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A pressão da superpopulação absoluta forçou o homem primitivo a aperfeiçoar pouco a pouco suas armas e seus métodos de caça. Isto o obrigou, no decurso do tempo, a reduzir os limites desta forma de vida e a adotar novos métodos na luta pela existência que o libertaram, em boa parte, dos caprichos elementares da Natureza externa.
Deste modo apareceram em varias regiões a agricultura e a pecuária, separadas uma da outra, a princípio, segundo as condições naturais locais.
O descobrimento da agricultura pode considerar-se como o resultado de uma série de fatos "casuais" repetidos com certa frequência. Disseminando por casualidade alguns grãos de plantas gramíneas silvestres, o homem chegaria a descobrir que, passados alguns meses, brotavam espigas no mesmo lugar. Isto deve ter-se repetido milhares de vezes sem que o compreendesse; cedo ou tarde, porém, deve ter-se aberto na mente do selvagem caminho para a relação existente entre ambos os fenômenos, e a necessidade o obrigou a fazer uso dela. O mais provável é que o descobrimento tivesse sido feito pela mulher, a qual, como tinha de permanecer para cuidar dos filhos levava uma vida menos errante que o caçador e se dedicava mais que ele a recolher frutas e grãos.
A agricultura primitiva era muito diferente da moderna, tanto por sua condição como pela imperfeição de seus métodos. O arado é um invento de tempos muito posteriores. Num passado relativamente recente, que de modo algum pode confundir-se com os tempos primitivos, arava-se a terra com o auxílio do tronco de uma arvore despojado de todos os seus galhos menos um, o qual, apontado em sua extremidade se arrastava pelo solo para abrir os sulcos. Mas o utensílio utilizado na agricultura rudimentar era uma estaca de ponta, com a qual se abriam buracos na terra para introduzir as sementes. Aliás esta forma de agricultura se encontra na Africa do Sul e em Angola, onde os indígenas cultivam dessa maneira uma planta chamada mamoka.
Quanto à pecuária, surgiu, sem dúvida, do costume de domesticar animais por mera diversão. Mais tarde chegaram a compreender-se as vantagens que alguns desses animais ofereciam, e o homem se põe a domesticá-los sistematicamente.
Como a agricultura, a pecuária deu aos homens certa segurança de existência e permitiu-lhes reservar algumas energias, o que facilitou a marcha ascendente do progresso. As formas primitivas da agricultura e da pecuária, apesar de utilizadas separadamente, aumentaram os limites da população em três ou quatro vezes (na zona temperada puderam elevar-se, em média, até setenta habitantes por milha quadrada).
A agricultura, a princípio, pouco modificou a vida nômade das tribos selvagens. Constituiu simplesmente um complemento da caça, e a tribo, obedecendo às exigências desta, continuou, como de ordinário, errando de um a outro lugar, permanecendo em cada um deles somente o tempo necessário para semear e recolher as colheitas. A princípio, a própria pecuária tornava necessária a vida nômade, pois, como o gado necessitava de pasto, quando a forragem se esgotava em um lugar era preciso a mudança para outro.
No decurso do tempo o desenvolvimento da população obrigou o homem a combinar a agricultura com a pecuária e a adotar uma forma de vida sedentária. Isto proveio da possibilidade de aperfeiçoar os instrumentos agrícolas e de empregar a força animal no trabalho. O aumento da produtividade do trabalho permitiu, por sua vez, um novo aumento da densidade de população, chegando a duzentos habitantes por milha quadrada nos climas temperados. A partir de então a vida do homem adquire já uma relativa segurança. Diferentemente do que se dera com o homem primitivo, já não tinha que empregar todo seu tempo de trabalho em assegurar-se os meios imediatos de subsistência. A agricultura e a pecuária foram-se tornando cada vez mais produtivas. Ao homem sobrava agora tempo para dedicar-se ao aperfeiçoamento dos meios de produção e da técnica em geral. Por outro lado, criaram-se condições devido às quais alguns membros da sociedade ficavam dispensados de todo trabalho físico, atendendo-se à sua subsistência pelos demais membros da comunidade.
Deste modo, além do trabalho necessário aparece o trabalho suplementar, que até então só havia existido de maneira casual e transitória, mas que agora se converte num fenômeno permanente(2).
O aumento da produtividade do trabalho social tornou possível uma formidável ampliação das dimensões da "gens". A pecuária em particular, ao criar meios de locomoção mais eficazes (renas, cavalos e camelos), permitiu a manutenção de relações sociais numa área mais extensa do que até então, o que, por sua vez, facilitou novas ampliações dos limites do grupo. Deste modo, os componentes da sociedade começaram a contar-se, não por dezenas, mas por centenas. O patriarca Abraão, por exemplo, contava em seu grupo nômade com 417 homens capazes de levar armas.
O considerável aumento da extensão e da complexidade da produção deu origem a novas formas da divisão do trabalho. Uma delas encerra capital importância para os progressos ulteriores, e é a da organização da produção.
Enquanto a produção de grupo era insuficiente e extremamente simples, baseando-se nas necessidades do consumo de um futuro imediato, a tarefa de sua organização podia ser um trabalho vulgar e ser desempenhada simultaneamente com a execução dos trabalhos, posto que semelhante empresa não excedia à inteligencia do membro médio do grupo. Mas, quando se tornou necessário distribuir centenas de tarefas diferentes entre os indivíduos mais aptos para desempenhá-las e calcular as necessidades do grupo com vários meses de antecedência para coordenar o gasto de energia social com estas necessidades, o encargo da organização do trabalho separou-se já das tarefas executoras, tornando-se impossível o desempenho de ambas as funções pelo mesmo indivíduo. Neste caso, a primeira função já era superior à capacidade mental do trabalhador médio e teve de converter-se na especialidade dos homens mais competentes e experientes. Primeiramente, em cada grupo esta função ficou concentrada nas mãos de um só homem, em geral o mais velho do grupo: o patriarca.
Nas primeiras fases da organização do trabalho, as funções da pessoa encarregada dela pouco se diferenciam das atividades dos demais membros da "gens". O organizador continua realizando o mesmo trabalho que os demais. Sendo o indivíduo mais experimentado de todos, os outros mais o imitam que mesmo o obedecem. Mas, com o desenvolver-se da divisão do trabalho e o tornar-se mais completa a produção em comum, o trabalho de organização se separa completamente do de execução, e a atitude que se tem já para com o patriarca, afastado do processo direto da produção, é de uma submissão absoluta. Deste modo surge na esfera da produção a autoridade pessoal e a subordinação, forma especial da divisão do trabalho que reveste a máxima importância para o desenvolvimento ulterior da sociedade.
Sob o ponto-de-vista da constituição da sociedade em grupos separados, deve considerar-se a guerra como um ramo especial da produção — como as lutas sociais com a natureza externa —, posto que para as sociedades primitivas os inimigos humanos constituem elementos externos, exatamente iguais aos lobos e aos tigres. Na época tribo-patriarcal esta esfera da produção adquiriu considerável importância, porque a densidade tornava mais frequentes que nunca os conflitos entre os homens. Entre os nômades dedicados à pecuária, as lutas suscitadas pela posse dos pastos eram quase permanentes. A guerra facilitou notavelmente o fortalecimento e aumento da autoridade do organizador. A guerra exigia uma organização compacta e uma disciplina rigorosa, e a submissa obediência que os chefes recebiam na guerra passou pouco a pouco a imperar igualmente em tempos de paz. É muito possível que a autoridade do organizador houvesse nascido primeiramente na esfera da guerra e da caça e se estendesse depois aos diversos ramos da produção, conforme esta se ia complicando. O que deve ter facilitado decisivamente a extensão da autoridade do organizador da guerra e da caça foi o fato de que dele dependia a distribuição dos produtos de ambas, o que, por se só, lhe dava uma autoridade e um poder econômico considerável dentro do grupo.
É evidente que o trabalho organizado constitui historicamente a forma mais primitiva do trabalho complexo. No grupo comunista primitivo, em que cada um podia fazer o mesmo que qualquer outro, o trabalho era de caráter simples. Isso se dava na maioria dos grupos tribo-patriarcais. A função do organizador era a única que não podia ser desempenhada indistintamente por qualquer membro do grupo. Esta função exigia uma experiência especial e, quiçá, mais capacidade que a vulgar. Este trabalho era já um trabalho complexo ou qualificado, e requeria um maior gasto de energia equivalente ao trabalho simples multiplicado(3).
O organizador guiava-se em seus atos, ao menos a principio, pelos interesses comuns do grupo. Baseando seus cálculos na soma geral das necessidades do grupo, por um lado, e na soma geral da força de trabalho disponível, por outro, distribuía o serviço e estabelecia as formas da cooperação e da divisão do trabalho. Claro é que no desempenho de sua missão procedia, em boa parte, de maneira espontânea, seguindo o costume estabelecido e o exemplo dos antepassados. Unicamente nos ramos secundários da produção, nos em que a experiencia não lhe dava uma orientação concreta, seguia o organizador sua própria iniciativa e seu próprio critério.
A crescente complexidade da função organizadora motivou, com o correr do tempo, novas mudanças na estrutura da "gens". A expansão do grupo e de sua produção fez com que a tarefa não pudesse ser desempenhada por um só homem e, pouco a pouco, uma parte da função foi deferida a outros membros da tribo, no geral aos mais velhos e práticos. Cada um deles se converteu, então, num organizador, embora secundário e subordinado, de uma parte do grupo, da parte — coisa perfeitamente compreensível — com a qual mais intimamente ligado estava pelo vínculo de seu nascimento. Deste modo começaram a desenvolver-se, dentro do grupo, famílias, que se reuniam em torno dos organizadores parciais, à testa dos quais se achava o patriarca. O desmembramento em famílias, não obstante, não foi muito longe na época patriarcal: a unidade do grupo prevalecia sempre sobre a desagregação de suas partes.
Pouco a pouco, a família do patriarca foi adquirindo uma importância especial. Os membros desta família estavam, mais que ninguém, em estreito contato com a função organizadora e tinham maior facilidade que os demais em preparar-se para exercê-la. Por este motivo os organizadores eram sempre escolhidos entre os membros da dita família quando o velho organizador morria ou já não podia desempenhar seu cargo. Como é natural, o patriarca se esforçava por tornar permanente tal estado de coisas, e preparava de antemão os seus parentes mais próximos para o desempenho do cargo, predispondo os demais membros do grupo para que os escolhessem. Com o tempo seu esforço foi coroado de exito, e a escolha do organizador passou a ser uma mera formalidade, porque o patriarca designava o seu sucessor, com o que a função organizadora se converteu no patrimonio de uma só família.
Tais eram as relações de produção na tribo patriarcal. Junto a elas, as relações intertribais adquiriram uma importância considerável no período patriarcal.
Ao cindir-se a tribo, os grupos novamente estabelecidos não rompiam por completo seus vínculos. Em certos casos em que o grupo individual não reunia suficiente força, uniam-se vários grupos relacionados entre si (por pertencerem à mesma tribo) para agirem de comum acordo na defesa contra invasores estrangeiros, na caça de grandes manadas de animais, etc. Estas alianças eram dirigidas por um conselho de anciãos ou por um caudilho eleito para a emergência.
Nesta cooperação organizada aparecem outras formas de relações entre os grupos. À medida que o trabalho suplementar se converte numa característica ordinária e mesmo permanente (graças à combinação da agricultura com a pecuária), vai-se criando ao mesmo tempo um excesso de produtos. As primeiras formas de troca devem ter surgido do costume estabelecido entre os grupos relacionados entre se de ceder-se mutuamente essas reservas.
Assim, pois, as características principais que distinguem as relações de produção da tribo patriarcal das do comunismo primitivo são as seguintes: distinção entre a função organizadora e a executora; ampliação da cooperação e da divisão do trabalho dentro do grupo, e, em menor grau, entre os grupos; e, devido á existência do trabalho suplementar, aparição dessa forma não organizada da divisão do trabalho, que se manifesta na troca.
O fato da atividade organizadora da produção ter passado dos grupos como um todo às mãos de uma só pessoa — o patriarca — teve como consequência inevitável a concentração, nas mesmas mãos, da faculdade de organizar a distribuição dos produtos. Só o organizador podia decidir acertadamente, em beneficio da comunidade, qual a parte do produto social que podia ser consumida imediatamente, qual a que podia ser utilizada para a produção ulterior e qual a que devia ser conservada como reserva. Só ele, tendo em linha de conta as funções dos diferentes indivíduos no trabalho geral do grupo, podia destinar a cada um o necessário para manter e desenvolver ditas funções.
Quanto mais a maioria dos membros da tribo se foi acostumando a não intervir, tanto no trabalho organizador como na distribuição dos produtos, mais incondicional se tornou o direito do patriarca em dispôr do produto social que sobrava. Daí, quanto mais aumentou a soma geral do trabalho suplementar, mais aumentou também a parte dele que o patriarca reservava para seu próprio uso e, por conseguinte, na mesma proporção cresceu a desigualdade na distribuição entre ele e os demais membros do grupo. Isto constitui, já, o germe da exploração, mas apenas o germe, porque o homem que levava a cabo uma tarefa tão complicada, como a de organizador, desenvolvia efetivamente uma quantidade de trabalho muito superior à dos demais, e portanto suas necessidades tinham que ser maiores. A extensão da exploração achava-se limitada pela insignificância geral da produção e pela escassa variedade dos produtos. O organizador tinha que contentar-se com as mesmas provisões que os demais, e ainda quando escolhesse para si o melhor do que se produzira nem por isso podia comer dez vezes mais pão ou mais carne que os outros. É certo que podia receber de outro grupo algum artigo especial de consumo em troca de uma parte do remanescente de produtos; mas isto sucedia relativamente com pouca frequência, por causa do insignificante desenvolvimento da troca.
For outro lado, nos casos em que se juntavam vários grupos em organização tribal para alguma empresa importante, o produto do trabalho comum (o acervo da caça ou da guerra) era distribuído pelos mesmos indivíduos que organizavam a empresa, que era, em geral, um conselho de anciãos. A distribuição entre os grupos se fazia de acordo com a parte que cada um deles tinha tomado no trabalho comum.
A criação de um organizador da produção dentro do grupo modificou pouco a pouco as relações do indivíduo com este e alterou a sua psicologia.
Se bem que o domínio da Natureza sobre os homens houvessem diminuído, havia surgido, não obstante, um poder novo: o de um homem sobre o outro. Na realidade, tratava-se da autoridade outorgada primeiramente pelo grupo a cada membro individual, e que, agora, ficava concentrada nas mãos de uma só pessoa: o patriarca.
A igualdade na distribuição havia desaparecido. Todo o produto do trabalho suplementar ficava à disposição do organizador. Mas esta desigualdade não apresentava um caráter muito pronunciado. O organizador não fazia mais que o que o grupo havia feito primitivamente; isto é, atribuir a cada qual o necessário para subsistir e desempenhar sua particular função no processo de produção. Na amplitude de suas necessidades, o organizador não excedia grande coisa aos demais membros do grupo.
Os vínculos de auxílio mútuo, a necessidade do agrupamento na luta contra o mundo exterior, aumentaram ainda em comparação com os períodos precedentes. Em primeiro lugar, o progresso realizado na cooperação e divisão do trabalho dentro do grupo, unia seus membros mais estreitamente que antes, quando a maior parte do trabalho quotidiano podia ser executada indistintamente por cada membro do grupo. Em segundo lugar, a unidade do grupo achava-se, em parte, fortalecida, pelo fato de haver recebido uma representação viva, concreta, na pessoa do patriarca.
Ao mesmo tempo, como consequência das novas condições de vida, surgiram os germes do individualismo, e o homem começou a estabelecer diferenças entre o seu próprio ser e o grupo, começando a revelar-se os interesses pessoais onde até então só tinham existido interesses comuns.
A função de organizador da produção era uma função especial e pertencia só ao organizador. A isso se deve principalmente ter surgido em seu espírito sentimentos e ideias individualistas. Desta causa fundamental se derivam depois outras, que exerceram análoga influência.
O organizador tinha à sua disposição todas as disponibilidades comuns e a totalidade do produto suplementar, o que lhe dava ensejo de aumentar suas necessidades, convertendo-se, assim, numa figura mais destacada ainda dentro de seu grupo. Demais, ao efetuar as operações de troca com outros grupos, se conduzia como o verdadeiro dono da propriedade de seu grupo, e em suas transações com os demais organizadores começou a considerar, primeiro a estes e, depois, a si mesmo como o proprietário das coisas trocadas. Deste modo se foi desenvolvendo, pouco a pouco, a propriedade privada. A princípio, a troca entre os grupos, em cuja operação o grupo atuava como o único proprietário de seus produtos, deve ter dado origem à concepção da propriedade privada tribal. Mais tarde, a função desempenhada pelo organizador transformou a mente dos homens e criou a ideia da propriedade privada individual.
Entretanto, a ideia da propriedade privada individual não se arraigou no espirito do organizador senão quando esta função se tornou hereditária, quando o grupo deixou de eleger seu patriarca e, por conseguinte, quando desapareceram todos os vestígios da origem desta autoridade. Foi quando, então, o individualismo encontrou uma base sólida para seu desenvolvimento. A ideia de considerar a propriedade da tribo como própria se arraigou cada vez mais na mente do organizador, eclipsando paulatinamente a de que era o distribuidor de dita propriedade, sob o controle de toda a comunidade. Ao mesmo tempo, conforme foi desaparecendo o controle efetivo do grupo sobre as atividades organizadoras de seu chefe, este exigiu de seus homens uma obediência cada vez mais absoluta, e se acostumou à ideia de que possuía sobre eles uma autoridade pessoal. No curso de seu desenvolvimento, estas ideias não deixaram de tropeçar com a resistência dos demais membros do grupo, e mais de uma comunidade teve de sofrer, sem dúvida, por isso, violentas lutas internas. Não obstante, tarde ou cedo os esforços do organizador chegaram a triunfar, porque correspondiam às relações sociais: o organizador exercia uma autoridade real sobre os produtos e sobre os homens, e ele era necessário para o grupo. Deste modo o patriarca chegou a converter-se no único proprietário e senhor absoluto do grupo.
Essencialmente, porém, a distinção psicológica que havia surgido entre o organizador e os demais membros da tribo não era muito grande, porque as bases que bitolavam o espirito dos homens continuavam sendo comuns; isto é, a subordinação absoluta ao costume e à concepção do grupo como um todo indivisível, fora do qual era impossível a existência. O mesmo patriarca, apesar de sua maior capacidade mental, não podia elevar-se conscientemente por cima dos arcaicos fundamentos da vida tribal, nem podia sentir-se não impelido a combatê-los. O organizador não era um gênio, não era um homem de excepcional capacidade, mas o mais velho da tribo, o que mais anos de experiência tinha. Sua atividade organizadora baseava-se sobretudo no que seus predecessores haviam feito, e só num grau insignificante fazia uso de sua iniciativa e de seu próprio raciocínio. O costume dominava sua alma tão impressionantemente como havia dominado a do seu remoto antepassado, o comunista primitivo. A concepção da individualidade do grupo dominava igualmente o espírito do organizador, porque tão pouco a ele lhe era possível em nenhum caso viver, só, fora da tribo e não conhecia outros vínculos sociais senão os dela: a vida fora da sociedade significava a morte. A mesma consideração pode aplicar-se, quiçá em maior grau, aos demais membros do grupo. Em termos gerais, pode dizer-se que, entretanto, o costume conservador não havia sido quebrado pelas novas relações e a consciência individual começava tão somente a distinguir-se da consciência do grupo. O único que havia desaparecido era a concepção da uniformidade do grupo.
Assim, pois, a mentalidade do grupo patriarcal se diferencia pouco, em regra geral, da da "gens" primitiva. Por conseguinte, ainda subsistiam em grau considerável os antigos obstáculos a todo novo progresso. Entretanto, criavam-se forças que haviam de reduzir esses obstáculos. As relações transitórias com os demais grupos, embora sendo débeis, alargavam o horizonte da individualidade de cada grupo, e o contato entre diversas formas do costume foi enfraquecendo seu conservadorismo.
Outra questão que se depara agora é a dos conhecimentos de que dispunha o homem desta época para realizar novos progressos.
Como é natural, os milhares de anos no correr dos quais se desenvolveram as sociedades tribais não fluíram em vão, e os utensílios mentais dos homens tornaram-se cada vez mais numerosos e variados. O desenvolvimento da linguagem fez consideráveis progressos. O homem primitivo, como vimos, possuía muito poucas palavras, e estas de um significado sumamente amplo. Para a sua época isso era o suficiente; mas as novas fases do desenvolvimento trouxeram consigo uma maior complexidade do trabalho e dos utensílios e, em particular, a divisão do trabalho; todo um sistema econômico, dirigido pelo chefe da comunidade tribal autoritária: o patriarca. A linguagem se converteu em um instrumento imprescindível de organização e teve que ser enriquecido com novas palavras. As palavras anteriores foram diferençadas, alterou-se sua forma e, pouco a pouco, adquiriram um sentido mais concreto. Semelhante desenvolvimento da linguagem constituiu um poderoso instrumento ideológico para o progresso, em geral, e para facilitar o trabalho organizador, em particular. O desenvolvimento da linguagem foi igualmente de grande valor para conservar toda a experiência acumulada na forma de recordações ou de tradição oral.
Não seria errôneo supor que foi durante o período que estamos examinando que o homem começou pela primeira vez a explicar a Natureza e a tratar de descobrir as relações existentes entre os diversos fenômenos, e que foi então que apareceu algo parecido com a "filosofia" . A essência desta filosofia era o fetichismo natural.
O homem se esforçava por explicar o distante pelo próximo, o desusado pelo habitual, o estranho pelo compreensível. O mais peculiar e habitual ao homem eram as relações que o uniam com os que o rodeavam. Daí porque, durante esta época, a forma geral da filosofia do homem revela as pegadas de suas relações sociais. O fetichismo natural é a apreciação da Natureza segundo a qual se consideram as relações entre as coisas como as relações entre os homens. A separação entre o trabalho organizador e a execução havia criado uma dualidade própria nas relações internas da sociedade tribal. As forças mentais, por assim dizer, se haviam separado das forças físicas, o consciente do espontâneo. O primeiro se personificava no patriarca; o segundo, no resto dos membros do grupo. Ao mesmo tempo ambos elementos eram na realidade inseparáveis, um impossível sem o outro. O trabalho executor precisava de objeto sem uma vontade organizadora e esta era completamente inútil sem aquela.
Na atividade dos que o rodeavam, o homem estava acostumado a notar a influência da vontade dos organizadores sobre as forças executoras, e de acordo com isso se explicavam outras atividades que observava no mundo exterior. Para ele todo fenômeno consistia numa inseparável combinação dos elementos: uma vontade que mandava e uma forma material que obedecia. Ainda quando só pudesse ver a ultima, era incapaz de concebê-la sem a primeira, e supunha a existência de uma força organizadora onde na realidade não a via. Deste modo se criou a "alma das coisas", que aparecia como a causa dos fenômenos, e que o homem descobria em toda parte: na pedra e na vegetação, nos animais e nos seres humanos, no fogo e na água. A Natureza se lhe aparecia em todas suas formas como uma dualidade homogênea.
Já vimos que ao desenvolver-se a comunidade autoritária, a função do organizador revela certa divisão do trabalho, criando-se um sistema completo de organizadores sob a direção do patriarca. O pensamento fetichista transplanta inevitavelmente estas relações reais ao meio ambiente, e para o membro da comunidade tribal autoritária todo o universo aparece como dirigido por, vários organizadores, presididos por um deus supremo. Isto constitui a essência de suas concepções religiosas.
A religião nasceu da veneração dos antigos organizadores. O patriarca que entrava em funções, reconhecia a autoridade e superioridade de seu predecessor e transmitia esta atitude a seus sucessores. Por via disso, os patriarcas mortos eram considerados tanto mais superiores quanto mais remota era sua origem, e o mais antigo de todos se confundia com uma deidade e se elevava por cima dos homens, dirigindo todos os fenômenos da Natureza. Todos os ensinos dos antepassados, todas as tradições orais conservadas na comunidade, eram considerados como uma revelação desses deuses e constituíam a "religião" da época. Por conseguinte, a religião consistia, então, na conjunção de todas as experiências. Reunindo em um todo os dados dispersos da experiência produtiva, ajudava a reter na memória dos homens um conjunto de conhecimentos práticos. Os mitos religiosos que estabeleciam as causas das relações existentes entre determinado número de fenômenos naturais, tornava muito mais fácil recordar tanto estas relações como a produção consecutiva dos fenômenos.
Estreitamente ligado com a religião existia outro instrumento de organização, que era o costume: as regras da coexistência, ou normas sociais. O costume consistia simplesmente, a princípio, nos ensinos dos antepassados; mais tarde, porém, com o desenvolvimento dos cultos religiosos, converteu-se nos mandamentos dos deuses, cuja inexorável vontade tinha que ser obedecida agora, como o fora antes a autoridade do patriarca.
Ao mesmo tempo que coordenava a experiência e estabelecia regras técnicas e normas de costumes, a religião servia de entrave aos progressos ulteriores. Os "ensinamentos dos antepassados" e os "mandamentos dos deuses" eram normas consagradas pelo pensamento conservador durante centenares e até milhares de anos. Se em nossa época costuma ser necessária uma dura luta com a geração mais velha para abandonar as normas habituais da vida, pode imaginar-se a resistência que devia suscitar toda inovação na vida tribal autoritária.
Para vencer este conservadorismo ideológico precisava-se de uma força elementar, por um lado, e de uma enorme riqueza de experiências, por outro.
Toda vez que a consciência social da época que estamos estudando apresentava essencialmente os mesmos obstáculos naturais ao progresso que as anteriores etapas da existência humana, a força motriz do desenvolvimento social tinha que ser forçosamente a mesma exigência elementar da superpopulação absoluta. À medida que o aumento da população originava uma insuficiência dos meios de vida, os costumes conservadores tiveram que ceder o passo e permitir o aperfeiçoamento da técnica e a modificação das relações sociais. A aparição e a expansão gradual da troca de produtos constituiu uma aquisição importantíssima para tal desenvolvimento. O progresso da troca ou, para sermos exatos, da divisão do trabalho, ao aperfeiçoar-se mercê do desenvolvimento da técnica, é uma força motriz poderosíssima para todos os desenvolvimentos ulteriores.
Outra aquisição, se bem que menos importante, do período foi a aparição dos "escravos". Devido à existência do trabalho suplementar, o organizador julgou de vantagem em muitos casos aumentar o número de membros do grupo, com o que aumentava a soma total do excedente de produtos de que dispunha o organizador. Por esse motivo, acontecia com frequência na sociedade patriarcal que os inimigos aprisionados na guerra, invés de ser aniquilados, como antes, eram incorporados ao grupo, onde se os obrigava a tomar parte na produção, como escravos.
Entretanto, não deve imaginar-se que na sociedade patriarcal os escravos eram considerados como simples bens. Antes, ao contrário, eram considerados quase no mesmo pé de igualdade dos demais membros do grupo ao qual haviam sido incorporados, e o caráter do trabalho em conjunto os unia tão intimamente a eles, que, pouco a pouco ia desaparecendo a lembrança das lutas passadas. É duvidoso que o organizador os "explorasse" mais que aos outros membros da tribo, pois todos trabalhavam por igual. Os escravos não eram vendidos, e a atitude que para com eles se tinha era, em geral, análoga à que observam os índios americanos com os seus prisioneiros.
O advento da troca e a aparição da escravatura, fatos, ambos, à primeira vista distintos, constituem uma só e importantíssima característica, pois os dois representavam uma violação da antiga forma da cooperação, baseada exclusivamente no parentesco. Os membros ligados pelo parentesco estavam saturados de um espírito de exagerado exclusivismo e de intolerância para com tudo o que se achasse fora de seus limites. As novas formas de vida contradiziam e limitavam até certo ponto esta intolerância. Disso se derivaram outros vários fatos sociais.
A dominação dos vínculos de parentesco significava a dominação incondicional e absoluta do costume. A força do costume em relação com as formas de vida estabelecidas era tão poderosa e a consciência pessoal tão débil, que o indivíduo era simplesmente incapaz de hostilizar ou violar o costume. Nem sequer podia imaginar-se semelhante coisa. Se acontecia algo que se não harmonizava com o costume, não era considerado como um crime ou um delito no sentido moderno, mas como uma anormalidade. Se um menino nascia com duas cabeças, matava-se-o por ser uma monstruosidade. Se uma pessoa violava o costume, era tratada da mesma maneira: era morta ou desterrada, o que vinha a dar na mesma. Isto, porém, não constituía um castigo, mas um meio instintivo de defender-se contra um fenômeno perigoso e inexplicável. Nesta época não existiam de modo algum ideias sobre a lei e a violação das leis, sobre moralidade e imoralidade. Os homens obedeciam o costume, impelidos e impulsionados pela mesma necessidade natural que os obrigava a comer, beber e dormir.
Ao aparecer novos vínculos sociais, não já baseados no parentesco, as coisas mudaram de figura. As infrações do costume deixaram de ser acidentes excepcionais. Em primeiro lugar entraram em contato uns costumes com outros, e a execução dos costumes de um grupo implicava muitas vezes a violação dos de outro. Assim, um escravo que cumprisse com os arcaicos costumes de sua tribo dentro do grupo a que havia sido incorporado, podia muito bem pôr obstáculo ao desenvolvimento normal da produção deste e causar consideráveis transtornos a seus novos companheiros. Do mesmo modo, a manutenção de relações de troca com outros grupos, teve que obrigar com frequência a infringir o arraigado costume de olhar com hostilidade a todos os povos estrangeiros. A violação do costume se converteu, portanto, em um fenômeno frequente, e a sociedade não pôde continuar considerando-a tal como até então.
Isto deu motivo à criação de uma nova forma de vida — a lei do costume — cuja finalidade essencial era proteger o costume contra a violação. O delito já não era combatido de maneira espontânea, e sim de maneira mais ou menos consciente. Estabeleceu-se todo um sistema de punições para diferentes graus de delitos e se adotou, com igual fim, uma série de medidas gerais destinadas a reparar o dano causado por alguma transgressão e impedir sua repetição. Apareceu, então, a concepção do legal — o justo, e do ilegal — o injusto, e, de todos estes elementos, se derivaram, ulteriormente, a moral e a lei.
Assim, um após outro, foram aparecendo os germes de novas formas de vida.
Em termos gerais pode dizer-se que a forma tribal-patriarcal constitui o nível de existência em que vive atualmente a maior parte dos povos atrasados.
Notas de rodapé:
(2) O trabalho "necessário" é a parte do trabalho social que serve para criar e manter a força de trabalho da sociedade. O trabalho "suplementar" é a parte restante do trabalho social, que cria um "excedente" de produtos. (retornar ao texto)
(3) O trabalho simples é aquele que pode ser executado, sem preparação especial, pelo trabalhador médio de uma sociedade dada. Com o progresso da vida econômica e cultural, esta classe de trabalho também progride. (retornar ao texto)
Inclusão | 07/04/2016 |