Segunda Carta a Paul Sweezy

Charles Bettelheim

18 de fevereiro de 1970


Primeira Edição: Monthly Review Vol 22 Nº. 7 Dezembro 1970

Fonte: Portucalense Editora Porto, setembro 1971

Tradução: Alberto Saraiva

Transcrição: Graham Seaman

HTML: Fernando Araújo.


capa

Caro Paul:

A sua resposta à minha carta anterior levanta problemas de uma importância decisiva. Estou persuadido de que ela deve seriamente ajudar-nos a clarificar melhor as nossas posições e, deste modo, a aprofundar um certo número de questões.

Não é evidentemente minha intenção retomar todos os problemas levantados pelo seu texto (aliás, conto abordar muitos deles sob a forma de um livro). Queria, portanto, limitar-me a algumas reflexões sobre determinados desses problemas.

Plano e mercado

Tenho a impressão, particularmente ao ler a sua nota 4, que chegámos parcialmente a um acordo sobre o problema do «plano e do mercado», pois parece-me que V. admite que, durante um dado período, o recuo ou o progresso das relações mercantis não basta para caracterizar o progresso para o socialismo ou o recuo em relação a este, e que o que é significativo politicamente, isto é, de um ponto de vista de classe, é o modo como é tratado um eventual progresso das relações mercantis. O grau de amplitude das relações mercantis num dado momento não basta, portanto, para indicar o grau de progressão para o socialismo (nessa perspectiva, aliás, a União Soviética nunca teria estado tão próxima do socialismo como durante o Comunismo de Guerra).

Fundamentalmente, a progressão para o socialismo não é mais que a dominação crescente pelos produtores imediatos das suas condições de existência e, portanto, em primeiro lugar, dos seus meios de produção e dos seus produtos. Esta dominação não pode deixar de ser colectiva e aquilo a que se chama o «plano económico» é um dos meios desta dominação, mas só em determinadas condições políticas, na falta das quais o plano não é mais que um meio particular posto em prática por uma classe dominante, distinta dos produtores imediatos que vivem do produto do seu trabalho, para assegurar a sua própria dominação sobre os meios de produção e sobre os produtos correntemente obtidos.

No entanto, nas formulações que se seguem a essa nota, V. atribui à «contradição plano/mercado» um significado que, a meu ver, ela não pode ter, por razões que, resumidamente, gostaria de expor.

Parece-me difícil contestar que os termos «mercado» e «plano» correspondem a noções empíricas e descritivas e não a conceitos científicos teoricamente elaborados. Estes termos remetem pois para formas de representação (Darstellung), que eles exprimem em termos ainda ideológicos, e não para relações reais. Tais relações, com efeito, só podem ser postas a claro através daquilo a que Marx chama uma «análise das formas». É neste sentido que, a meu ver, a contradição «plano/mercado» não passa de um «efeito de superfície» cujo significado não pode ser apreendido ao nível dessa mesma contradição mas só pondo a claro as contradições profundas (que dizem respeito às relações de produção e às relações, de classes) de que a contradição «plano/mercado» é apenas a representação.

É por isto que a contradição «plano/mercado» não é — não pode ser — uma contradição fundamental: não designa nem uma contradição de classes (uma contradição política) nem uma contradição económica (uma contradição entre relações sociais efectivas ao nível económico), mas certos efeitos variáveis dessas contradições e os «lugares» em que estes efeitos se representam.

Para ser mais preciso, direi que a contradição «plano/mercado» designa, de uma forma metafórica, uma contradição entre dois «espaços de representação», entre dois «palcos»(1)

Nestes dois «palcos» intervêm, ao nível da descrição, «actores»: compradores, vendedores, planificadores, directores de empresa, administradores, etc. Estes actores aparecem não como os portadores de relações sociais e como agentes que desempenham funções (determinadas pelas relações sociais existentes e, fundamentalmente, pelas relações de produção dominantes), mas como «sujeitos» dotados de «autonomia», de uma certa «psicologia», etc. A «presença» destes «actores», o «quadro» em que eles intervêm (o gabinete do plano, a direcção da empresa, etc.), a forma das relações que parecem «desenvolver-se entre eles» ocultam assim o essencial, as relações sociais fundamentais de que eles são portadores e que se reproduzem «noutro lugar). Este «outro lugar» designa: a instância económica (os locais da produção), a instância política (os órgãos do poder), a instância ideológica (essencialmente os aparelhos ideológicos: escolas, universidades, imprensa, rádio, etc.).

Se se privilegiarem estes dois «palcos» (o «mercado» e o «plano») ao ponto de neles se ver o «lugar» duma contradição fundamental, substitui-se a análise concreta das relações sociais reais pela descrição — normalmente sistematizada «sob formas ideológicas» — dos «actos» dos que ocupam o primeiro plano desses dois palcos e das formas sob as quais as relações sociais reais se «representam» (sich darstellen) nesses dois «palcos».

Uma grande parte dos debates sobre os problemas da transição — e uma grande parte das políticas que estes debates «descrevem» — foi falseada por se ter tomado o «mercado» e o «plano» por uma coisa diferente daquilo que são, a saber: a designação metafórica dos «lugares», ao mesmo tempo imaginários e reais, onde «se representam» relações que deste modo se foi levado a ignorar.

É verdade que a descrição dos problemas da transição em termos de «plano» e de «mercado» permite uma primeira observação «daquilo que se passa» nos dois «palcos» considerados; mas obriga a recorrer a uma série de noções que são precisamente aquelas através das quais os actores que intervêm nesses palcos «pensam» as suas acções (e ignoram as relações reais de que são portadores). Estas noções remetem para as múltiplas formas sob que se representam, dissimulando-se, as relações reais (exactamente do modo como a forma valor representa uma relação social ao mesmo tempo que a dissimula). Esta dissimulação é redobrada por uma série de deslocamentos, tomados inevitáveis pelo facto de as relações e as contradições que se desenvolvem realmente (e de que, se não as analisarmos como tais, só nos apercebemos dos efeitos indirectos e deformados) se situarem ao nível das três instâncias fundamentais da formação social. Este enraizamento multiplica as relações reais assim «representadas»; ele é indicado pela «natureza» das formas e das noções ideológicas presentes nos debates sobre o «plano» e o «mercado»: a forma valor, os preços, os contratos, as ordens administrativas, a propriedade de Estado, os «estímulos» materiais e os «estímulos» morais, etc.

Esta diversidade e esta heterogeneidade das noções para que somos remetidos quando queremos fazer «funcionar» a «contradição plano/mercado» revela bem que esta última, longe de ser uma contradição fundamental, não é mais que a formalização ideológica dos «palcos» em que se enfrentam formas; formas que «exprimem» e dissimulam relações sociais reais. É a combinação destas relações que constitui a estrutura fundamental no seio da qual se desenvolvem as verdadeiras contradições, as contradições que é necessário pôr a claro, o que só se pode fazer analisando a estrutura fundamentai das formações sociais em transição.

Enquanto se estiver preso (como todos nós estivemos durante longos anos) às formas de representação imediata e às noções ideológicas construídas a partir delas, fica-se num mundo em parte real e em parte imaginário.

«Em parte real», pois é evidente que os termos «mercado», «plano», «ordens administrativas», etc. correspondem a certas realidades. «Em parte imaginário», pois as noções que permitem designar estas realidades fazem também alusão a realidades outras que as que dão directamente a ver, mas essas realidades permanecem ocultas enquanto essas alusões não forem decifradas. Por exemplo, o «plano» é um acto político e administrativo real, mas os processos efectivos de trabalho, de produção, de distribuição, de consumo que se desenrolam nos locais de trabalho, nas unidades de produção, nas unidades de consumo, e que o plano é suposto determinar, podem ter apenas uma relação muito longínqua com o que o plano prevê, o que pode transformar este numa «realidade mítica». Este mesmo processo de mitificação só pode ser analisado em termos de relações de classes e de relações ideológicas.

É por estas diversas razões que, enquanto se ficar confinado aos espaços de representação do «plano» e do «mercado», não se pode elaborar nenhuma concepção científica e apenas se podem enunciar aproximações empíricas.

Tais aproximações empíricas permitem, dentro de certos limites, «agir utilmente» (quer dizer, permitem atingir o objectivo visado), mas estas aproximações podem também levar a resultados diferentes daqueles com que se contava, e isto de uma forma que será incompreensível enquanto se não analisarem as relações e as contradições que determinam o movimento real de uma formação social determinada.

Os fracassos conhecidos pelos países socialistas foram, em parte, resultado de concepções que apenas têm exprimido em termos ideológicos o que as aparências imediatas sugerem.

Eu disse que estes fracassos só em parte se podem explicar assim. Com efeito, se estas concepções prevaleceram, foi em última análise — por razões ligadas à luta de classes e às relações de forças entre as classes.

A reflexão sobre a história económica e política de países colocados numa situação de transição, do seu progresso na via do socialismo ou do seu regresso à via capitalista, e a reflexão sobre o modo como esta história foi descrita e pensada (inclusive por mim próprio) convencem-me de que é absolutamente necessário mudar de terreno, ou seja, é preciso deixar o «território» em que se travaram as confrontações ideológicas dos últimos quarenta anos. Este «território» é precisamente aquele em que estão levantados os palcos do «mercado» e do «plano».

É preciso, portanto, mudar de lugar (o que não é fácil); é preciso ir além das formas imediatamente presentes e que assinalam, dissimulando-as, relações reais. São estas últimas que temos de nos esforçar por apreender, pois é só entre elas que podem desenvolver-se verdadeiras contradições (entre as quais, a contradição principal característica de cada fase da história real das formações sociais em transição).

Para podermos conhecer estas relações e estas contradições, para não sermos condenados a designá-las metaforicamente (julgando designá-las realmente), para podermos dominá-las, precisamos de proceder à análise das formas, isto é, efectuar, para as formas específicas das formações sociais em transição, um trabalho análogo ao efectuado por Marx para o modo de produção capitalista: é preciso tornar claras as relações sociais reais que assinalam e ocultam, ao mesmo tempo, as formas da representação e as noções ideológicas elaboradas a partir delas.

Na falta dessa análise, que se pode hoje começar a fazer («hoje» porque a história real nos «mostrou» as ilusões que se podiam construir a partir dessas formas), continuaremos a agir de modo aproximado e, o que é ainda mais grave, ficaremos no terreno favorável ao inimigo de classe, no terreno das ilusões ideológicas, aquele onde se desenvolvem todas as formas de exploração, de dominação e de sujeição.

Para retomar o meu ponto de partida, direi que pensar que a «contradição mercado/plano» possa ser a contradição fundamental do período de transição de que outrora eu próprio cheguei a pensar) significa:

  1. que se fica no terreno das formas e que, portanto, se é incessantemente levado a interpretar uma série de efeitos das contradições reais como derivados não destas últimas mas da confrontação entre o «mercado» e o «plano»;
  2. que se está preso àquilo a que Lenine chamou o «economismo», pois privilegia-se uma «contradição» que, formalmente, se apresenta como uma contradição económica e com isso esquece-se o essencial: a luta de classes;
  3. que se impede a pesquisa da contradição principal de cada fase, a análise do seu desenvolvimento e do deslocamento do seu aspecto principal.

É-se assim levado a atribuir ao «mercado» ou ao «plano» «virtudes» ou «propriedades» intrínsecas. Quer dizer: é-se levado a separar os possíveis efeitos dos desenvolvimentos das relações mercantis ou das relações planificadas (que são uma parte das relações sociais a analisar) das condições políticas em que essas relações se desenvolvem. Ora, estas condições políticas, isto é, as relações de classe, é que dão um significado concreto, real, ao desenvolvimento num dado momento desta ou daquela forma económica, subentendendo-se que se sabe que o progresso para o socialismo exige que as relações mercantis desapareçam e cedam o lugar a relações socialistas (de que as «relações planificadas» apenas constituem uma forma, e uma forma que pode corresponder a coisas completamente diferentes das relações socialistas: voltarei a este ponto).

Em resumo, precisamos de deixar de formular as coisas em termos de «plano» e de «mercado». Mais precisamente, precisamos de reconhecer que, se o «plano», em geral, não é o «pólo» de uma contradição principal de que o outro pólo seria o «mercado», é porque a contradição real (aquela que a expressão «contradição plano/mercado» designa no modo ideológico, cuja existência assinala ao mesmo tempo que dissimula) é a da dominação ou da não-dominação dos produtores sobre as condições e os resultados da sua actividade.

É essencialmente verdade que a existência de relações mercantis é um obstáculo à dominação dos produtores sobre seus produtos e que o pleno desenvolvimento destas relações leva à dominação da burguesia sobre os produtores imediatos e, portanto, à não-dominação dos produtores sobre as suas condições de existência. Por conseguinte, é essencialmente verdade que a eliminação das relações mercantis figura entre as tarefas históricas que o proletariado tem que realizar durante a edificação do socialismo. Mas também é verdade que esta eliminação não pode ser uma «abolição»: não pode deixar de ser o resultado de uma luta a travar nas frentes política, ideológica e económica, pois existem ao mesmo tempo limites ideológicos e políticos à eliminação das categorias mercantis bem como à das relações jurídicas burguesas (aqueles que — V. lembra-o justamente — Marx assinalou na «Crítica do Programa de Gotha») e limites económicos, ligados ao estado da estrutura relações de produção/forças produtivas (o que, por exemplo, explica que hoje, na China, as relações mercantis, a moeda e os preços não tenham sido eliminados). É por estas razões que a tarefa de eliminação das relações mercantis é uma tarefa histórica.

No entanto, e este é outro ponto que me parece absolutamente essencial, a existência desta tarefa e o seu significado histórico não devem de modo algum fazer esquecer que um «plano» e as relações planificadas podem, também eles, impedir a dominação dos produtores sobre as condições e os resultados da sua actividade.

Esta última proposição implica, o que durante muito tempo se perdeu de vista, que pode existir uma «planificação» e um «plano» burgueses assim como pode existir uma «planificação» e um «plano» proletários ou socialistas.

A «planificação» burguesa tem um carácter em parte mítico, mas não deixa por isso de ser um instrumento da política burguesa.

Ao identificar «plano» e socialismo, «mercado» e capitalismo (o que, tendencialmente, é verdade) ajuda-se a burguesia (e nomeadamente a burguesia soviética) a exercer a sua dominação, sob a capa de um «plano» em nome do qual ela retira todo o direito de expressão

às classes exploradas e com a ajuda do qual a exploração das massas pode ainda ser agravada.

Por isso, e este ponto parece-me fundamental, é preciso que reconheçamos explicitamente que só em certos condições sociais, políticas e ideológicas é que um plano é um instrumento da dominação dos, produtores sobre as condições e os resultados da sua actividade. Para que ele desempenhe esse papel, é necessário que o plano seja elaborado e posto em prática com base na iniciativa das massas, portanto, que concentre e coordene as experiências e os projectos destas. Esta coordenação, para ser real, deve evidentemente assegurar que se tomem em consideração as exigências técnicas e económicas gerais e as possibilidades objectivas de conjunto. É este um dos papéis do «centralismo», mas esta tomada em consideração será muito mais efectiva quanto mais o plano assentar, primeiro que tudo, na iniciativa das massas, quanto mais a sua elaboração e a sua aplicação forem controladas por elas. Deste modo, o plano toma-se um «concentrado» da vontade e das aspirações das massas, das suas ideias justas.

Se um plano não for este «concentrado», é um «plano» burguês e não um plano socialista; não é o «contrário» do mercado: é o seu complemento ou o «substituto» provisório.

Isto foi durante muito tempo ignorado na prática (inclusive por mim próprio).(2) Ora, ignorando-o, perde-se de vista que só podem existir relações de produção socialistas na medida em que haja dominação dos produtores sobre os condições e os produtos do seu trabalho.

Uma outra dificuldade a que será preciso voltar advém de que, nas condições de uma produção altamente socializada, a dominação dos produtores sobre as condições de existência exige o desenvolvimento de relações sociais inteiramente novas e, enquanto estas novas relações não se tiverem desenvolvido, as antigas relações, as que permitem a exploração e a dominação de classe, continuam a reproduzir-se. A instauração da ditadura do proletariado permite à classe operária, através da sua vanguarda, impor certas relações proletárias; este é um dos efeitos da estatização dos principais meios de produção, pois essa estatização rompe o quadro jurídico no interior do qual a burguesia exercia a sua dominação.

Entretanto, a reprodução das antigas relações sociais, das relações burguesas, ao nível das empresas e dos diferentes aparelhos políticos e ideológicos significa que os agentes da reprodução destas relações, que constituem forças sociais burguesas, continuam presentes sob a ditadura do proletariado e apesar da estatização dos meios de produção.

É isto, aliás, que toma necessária a ditadura do proletariado, pois a luta de classes prossegue. Uma das saídas possíveis desta luta é o regresso ao poder, sob formas não imediatamente detectáveis, das forças sociais burguesas. Isto verifica-se quando os representantes dessas forças tomam a direcção do Estado e do partido dirigente; a partir daí, o carácter de classe do Estado, da propriedade estatal e da planificação já não é proletário mas burguês. Quando tal acontece, a dominação dos produtores sobre as suas condições de existência, que, no momento da tomada do poder pelo proletariado, é em primeiro lugar assegurada pelo aparelho de Estado — aguardando sê-lo por outras formas, não imediatamente realizáveis, porque exigem uma transformação profunda das relações económicas, ideológicas e políticas— essa dominação cessa completamente e é substituída de uma classe exploradora. Na base das relações económicas, ideológicas e políticas existentes, essa classe não pode deixar de ser uma burguesia, que se apresenta como uma burguesia de Estado. A sua dominação provoca, aliás, o desenvolvimento de contradições específicas que haverá oportunidade de analisar.

Assim, se se reconhece que a dominação dos produtores sobre as suas condições de existência, portanto, sobre os meios de produção e os produtos do seu trabalho, constitui o essencial das relações de produção socialistas, deve concluir-se que a progressão na via do socialismo exige uma transformação das formas dessa dominação, a fim de que ela se torne cada vez mais completa. Parece-me ser este o significado da luta proletária de classe sob a ditadura do proletariado. Um dos momentos essenciais desta luta é a revolucionarização dos diferentes aparelhos económicos, ideológicos e políticos, pois é graças a ela que se pode proceder à eliminação das relações sociais capitalistas que eles continuam a reproduzir e à sua substituição por relações sociais socialistas.

Isto significa que o que é decisivo — do ponto de vista do socialismo — não é o modo de «regulação» da economia mas sim a natureza da classe no poder. Por outras palavras, mais uma vez, a questão fundamental não está em o «mercado» ou o «plano» — e, portanto, também o «Estado» — dominarem a economia, mas na natureza da classe que detém o poder. Se se coloca em primeiro plano o papel de direcção do Estado sobre a economia, relega-se para segundo plano o papel da natureza de classe do poder, isto é, deixa-se de lado o essencial.(3)

O caráter de par ideológico da contradição «plano/mercado» ou «mercado/Estado» revela-se precisamente no facto de os termos de um tal par se limitarem a aludir a contradições reais, designando relações de natureza complementar. Com efeito, ao nível económico, a existência do mercado (na realidade, de relações mercantis) é uma condição de possibilidade da dominação burguesa, enquanto ao nível político o Estado, como forma de existência do poder político, é também uma condição de possibilidade da dominação burguesa. A este respeito, «mercado» e «Estado» não se opõem fundamentalmente mas completam-se; o papel principal cabe quer a um quer a outro, consoante a natureza das contradições económicas, sociais e políticas de cada momento.

Lenine sublinhou que a forma estatal das relações de dominação política implica sempre relações burguesas, donde a importância da forma soviética do .poder ou da experiência da Comuna de Paris, pois estas formas do poder político deram origem a «Estados de um tipo novo», nos quais as relações burguesas são relegadas para segundo plano, de tal modo que eles já não são verdadeiramente «Estados». Com efeito, o Estado burguês (isto é, o Estado por excelência) é o exercício organizado da violência de uma minoria sobre uma maioria, ao passo que a existência de um Estado do proletariado implica o exercício da violência de uma maioria sobre uma minoria. Isto provoca uma transformação radical da estrutura e do papel do aparelho de Estado, bem como da sua relação com as massas. É precisamente esta transformação radical que faz com que um Estado socialista já não seja verdadeiramente um Estado embora comporte ainda relações que permitem à burguesia retomar o poder.(4)

O aspecto essencial do Estado burguês é a separação entre o aparelho de Estado e as massas: o aparelho de Estado está «acima» das massas, domina-as e reprime-as, ao passo que o Estado da classe operária já não é verdadeiramente um Estado porque é o instrumento do exercício do poder pelas próprias massas trabalhadoras (é nisto que reside o essencial da Comuna de Paris, do poder dos Sovietes, dos Comités Revolucionários, etc.).

Evidentemente, o poder dos trabalhadores pode assumir formas diferentes consoante as condições históricas concretas, quer dizer, principalmente, consoante as relações de forças de classes. Particularmente, este poder pode exercer-se por intermédio de um «destacamento de vanguarda» do proletariado, isto é, de um partido comunista marxista-leninista; tal partido exerce um poder proletário na medida em que é efectivamente uma vanguarda, uma parte da classe operária que representa o conjunto da classe e age em ligação com ela sem pretender substituir-se-lhe; deixa de ser uma vanguarda na medida em que, pelo contrário, se substitua à classe, na medida em que deixe de a guiar para, pura e simplesmente, lhe impor as suas concepções.

A diversidade das formas concretas que o poder da classe operária pode assumir não modifica o seu carácter de classe enquanto a relação dos órgãos do poder com as massas não for uma relação de dominação/repressão mas uma relação de vanguarda/massas, permitindo a estas exprimir os seus pontos de vista e à direcção concentrar as ideias justas vindas das massas. Quando, pelo contrário, os órgãos do poder se separam das massas quando as dominam e as reprimem, deixam de ser os órgãos de um Estado da classe operária e tomam-se os de um Estado burguês puro e simples. Não pode existir meio termo ou «terceira via», em particular, não pode existir um «poder de Estado da burocracia», pois uma burocracia está sempre ao serviço de uma classe dominante; mesmo quando abusa dos seus privilégios administrativos.

As observações que acabo de fazer levam a examinar alguns dos outros problemas que V. justamente levantou no seu texto, em particular as razões por que eu qualifico de «burguesia» a classe hoje no poder na U.R.S.S. A questão devia ser posta. Não a tinha abordado na minha carta anterior e nesta só parcialmente lhe respondo. De facto, este problema exige uma longa análise. Esta deve, necessariamente, ser conduzida em dois planos: um plano teórico, que permite produzir, desenvolver e fundar os conceitos com que se opera, e um plano de análise concreta, que revela como e porquê tais conceitos teóricos podem (ou não) servir para compreender relações históricas reais e, caso sirvam, mostra como agir sobre estas últimas, servindo de guia a uma acção .política determinada, o que, finalmente, constitui o objectivo da análise teórica no domínio do materialismo histórico.(5)

(18 de Fevereiro de 1970)


Notas de rodapé:

(1) Não é, evidentemente, por acaso que o revisionismo escolheu desenvolver os seus «argumentos» a favor das «reformas económicas» precisamente no «terreno» da contradição «plano-mercado» (cf. o livro de Ota Sik, Plan and Market under Socialism, Casa Editora da Academia das Ciências, Praga, 1967, 382 p.). (retornar ao texto)

(2) Foram precisas duas experiências históricas inversas para recordar esta verdade essencial ao marxismo (que tinha sido ocultada pela repetição das teses sobre o papel por assim dizer decisivo da propriedade de Estado e do plano na «construção do socialismo»). Estas duas experiências são as da entrada da U.R.S.S. na via capitalista e da revolução cultural proletária na China.

No que se refere àquilo que eu disse sobre estes problemas, V. notou justamente as datas em que foram escritos os diferentes textos publicados em «A transição para a economia socialista» e as mudanças de posição que surgem nos de 1967. Evidentemente, estas mudanças não são efeito do acaso: em 1967, assiste-se ao desenvolvimento da revolução cultural proletária e, no que me diz respeito, é também o ano em que efetuei uma nova estadia na China e em que, a pouco e pouco, pude apreender a complexidade, a. amplitude e o sentido profundo da revolução cultural. (retornar ao texto)

(3) Pode notar-se a este respeito a manobra de Brejnev, que tenta mascarar o abandono da ditadura do proletariado na U.R.S.S., oficialmente proclamado pelo XXII Congresso, dizendo que a ditadura do proletariado significa «a direcção do Estado sobre a edificação económica», o que precisamente escamoteia a questão da natureza de classe do poder. (retornar ao texto)

(4) Do mesmo modo, o exército, que é a principal parte constitutiva do aparelho de Estado, quando é um exército proletário, já não é verdadeiramente um exército: as relações internas que o caracterizam já não são as de um exército burguês e as relações com as massas trabalhadoras são também profundamente diferentes; ele está concretamente ao serviço do povo, colabora nos trabalhos, já não vive de forma parasitária, etc. Não é, evidentemente, desprovido de significado e de importância o facto de, no exército soviético, as relações proletárias não se terem nunca desenvolvido ao mesmo grau que no Exército Popular de Libertação na China. (retornar ao texto)

(5) Como já lhe disse, tentarei abordar esta tarefa num próximo livro, tratando em particular do conceito de «burguesia de Estado», a fim de analisar as contradições específicas ligadas a esta forma de dominação burguesa. (retornar ao texto)

Inclusão: 24/06/2020