-nos, a tomar, a levar e a brincar connosco.
Não fizeram nada para a nossa terra.
Portanto, a nossa realidade económica é essa, e seja para a paz, seja para a guerra, nós somos um povo economicamente atrasado na Guiné e cm Cabo Verde um povo cujo principal meio de vida é a agricultura. Cultivar a terra para tirar o necessário para comer e nem sempre tirar o necessário para comer, como em Cabo Verde, por exemplo. Mesmo na Guiné, nalgumas áreas, se não houver muita chuva, há sempre falta, pelo menos enquanto o fundo não amadurecer. Tantos anos de presença dos tugas e a situação sempre na mesma, atrasados economicamente. Não podemos nem falar de indústria a sério, nem na Guiné, nem em Cabo Verde. Na Guiné temos a chamada fabricazinha de óleo de descasque de arroz, isso não é uma fábrica, isso é um grande «pilon» ; a fabricazinha de preparar borracha (maná), uma pequena fábrica de farinha de peixe nos Bijagós.
Em Cabo Verde três fábricas de conserva de peixe, em que os tugas trabalham o tempo que querem, enchem os bolsos de dinheiro, fecham a fábrica e vão descansar. E para conhecerem melhor a pouca vergonha dos tugas, eu lembro-me, por exemplo, que quando eu estava no liceu, a minha mãe foi para Cabo Verde, empregou-se na fábrica de conserva de peixe, porque a costura não dava nada. E sabem quanto é que ela ganhava por hora? Cinco tostões por hora e se houvesse muito peixe, podia trabalhar 8 horas por dia, ganhando 4 pesos (escudos). Mas se o peixe fosse pouco (era preciso andar muito para chegar à fábrica), trabalhava uma hora e ganhava cinco tostões.
Economia atrasada, portanto; isso é muito importante para uma guerra. Vocês vejam: nós somos um povo que não tem fábricas, não podemos tomar as fábricas aos tugas para fazer alguma coisa.
Nós temos hoje vastas áreas libertadas; se houvesse fábricas ali, era bom, talvez pudéssemos fazer tecidos, talvez pudéssemos fazer sabão em grande quantidade, em vez do sabãozinho do camarada Vasco. Outras coisas podíamos fazer, se tivéssemos minas; haveria muito mais gente a querer ajudar-nos, mais do que nos ajudam, tanto amigos como inimigos, eles procurariam ajudar-nos se as minas estivessem todas a funcionar, com a certeza de que havia muita bauxite, muito petróleo. Viriam muitos e depressa. E, se o petróleo da nossa terra já tivesse começado a ser exportado talvez a própria Standard Oil estivesse a nosso favor, contra os tugas. Talvez o Governo Americano fosse a nosso favor, contra os tugas. Talvez até tivesse a coragem de dizer aos tugas: «ou vocês param e dão a independência à Guiné já, ou então tiramo-vos toda a ajuda, atacamo-vos na ONU». E porquê? Por causa do seu interesse. Mas como a nossa terra não tem nada desenvolvido, eles pensam que nós somos um corredor entre as Repúblicas da Guiné e do Senegal, um simples lugar de passagem.
Mas, importante do ponto de vista de guerra, como vos disse, é o atraso da nossa economia, até mesmo as dúvidas sobre as nossas riquezas. Por exemplo, tudo seria diferente se o nosso povo já tivesse conhecimentos bastantes sobre a maneira de trabalhar o ferro, para fazer armas. Há povos que estão a lutar e, enquanto uns combatem na frente, outros fazem armas na retaguarda. Nós não podemos fazer isso, só longas, mas as longas são ineficazes. E se é com longas que vamos ganhar a guerra com os tugas ou contra qualquer colonialista a nossa luta será muito longa.
Mas se a nossa economia fosse desenvolvida, quer dizer que o nosso povo seria também culturalmente mais forte do ponto de vista moderno, com mais escolas, mais liceus, capaz de trabalhar com morteiros, canhões e até com aviões. Os comandantes seriam mais capazes de entender todos os problemas de estratégia, de táctica e poderiam todos trabalhar com mapas.
Vemos, portanto, o significado que tem de lutar num país economicamente atrasado.
Todos vocês conhecem qual é a realidade social da nossa terra a desgraça da exploração colonialista. Mas não sejamos tão acusadores dos colonialistas. Desgraça também da exploração da nossa gente pela nossa gente. Vocês viram ontem, quando vos falei da estrutura social da nossa terra. Nós somos, de facto, explorados pelos colonialistas na nossa terra, na Guiné e em Cabo Verde. Tanto no comércio em Cabo Verde, como na Guiné, os colonialistas são sempre os que ganham mais até ao fim, porque em Cabo Verde, por exemplo, não há nenhuma empresa comercial que não esteja ligada a uma empresa em Portugal. Assim como na Guiné, o monopólio de todo o nosso comércio (o nosso não, o seu comércio) era da Gouveia e da Ultramarina, ligadas aos Bancos, tudo dos tugas. Mas, camaradas, temos que dizer a verdade. Muito povo de Cabo Verde sofreu por causa da exploração dos donos das terras, cabo-verdianos mesmo. Assim como na Guiné, uma parte do grande sofrimento do nosso povo estava nas mãos da nossa própria gente.
Isso não podemos esquecer de maneira nenhuma, para podermos saber o que é que vamos fazer no futuro.
Há então uma realidade concreta para isso. Em Cabo Verde a nossa gente passa miséria. Nos anos em que chove muito há fartura, come-se bem, enche-se a barriga e até se pode deitar e descansar um bocado, mas na maior parte do tempo, em que não há chuvas suficientes, há fome. Em Cabo Verde já morreu de fome mais gente do que aquela que vive lá hoje, durante estes últimos 50 anos. Contratados para S. Tomé e transportados como bichos nos porões (se morrem — deita-se ao mar), mandados para Angola. Na Guiné, como sabem, existia toda a exploração dos colonialistas: trabalho forçado nas estradas, toda a espécie de vexames, insultos, humilhações. E médicos portugueses que estudaram a situação em Cabo Verde disseram que uma certeza levaram com eles, segura, na sua cabeça de cientistas, é que toda a gente está numa situação de fome. Se não é fome total é fome específica, quer dizer, falta de certos elementos que são precisos para o corpo humano viver bem. Essa fome específica existe também na Guiné. Na Guiné quase toda a gente tem paludismo, se formos agora fazer análises a todos os camaradas que aqui estão, quase todos têm bichos na barriga. Há lepra em quantidade, doença de todo o género.
Desgraça social do nosso povo, a qual fez do nosso povo um povo fraco no ponto de vista científico, sanitário. Um homem que come quase só arroz não pode ter a mesma resistência do que um homem que come arroz, carne, leite, ovos ....É verdade que, quando um estrangeiro vem à nossa terra e anda com os nossos camaradas no mato, ele fica para trás. Isso é outra coisa. Mas do ponto de vista de resistência da vida, sabemos que, na nossa terra, uma pessoa com 30 anos já começa a envelhecer. Na nossa terra é raro encontrar velhos de barba e cabelos brancos. A média de vida na nossa terra, na Guiné ou em Cabo Verde, é de 30 anos. A nossa esperança de vida é de 30 anos: quem passa os trinta já tem sorte. Ora a esperança de vida noutras terras onde se come bem, se bebe bem (não falo de se embebedar), como deve ser, é de 60, 67 anos e cada ano sobe mais. De qualquer maneira é mais agradável. Se, quando alguém nasce, tivesse a certeza que ia viver 70 anos, tinha tempo de fazer alguma coisa. Mas em trinta anos, que é que se pode fazer?
Isso é devido à insuficiência de alimentação, à deficiência de higiene e tratamentos médicos, da saúde à miséria. Essa é que é a condição social da nossa terra. Abusos dos tugas, abusos daqueles filhos da nossa terra que abusam dos outros, miséria, sofrimentos, doenças, fome e vida curta ainda por cima. Condição difícil, muito difícil.
Se é verdade que, do ponto de vista cultural, em Cabo Verde as condições são um bocadinho melhores que na Guiné, porque, dadas as condições em que a população se desenvolveu nunca se pôs a questão de indígena e não indígena e então em princípio qualquer filho de Cabo Verde pode ir à escola (escola oficial), não é menos verdade que, no total, havia muito menos escolas do que na Guiné.
Há certas coisas que os camaradas não sabem e que lhes podem fazer confusão, mas a verdade é que em Cabo Verde mais gente aprendeu a ler e escrever do que na Guiné, no tempo dos colonialistas. Mas a percentagem de analfabetismo em Cabo Verde, contrariamente à vaidade de algum cabo-verdiano que tem a mania que sabe muito, é de 85%. Os tugas gabavam-se, dizendo que em Cabo Verde não há analfabetos. É falso! Mas daqueles que sabem ler, eu fiz a experiência em 1949, quando lá fui passar as férias, havia gente com o 2.° grau (já havia 4 ou 5 anos)no mato, em Godim ou em Santa Catarina, por exemplo, e a quem se lhes dava o jornal para lerem, mas não sabiam o que estavam a ler. Esses também são analfabetos que conhecem as letras. Há muita gente assim no mundo e até, às vezes, doutores. Mas é preciso perder muitas ilusões.
Na Guiné, 99% da população não podia ir à escola. A escola era só para os assimilados, ou filhos dos assimilados, vocês conhecem a história toda, não vou contá-la outra vez. Mas é uma desgraça que o tuga causou na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem, aprender, entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África, do mundo de hoje. Isso é um obstáculo grande, uma dificuldade enorme para o desenvolvimento da nossa luta. Ainda hoje vos disse que o povo fula emigrou através da África, o povo mandinga fez e aconteceu, mas muitos de vocês não sabiam, e muitos camaradas, por exemplo, um beafada que se chama Malam qualquer coisa, não sabe que nos tempos antigos o nome Malam, Braima e outros, não eram nomes beafadas. O que se passou com os beafadas passa-se com muita gente da nossa terra. Por exemplo, Vasco Salvador Correia. Antigamente, a sua gente não se chamava nem Vasco, nem Salvador, quanto mais Correia. Quer dizer, os mandingas, dominando os povos da nossa terra, praticaram a assimilação (não foram os tugas os primeiros a querer assimilar na nossa terra) e então os dominados passaram a adoptar os nomes mandingas. Assim como os mandingas de hoje, não tinham os mesmos nomes daquela época. Os nomes antigos dos fulas não eram Mamadu, nem nada disso. Isso é tudo copiado do árabe, Mamadu quer dizer Maomé, Iussufe quer dizer José, etc., Mariama é Maria, nomes de semitas.
A realidade cultural da nossa terra, em Cabo Verde, (pondo agora a questão dos colonialistas que não nos deixaram avançar muito) é o resultado do facto de os colonialistas terem deixado estudar os cabo-verdianos, na medida em que precisavam de gente para fazer agentes do colonialismo, como utilizaram os indianos. Como os ingleses também utilizavam os indianos na colonização, e os franceses utilizavam os daomeanos, assim também os portugueses utilizaram os cabo-verdianos, instruindo um certo número. Mas a certa altura barraram o caminho duma vez, nem mais do que um certo número de escolas primárias, nem mais do que um liceu, um liceu apenas, que aliás Vieira Machado, antigo Ministro do «Ultramar», queria transformar em escola de pescadores e carpinteiros na altura em que eu entrei para o Liceu. Estive três meses sem frequentar o liceu, porque o fecharam. Para eles, já bastava o que tinham feito, não era preciso mais. A partir de então, só escolas para pescadores e carpinteiros. A população é que se levantou, protestou, e o liceu começou a funcionar de novo. Mas agora a realidade da nossa própria terra em Cabo Verde é a seguinte: é a transplantação da realidade da cultura africana para as ilhas: Depois; o contacto dessa cultura africana, em grande parte, com outras culturas de fora, vindas de Portugal ou doutros lados. Muita gente pensa que Cabo Verde é a Praia ou S. Vicente. Mas quem conhece o mato em .Cabo Verde, sente que Cabo Verde é uma realidade africana tão palpitante como qualquer outro pedaço de África. A cultura do povo de Cabo Verde é africaníssima: nas crenças é idêntico — há em Santiago o «polon» que alguns ainda consideram como árvore sagrada. Não há muitos «polon» por causa das numerosas secas. Mas os que existem ainda, ninguém toca neles. Além disso, a feitiçaria (« morundade»), «Almas» que aparecem de noite, gente que voa, que faz; que acontece, como interpretação da realidade da vida que é perfeitamente igual a África. Deitar sortes então, nem falemos.
Em Cabo Verde produziu-se o encontro de vários grupos étnicos e houve uma fusão da sua cultura; mas até os anos 40, por exemplo, havia ainda determinados grupos que mantinham certas características próprias. Por exemplo, grupos que se fixaram para os lados da Praia, em Santiago, tinham a sua tabanca, que designavam mesmo assim as festas que faziam eram dum dado tipo, enquanto noutros lados, na Achada Sto António, por exemplo, já é outro tipo de tabanca, quanto mais a gente de Santa Catarina, dos Picos, etc.
Na Guiné, a cultura do nosso povo é o produto de muitas culturas da África: cada etnia tem a sua cultura própria, mas todas têm um fundo igual de cultura, a sua interpretação do mundo e as suas relações na sociedade. E sabemos que embora haja populações muçulmanas, no fundo eles também são animistas, como os balantas e os outros. Acreditam em Ala, mas também acreditam nos «irãs» e nos «djambacosses». Têm Alcorão, mas também têm o seu «gri-gri» no braço e outras coisas. E o sucesso do Islamismo na nossa terra, como na África em geral, é que o Islão é capaz de compreender isso, de aceitar a cultura dos outros, enquanto os católicos querem acabar com isso tudo rapidamente só para crerem na Virgem Maria, na Nossa Senhora de Fátima e em Deus Nosso Senhor Jesus Cristo.
A realidade cultural da nossa terra é essa. Mas devemos pensar bem na nossa cultura: ela é ditada pela nossa condição económica, pela nossa situação de subdesenvolvimento económico. Temos que gostar muito da nossa cultura africana, nós queremo-la muito, as nossas danças, as nossas cantigas, a nossa maneira de fazer estátuas, canoas, os nossos panos, tudo isso é magnífico, mas se esperarmos só pelos nossos panos para vestirmos a nossa gente toda, estamos mal. Temos que ser realistas. A nossa terra é muito linda, mas se não lutamos para mudar a nossa terra, estamos mal.
Há muita gente que pensa que ser africano é saber sentar-se no chão e comer com a mão. Sim, isso é certo africano, mas todos os povos no Mundo se sentaram já no chão e comeram com a mão. É que há muita gente que pensa que só os africanos é que comem com a mão. Não; todos os Árabes da África do Norte, mas mesmo antes de serem africanos, antes de virem para a África (eles vieram do Oriente para a África), comiam com a mão, sentados no chão. Temos que ter consciência das nossas coisas, temos que respeitar aquelas coisas nossas que têm valor, que são boas para o futuro da nossa terra, para o nosso povo avançar.
Ninguém pense que é mais africano do que outro, mesmo do que algum branco que defende os interesses de África, porque ele sabe hoje comer melhor com a mão, fazer bem a bola de arroz e atirá-la para a boca. Os tugas, quando eram visigodos ainda, ou os suecos, que nos ajudam hoje, quando eles eram ainda Vikings, também comiam com a mão.
Se vocês virem um filme sobre os Vikings dos tempos antigos, vocês podem vê-los com grandes chifres na cabeça, mesinhos nos braços para irem para a guerra. E não iam para a guerra sem os seus grandes chifres na cabeça. Ninguém pense que ser africano é ter chifres pegados ao peito, é ter mesinho na cintura. Esses são os indivíduos que ainda não compreenderam bem qual a relação que existe entre o homem e a natureza. Os tugas fizeram isso, os franceses fizeram quando eram francos, normandos, etc. Os ingleses fizeram-no quando eram anglos e saxões, viajando pelos mares fora em canoas, grandes canoas como as dos bijagós.
Temos que ter coragem para dizer isso claramente. Ninguém pense que a cultura de África, o que é verdadeiramente africano e que, portanto, temos de conservar para toda a vida, para sermos africanos, é a sua fraqueza diante da natureza. Qualquer povo do Mundo, em qualquer estado que esteja, já passou por essas fraquezas, ou há-de passar. Há gente que ainda nem chegou aí: passam a sua vida a subir às árvores, comer e dormir, mais nada ainda. E esses, então, quantas crenças têm ainda! Nós não podemos convencer-nos de que ser africano é pensar que o relâmpago é a fúria de Deus (Deus qui panha raiba). Não podemos acreditar que ser africano é pensar que o homem não pode dominar as cheias dos rios.
Quem dirige uma luta como a nossa, quem tem a responsabilidade duma luta como a nossa, tem que entender, pouco a pouco, que a realidade concreta é essa.
A nossa luta é baseada na nossa cultura, porque a cultura é fruto da história e ela é uma força.
Mas a nossa cultura é cheia de fraqueza diante da natureza. É preciso saber isso. E podemos dizer mais, por exemplo: há certas danças nossas, que mostram as relações do homem com a floresta, em que aparece gente vestida de palha, com ar de pássaros, outros como grandes pássaros, com um grande bico, gente que corre com medo. Podemos fazer muitas danças com isso, mas temos que ultrapassar, não fiquemos só por aí. Podemos guardar a lembrança de todas essas coisas, para desenvolver a nossa arte, a nossa cultura, que apresentamos aos outros. Mas como já ultrapassámos isso, sabemos que na floresta, no mato, nós é que mandamos, nós, os homens, não é nenhum bicho, nem nenhum espírito que está lá metido. Isso é muito importante. Mas a realidade cultural da nossa terra é essa. Vários camaradas que estão aqui sentados têm o mesinho na cintura, convencidos de que isso pode evitar-lhes as balas dos tugas. Mas nenhum de vocês pode dizer-me que qualquer dos camaradas que morreram já na nossa luta não tinha mesinho na cintura. Todos tinham. Somente, na nossa luta, tivemos que respeitar isso, tivemos que respeitar porque partimos da nossa realidade, não podíamos de maneira nenhuma dizer aos camaradas para tirarem o mesinho, caso contrário estaríamos a tratar os camaradas como se fossem alemães. Os alemães, há muitos anos atrás, não iam à guerra sem mesinho. Ainda há alguns que vão com a imagem de Nossa Senhora de Fátima dentro dum livrinho, é o seu mesinho ; a Bíblia, é o seu mesinho e, antes de começar os combates, benzem-se. Os tugas vêm com a sua grande cruz no peito, e no momento em que o combate começa, beijam-na: é o seu mesinho. E há ainda os que fiam nos nossos próprios mesinhos.
Esse é que é o nosso nível cultural, em relação à realidade concreta que é a guerra. Por isso nós aceitamo-la, mas que ninguém pense que a direcção da luta acredita que, se usarmos mesinho na cintura, não morremos. Não morremos na guerra se não fizermos a guerra, ou se não atacarmos o inimigo em posição de fraqueza. Se cometermos erros, se estivermos em posição de fraqueza, morremos de certeza, não há safa. Vocês podem contar-me uma série de casos que têm na cabeça:
— «O Cabral não sabe, nós vimos casos em que o mesinho é que safou os camaradas da morte, as balas vieram e voltaram para trás em ricochete». Vocês podem dizer isso, mas eu tenho esperanças que os filhos dos nossos filhos, quando ouvirem isso, ficarão contentes porque o PAIGC foi capaz de fazer luta de acordo com a realidade da sua terra, mas hão-de dizer: «os nossos pais lutaram muito, mas acreditaram em coisas esquisitas». Esta conversa talvez não seja para vocês agora, estou a falar para o futuro, mas eu tenho a certeza de que a maioria entende o que digo, e que tenho razão.
O mesinho é uma característica da África. Até advogados que eu conheço, em outros países africanos, andam com o seu mesinho na cintura (rabada) e, quando vão defender causas no Tribunal, põem o seu grande mesinho: «nunca se sabe se posso ganhar com isso». Mas até camaradas de outra colónia portuguesa mandaram-nos pedir, porque a nossa luta avançou muito, se havia algum gri-gri bom que lhes mandássemos também.
Eu só chamo a atenção dos camaradas para o facto de sentiram que isso, se por um lado é uma força, por outro lado é uma fraqueza. É força, porque um camarada que põe o seu mesinho acredita em alguma coisa, além das palavras do Partido, e vai com mais coragem, não podemos esquecer isso. É uma fraqueza, porque ele pode cometer muitos erros, fiado nisso.
Mas houve camaradas nossos que morreram da seguinte maneira: chega um avião, todos se atiram para o chão, o avião bombardeia, mas não acontece nada. De repente, o camarada lembra-se que não tem o mesinho consigo, levanta-se, corre a casa, apanha o mesinho e no regresso é metralhado e morre com o seu mesinho na mão. Talvez alguns de vocês conheçam mais casos desses . Mas quantos de vocês são capazes de pensar o seguinte: Que brincadeira é essa, como é que isso pode ser?
A verdade é que, para nós, a luta tem o seu aspecto de força e o seu aspecto de fraqueza. Muitos de nós acreditaram que não nos devíamos instalar em certos matos porque está lá o «irã». Mas hoje, graças aos muitos «irãs» da nossa terra, a nossa gente entendeu, e o «irã» também, que o mato é do homem, e ninguém mais tem medo do mato. Até o mato de Cobiana, já lá estivemos bem, tanto mais que aquele «irã» é nacionalista, ele «disse» claramente que os tugas têm de ir-se embora, que não têm nada que fazer na nossa terra.
Mas os camaradas devem compreender que tudo isso é também um obstáculo para a luta. Muitos dos camaradas que começaram esta vida e que pegaram teso, muitos camaradas meus, que eu estimo muito e que passaram muito tempo comigo, se naquela altura eu lhes dissesse: « Vai ao interior, pega teso no trabalho de mobilização do povo », e se o Secuna Baio ou qualquer outro mouro lhes dissesse: «Não vás, deitei sorte e vi muitas coisas más para ti se vais ao interior do país,» talvez eles se matassem, com vergonha do Cabral, mas não iriam. Houve camaradas que não fizeram emboscadas só porque um «mouro» lhes contou que não fizessem emboscadas porque algum havia de morrer. E os camaradas habituaram-se tanto a que os homens grandes mandassem neles, decidissem por eles sobre a guerra, que depois são os homens grandes que vieram queixar-se: «Cabral o que é o que se passa, os rapazes agora não nos obedecem, vão atacar sem nos consultar». Eu respondi: «Homem grande, olha, se alguma vez os rapazes não atacaram sem te consultar, eu nunca lhes disse nada, e hoje também não lhes digo nada. Mas eu nunca te nomeei como comandante, eles é que são os comandantes. Dantes eles consultavam-te, é lá com eles, hoje já não querem? Isso não é comigo». O homem grande ficou um bocado aborrecido mas como não é burro, é muito esperto, porque ao fim e ao cabo, esses é que eram os intelectuais da nossa sociedade, da nossa sociedade genuína, verdadeira, eles é que viam as coisas claras, que entendiam tudo (as nossas forças e as nossas fraquezas) mudam logo um bocadinho, adaptam-se à nova situação.
O nosso Partido, no plano cultural, procurou tirar o maior efeito possível, o maior rendimento possível da nossa realidade cultural. Quer não proibindo aquilo que é possível não proibir sem prejudicar a luta, quer criando no espírito dos camaradas novas ideias, nova maneira de ver a realidade. E quer ainda, aproveitando o melhor possível todos aqueles que já tinham um pouco mais de instrução, tanto para dirigir a própria luta como para os mandar estudar para preparar quadros para o futuro. Pode parecer que tudo isso é muito simples, mas é difícil, é muito complicado chegar a uma solução como essa.
A realidade política da nossa terra é esta realidade maior que todos nós conhecemos bem, é o facto de que nós éramos uma colónia portuguesa. O nosso povo, nem na Guiné, nem em Cabo Verde, não podia mandar em si mesmo. Os tugas é que mandavam, mesmo que pusessem um administrador preto, — o que só Honório Barreto teve a sorte ou a desgraça de ser — ;a verdade é que é o tuga que mandava na nossa terra, o colonialismo português. É essa realidade maior que criou o conflito entre nós e os tugas, a exploração do nosso povo, coberta pela política de Portugal. Isso é que gerou a nossa luta, fundamentalmente.
A nossa luta cresceu tanto que temos que aproveitar para transformar até a realidade geográfica, na medida em que pudermos. Parece que não, mas é verdade. Porque, quando fizermos barragens, pontes, etc., mudaremos a paisagem geográfica da nossa terra, vamos fazer uma geografia humana nova, que estamos a criar na nossa terra. Quando transformarmos os ilhéus de Bijagós completamente, quando fizermos de Cabo Verde um centro magnífico para turismo mundial, por exemplo, já será uma nova realidade geográfica que criamos. Os barcos que passam agora ao largo, passarão a parar lá. Mas temos que transformar, através desta luta, a realidade económica da nossa terra. Vamos acabar com a exploração dos tugas, mas vamos acabar com a exploração do nosso povo pela nossa própria gente. E temos que desenvolver a nossa terra, fazê-la avançar o mais possível. Esta é que é a nossa luta: realidade social, realidade cultural, tudo vai mudar. E há uma realidade política nova que surgiu na nossa terra e que é a seguinte: nós mandamos em nós mesmos.
Claro que a nossa realidade tem forças e fraquezas, como já vos mostrei. Porque, por exemplo, o facto de não termos grande desenvolvimento económico é um fraqueza grande, mas também é uma força, porque se a nossa terra tivesse grandes minas, grandes fábricas, etc., os imperialistas já teriam entrado na guerra mais depressa e com mais força. Talvez tivéssemos que lutar não só contra os tugas, mas contra outros imperialistas também. Assim, pelo menos, estamos mais tranquilos, só mato, deserto.
Mas não nos deixemos adormecer. Claro que a realidade social da nossa terra — na nossa terra não há, por exemplo, grandes burgueses, grandes capitalistas — isso é bom para a nossa luta, porque não temos o problema de ter de combater aqueles que exploram demasiado a nossa gente. Mas também é uma fraqueza, porque, nalgumas terras, alguns capitalistas da própria terra pegaram duro na luta, com todos os seus meios, com todo o seu dinheiro, etc., e ajudaram muito. Como em Cuba, na China, em outros países, em que muitos capitalistas da terra fizeram a revolução a sério.
E alguns dirigentes são filhos de grandes capitalistas.
Uma outra vantagem é que na nossa terra não há muitas diferenças de classes, diferenças muito grandes, e que as classes mais abastadas, que têm mais meios, são pequenas em número, muito pouca gente. Isso evita-nos muitos problemas de divisão do ponto de vista social. Mas na realidade social da nossa terra, ontem falámos nisso, há a questão de grupos étnicos, é uma fraqueza grande, porque, mesmo nesta sala, pode haver gente ainda que é capaz de pensar: eu sou papel, eu sou mancanha e o mancanha não falta ao seu companheiro, eu sou mandinga. Isso é uma grande fraqueza da nossa luta. E seria muito mau se de facto deixássemos isso avançar, se de facto nós não fôssemos capazes de eliminar tudo isso no caminho da luta.
Quero chamar a atenção dos camaradas para este facto, para pensarem bem e verem o que é que se passa na África onde há problemas de tribos, o chamado tribalismo, guerras entre etnias, etc.
Não é o povo que inventa essas coisas, o povo não se lembra disso, porque o povo segue a realidade com muito realismo, defende os seus interesses. A verdade é a seguinte: é que o tempo de tribos em África já passou. Houve um tempo em que as tribos lutavam umas com as outras por causa da terra, para tomarem a terra para ter pasto para o seu gado, etc., para encontrarem melhores terras, por causa dos filhos, das mulheres, para poderem ver a sua força, mas isso já passou.
Desde que os nossos povos de África conseguiram criar Estados, mesmo Estados de tipo militar, desde que os povos de África conseguiram juntar gente de diversas tribos para fazerem um trabalho, para servir uma classe, as tribos começaram a acabar. E quando os tugas e outros colonialistas vieram, acabaram com isso de uma vez, mas procuram conservar a parte de cima (a cúpula), quer dizer, aqueles que mandavam nas tribos, ou nos grupos, para servirem de intermediários para os ajudarem a mandar. Hoje, o nosso povo, oinca ou balanta, ou outro, pode ter ainda na cabeça lembranças antigas — «de facto nós e os mandingas não nos entendíamos muito bem» — mas se não houver ninguém para os incitar, eles já não vão nisso. O mesmo acontece com ibos e yorubas, na Nigéria, ou bacongos e outras gentes do Congo. É preciso que alguém incite, que alguém diga: «vamos mesmo pegar, eles estão com manias, mas os mandingas é que vão fazer».
Há gente que até tem desprezo pelas suas tribos, gente que já não quer saber disso para nada, que estudou nas Universidades, em Lisboa, ou Oxford ou mesmo na capital da sua própria terra, mas que hoje, por causa do acesso da África à independência, quer mandar, quer ser presidente da República, quer ser Ministro, para poder explorar o seu próprio povo. Então, como isso não lhes foi possível por qualquer razão, lembram-se: — «eu sou lunda, filho de lundas, descendente do rei lunda. Povo lunda, levanta-te porque os bacongos querem comer-nos». Mas não é nada por causa de lundas ou bacongos, é pelo facto de querer ser presidente, de ter todos os diamantes, todo o ouro, todas essas coisas boas na sua mão, para poderem fazer o que querem, para viverem bem, terem todas as mulheres que quiserem na África ou na Europa; para poderem passear pela Europa, serem recebidos como presidentes, para se vestirem caro, de fraque ou grandes bubus, para fingirem que são africanos. Mentira, não são africanos nada. São lacaios ou cachorros dos brancos.
O mesmo acontece na Nigéria e a mesma coisa entre nós, de qualquer maneira que isso apareça entre nós, trata-se de gente que quer servir apenas a sua ambição política. Quer dizer que temos que reconhecer que só a ambição é que pode defender o ponto de vista da divisão, seja que divisão for. Por exemplo: os tugas fizeram-nos muito mal, mas não podemos considerar tugas todos os brancos. Só um fulano ambicioso no nosso meio é que é capaz de dizer: nós não podemos aceitar a ajuda de fulano tal, em Bissau, que é branco, ou de fulano de tal, em Catió, que é branco. Como? Não pode ser. Se queremos servir a nossa terra, o nosso Partido, o nosso povo, temos que aceitar a ajuda de toda a gente. Mas ele é amigo, é um companheiro. Quem quer servir só a sua barriga, arranjar um bom lugar, tem que ver: — se ele é mesmo esperto ou burro, talvez o possamos aceitar, mas para lhe pormos os pés em cima. Mas se não for assim, o melhor é ele ir-se embora senão ainda me toma o meu lugar. Isso não.
Esta é que é a razão por que temos necessidade de conhecer a realidade da nossa terra, realidade em todos os aspectos, de todas as maneiras, para podermos saber orientar a luta, quer no geral, quer no particular. E temos que reconhecer que, na condição concreta da realidade da nossa terra na Guiné e Cabo Verde, é preciso muita coragem para responder com acerto a esta pergunta: — Nós podíamos de facto fazer uma guerra como esta? Claro que nós podemos dizer que sim, porque estamos a fazê-la. Mas no começo era difícil. Desde aquele homem que perguntou:
— «Mas como é que vamos lutar contra o tuga, se nós nem roupa temos, se nós não sabemos ler nem escrever? A guerra do tuga é de Comandantes, Majores etc., formados na Universidade, em altas Academias, como é que vamos lutar contra ele? Nós não temos nada, onde é que vamos arranjar meios para lutar, como é que isso pode ser?»
Aí é que temos que integrar a nossa cabeça, para respondermos, sim, temos que pôr a nossa realidade diante da realidade do mundo de hoje. E podemos dizer: nós estávamos todos divididos, cada grupo para o seu lado, mas na realidade do mundo de hoje, muita gente da nossa terra é capaz de levar o nosso povo a entender que nós, balantas, papeis, mandingas, filhos de cabo-verdianos, etc., podemos estar unidos, avançar juntos, sem perdermos a cabeça. E mostrámos que isso é de facto possível. E, na realidade do mundo de hoje, há uma África nova que surgiu, para a independência, para o progresso e temos que contar com ela. Mas há um campo socialista que surgiu desde a Revolução de Outubro, que pôs a seguinte conversa na frente de tudo: A autodeterminação para todos os povos, cada povo deve escolher o seu destino, tê-lo na sua mão. Há ainda as leis internacionais estabelecidas nas Nações Unidas.
Nós devemos contar com tudo isso, como a realidade do mundo inteiro, a realidade das guerras que houve no mundo, com todos os problemas que elas trouxeram, para podermos ter a coragem de avançar com a luta na nossa terra. Porque se nos colocássemos apenas diante duma só realidade, dentro da nossa tabanca, para pensarmos como iríamos lutar contra o colonialismo, seria impossível.
Vêem, portanto, a importância de conhecermos a nossa realidade e conhecermos também todas as realidades, para podermos saber onde está a nossa, entre as outras, para podermos saber qual é a nossa força total e qual a nossa fraqueza total. Só assim é que podemos ver concretamente o seguinte: Nós podíamos lutar, podíamos fazer a nossa própria luta, fazer muitos sacrifícios, com os nossos próprios meios, mas isso não chegava para fazermos a luta. Não podia chegar. Era preciso que o nosso Partido fosse capaz de aproveitar outras condições favoráveis do mundo, da África, para fazermos a nossa luta avançar. E nós aproveitámos e aproveitamos cada dia mais. Foi por isso que pudemos ter armas, munições, roupas, medicamentos, hospitais, etc., que na nossa terra não podíamos ter. Exigindo de nós próprios o sacrifício e o esforço que podemos dar, mas contando também com a realidade do mundo de hoje, com forças que possam vir de fora. Essa é a importância que tem para a nossa luta a ajuda de outros países, ajuda que para nós só tem uma condição: não se põe condição nenhuma e nós garantimos que toda a ajuda que recebemos a pomos ao serviço do nosso Partido e do nosso povo.
E podemos dizer que não há nenhum movimento de libertação no mundo que tenha tirado mais proveito da ajuda que lhe têm dado do que o nosso Partido. Nós todos sabemos a admiração que suscitamos em toda a gente quando vê as nossas coisas, tanto fora como dentro da nossa terra, e quando vê como é que nós de facto temos posto tudo o que temos obtido ao serviço da nossa luta, ao serviço do nosso povo. Temos procurado pôr ao serviço do Partido a capacidade de todos os camaradas. Se não dão tudo é porque não querem. Não é falta de exemplo nem falta de empurrar.
Nós temos procurado melhorá-los cada dia mais, utilizando directamente a ajuda que recebemos para formar quadros. Temos necessidade, portanto, para transformar a nossa realidade, da nossa própria experiência, da nossa própria força, do nosso próprio sacrifício e esforço, mas também temos necessidade de conhecer a experiência dos outros, da ajuda dos outros e de utilizar como deve ser essa ajuda.
Nesse conjunto das nossas forças com as forças que nos podem vir de fora, podemos transformar de facto a realidade da nossa terra, e já transformámos muito, porque hoje, na nossa terra, na maior parte da nossa terra, o tuga não manda. Na Guiné, o tuga está aflito (à nora) numa guerra colonial que ele sabe que está perdida, e em Cabo Verde a coisa já começou a ferver, ele sente-se mal, a ponto de chamar os seus amigos para virem ajudar, porque a perda de Cabo Verde, para ele, é o fim da dominação portuguesa em África. Portanto, nós sabemos que somos capazes de transformar esta realidade, e o simples facto desta reunião é mais uma prova clara da criação duma realidade nova na nossa terra. Na terra de ontem que nós conhecíamos, na própria realidade que, por exemplo, o Cruz Pinto deixou para ir estudar a Portugal, ou que o Bôbo deixou quando saiu para fazer o curso de política, não era possível uma reunião de camaradas como esta, nem dentro nem fora da nossa terra. Quando, a certa altura, em Bissau, chamei os melhores amigos da minha casa, e lhes disse: «Camaradas, vocês são muito amigos da minha mãe, são meus amigos também, vocês vêm a minha casa, comemos, brincamos, mas a hora da brincadeira acabou, comecemos a fazer umas pequenas conversas,» eles responderam — « Sim Senhor».
Conversámos, marcámos uma reunião. Mas só vieram um ou dois. Os outros não vieram porque eles pensavam que isso era uma doidice. Se comparamos aquele momento com o momento de hoje, vemos de facto que a criação do PAIGC foi o ponto de partida para criar na nossa terra, Guiné e Cabo Verde, uma realidade nova. E temos de criá-la e desenvolvê-la cada dia mais para servirmos cada vez melhor não só e principalmente o interesse do nosso povo, mas também o interesse da África, o progresso da humanidade.