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Primeira Edição: O presente texto constitui uma versão preliminar do capítulo intitulado “Les temps en discorde (A propos du marxisme analitique)” incluído em ‘Marx, l’intempestif: grandeurs et misères d'une aventure critique’. A tradução em língua portuguesa, está disponível em Le Site Daniel Bensaïd - http://danielbensaid.org/.
Fonte: O Comuneiro - http://www.ocomuneiro.com/nr17_03_bensaid.html
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Vivemos em tempos de restauração. O surpreendente é que essa restauração está sendo feita sob medida das desordens. De progresso? Cabe a dúvida. O obscurecimento da luta de classes é propício para as seduções do mercado e para a escalada dos conflitos localistas. A renovação na análise destes fenômenos parece proceder da corrente chamada “marxismo analítico” ou da “eleição racional”. Em nossa exposição examinaremos criticamente as teses colocadas por um de seus principais teóricos, Jon Elster.
Em seu Marx, une interprétation analytique, Elster (1989) sustenta que Marx não previu que o advento do comunismo pudesse ser prematuro e que, a semelhança do modo de produção asiático, se convertesse em um beco sem saída da história. “Prematuro”: a palavra está dita. Os debates sobre o ritmo justo da história remetem geralmente a algumas passagens conhecidas do Prólogo de 1859 à Contribuição à crítica da economia política:
“Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado de suas forças produtivas materiais […]. Em certo estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que pode ser a expressão jurídica disso, com as relações de propriedade em cujo seio se mantinham caladas até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, tais relações tornaram-se entraves. Abre-se então uma época de revolução social […] Uma formação social nunca desaparece antes que se tenham desenvolvido todas as forças produtivas que ela seja bastante ampla para conter, nunca relações de produção novas e superiores tomam o lugar das antigas antes que as condições de existência materiais dessas relações tenham eclodido no próprio seio da velha sociedade. Essa é a razão porque a humanidade nunca se propõe senão as tarefas que pode cumprir, pois, olhando-se isso de mais perto, observar-se-á sempre que a própria tarefa não surge senão onde as condições materiais para cumpri-la já existam ou pelo menos estejam em vias de existir” (Marx, 1977a: 3).
Apesar (ou por causa) de suas intenções didáticas, este texto coloca mais problemas do que os resolve. Fiel ao título de seu livro maior, Marx faz uma “defesa” resoluta desta teoria. De A ideologia alemã às Teorias da mais valia, enumera os indícios de uma rigorosa determinação das relações de produção pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas, porque “nenhuma revolução triunfará antes que a produção capitalista tenha elevado a produtividade do trabalho ao nível necessário” (Marx, 1980a). Uma vez expropriada a classe dominante, a classe trabalhadora não seria capaz de fundar uma comunidade socialista sem “a premissa prática, absolutamente necessária” de uma produtividade elevada, pois sem ela a socialização forçada somente conduziria à generalização da escassez. Longe de levar à emancipação real do assalariado, a apropriação estatal dos meios de produção pode significar a generalização do trabalho assalariado sob a forma do “comunismo tosco” (que poderíamos traduzir, hoje em dia, por “coletivismo burocrático”). As tentativas “prematuras” de mudar as relações sociais estariam assim condenadas, portanto, à restauração capitalista sob as piores condições.
Aqui várias questões confundem-se. Marx insiste nas condições de possibilidade do socialismo contra o sustentado pelos comunistas utópicos. A socialização da escassez somente poderia “trazer de novo todo o velho lixo”. A crítica do produtivismo amiúde presta-se à ingenuidade. Se se trata de denunciar a falsa inocência das forças produtivas e de sublinhar sua ambivalência – fator de progresso tanto como de destruições potenciais – os desastres deste século estabelecem suficientemente sua pertinência sem que se tenha necessidade de lançar mão das robinsonadas do crescimento zero e da economia de arrecadação. Não há apenas um único desenvolvimento possível, socialmente neutro, das forças produtivas. Várias vias, de conseqüências sociais e ecológicas diferentes, são sempre concebíveis. No entanto, a satisfação das necessidades sociais novas e diversificadas sobre a base de um menor tempo de trabalho – daí a emancipação da humanidade do trabalho forçado! – passa necessariamente pelo desenvolvimento das forças produtivas.
Considera-se que o proletariado está qualificado para ter um papel chave nesta transformação, sobretudo porque a divisão técnica e social do trabalho cria as condições para uma organização consciente (política) da economia a serviço das necessidades sociais. Uma socialização eficaz da produção requer, então, um nível determinado de desenvolvimento. Em uma economia cada vez mais mundializada, este umbral mínimo não está fixado país por país. Relativo e móvel, ele varia em função dos laços de dependência e de solidariedade no seio da economia-mundo. Quanto menos desenvolvido esteja um país, mais tributário será da relação de forças no nível internacional.
Como conciliar a história como desenvolvimento das forças produtivas com a história como história da luta de classes? Elster vê aí “uma dificuldade capital do marxismo”:
“Não se encontra vestígio de um mecanismo pelo qual a luta de classes encoraje o impulso das forças produtivas”. Existiria em Marx “uma relação muito estreita entre a filosofia da história e a predileção pela explicação funcional. É, certamente, porque ele acreditava na história dirigida a um objetivo que sentia justificado explicar não somente os padrões de comportamento, mas também inclusive os acontecimentos singulares em função de sua contribuição a este fim” (Elster, 1989 : 429). Ao resumir a teoria de Marx como “uma mistura de coletivismo metodológico, explicação funcional e dedução dialética”, Elster não observa matizes. “Todas estas abordagens deixam-se talvez subsumir sob a rubrica mais geral da teleologia. A mão invisível que sustenta o capital é uma das duas grandes formas de teleologia em Marx, a outra sendo a necessidade de que o processo acabe, no fim das contas, por se destruir” (Elster, 1989: 689).
Na verdade, além das mistificações e dos prodígios do fetichismo, Marx revela a realidade profana das relações objetivadas que os homens mantêm entre si. O funcionalismo que Elster golpeia, não é mais que uma sombra projetada da clássica intencionalidade refugiada em seu próprio “individualismo metodológico”. Incapaz de compreender as insólitas “leis tendenciais” de Marx com sua necessidade semeada de acaso, desarma e rearma tristemente o tedioso Meccano das forças e das relações, da infra-estrutura e da superestrutura.
Longe de representações triunfalistas, a história não se reduz a um jogo de soma zero. Seu desenvolvimento acumulativo está marcado pelo das ciências e das técnicas. A aparição de um novo modo de produção não é a única saída possível do precedente. É errôneo pensar que a única alternativa concebível a um velho modo de produção é sua inexorável superação. Tal desenlace apenas se inscreve em um campo determinado de possibilidades reais. Uma avaliação do progresso histórico em termos de avanços e retrocessos sobre um eixo cronológico imagina o desastre sob a forma do regresso a um passado caduco, em lugar de alertar contra as formas inéditas, originais e perfeitamente contemporâneas de uma barbárie que é sempre a de um presente particular.
Compreendidas desta forma, as forças produtivas reencontram aqui seu papel. Forças produtivas e relações de produção são os dois aspectos do processo pelo qual os seres humanos produzem e reproduzem suas condições de vida. Salvo um aniquilamento sempre possível, o desenvolvimento das forças produtivas é acumulativo e irreversível. Mas disso não resulta um progresso social e cultural automático, e sim apenas sua possibilidade. De outro modo, todo projeto de emancipação derivaria do puro voluntarismo ético ou da pura arbitrariedade utópica. Dizer que o desenvolvimento das forças produtivas tem direcionalidade, que seu filme não pode ser rebobinado, significa que não se regressa do capitalismo ao feudalismo e do feudalismo à cidade antiga. A história não volta atrás. Sob velhos trapos enganosos, pode, entretanto, incubar as piores novidades.
Daí a justeza da fórmula “socialismo ou barbárie”, e o equívoco de consignas tais como: “socialismo ou status quo”, “socialismo ou mal menor”, “socialismo ou regressão”. Não se trata, pois, de avanços ou retrocessos, mas sim de uma verdadeira bifurcação. A dialética dos possíveis também é acumulativa. O aniquilamento das virtualidades libertadoras inventa ameaças desconhecidas e não menos aterradoras.
Passando por alto numerosos textos explícitos sobre o ponto, Elster, igual a tantos outros, obstina-se em encontrar em Marx “uma teoria da história universal, da ordem, na qual os modos de produção se sucedem sobre a cena histórica”. Atribui-lhe, inclusive, “uma atitude teleológica perfeitamente coerente”, a risco de não poder explicar o contraste entre A Ideologia Alemã e os grandes textos ulteriores, “senão talvez pela influência de Engels” (1991). Explicação tão cômoda como inconsistente, pois os textos de 1846 não têm nada de tresloucares juvenis que invalidariam a coerência geral, e se inscrevem em uma rigorosa continuidade com A Sagrada Família. Nos Grundrisse e na Contribuição de 1859 ressoa o eco fiel daqueles textos: “O que chamamos de desenvolvimento histórico repousa sobre o fato de que a forma derradeira considera as formas passadas como etapas que conduzem a si mesma; como, além disso, raramente é capaz de fazer sua própria crítica, ela as concebe sempre de maneira unilateral” (Marx, 1977a: 171).
Não se poderia rechaçar mais firmemente toda ilusão retrospectiva sobre o sentido de uma história cujo desenvolvimento conspiraria para o coroamento de um presente inelutável e, em conseqüência, legítimo.
Correspondência das forças produtivas e das relações de produção, necessidade e possibilidade históricas: estamos aqui de volta ante a questão da transformação das sociedades, das revoluções “prematuras” e das transições falidas. Não contente em atribuir a Marx o “esquema supra-histórico” que este tão claramente condenou, Elster censura-lhe ter imaginado um comunismo chegando a tempo, em lugar de apontar as conseqüências desastrosas de sua chegada prematura. No entanto, não tem sentido falar de uma chegada prematura ou antecipada. Um acontecimento que se inseriria como um elo dócil no encadeamento ordenado dos trabalhos e dos dias já não seria acontecimento, e sim pura rotina. A história está feita de singularidades circunstanciais. O acontecimento pode ser chamado prematuro em relação com um encontro imaginário, mas não no horizonte vacilante da possibilidade efetiva. Os que acusam Marx de ser determinista são, amiúde, os mesmos que lhe acusam sê-lo insuficientemente! Para o marxista “legal” Struve, como para os mencheviques, uma revolução socialista na Rússia em 1917 parecia monstruosamente prematura. A questão ressurge hoje em dia na hora dos balanços. Não teria sido mais prudente e preferível respeitar os ritmos da história, deixar que as condições objetivas e o capitalismo russo amadurecessem, dando à sociedade tempo suficiente para modernizar-se? Quem escreve a partitura e quem marca o compasso?
Segundo Elster, “dois espectros atormentam a revolução comunista”:
“Um é o perigo de uma revolução prematura em favor de uma mistura de idéias revolucionárias avançadas e situações miseráveis, num país que ainda não se acha amadurecido para o comunismo. Outro é o risco de revoluções conjuradas, de reformas preventivas introduzidas pelo alto para prevenir contra uma situação perigosa” (Elster, 1991: 710).
Se há revoluções prematuras, devem encontrar-se também, de fato, revoluções passadas. Resolvido a não ceder aos acalentos de futuros radiantes, Gerald Cohen em Analytical Marxism prefere assentar que um capitalismo debilitado torna somente possível “uma subversão potencialmente reversível do sistema capitalista e não uma construção do socialismo” (Cohen, 1986). Cohen continua sem conseguir escapar às armadilhas formais do Prólogo de 1859: “A revolução anticapitalista pode ser prematura e, por conseguinte, fracassar em seu objetivo socialista” (Cohen, 1986). Assim, uma explicação do stalinismo reduzida à imaturidade das condições históricas desmente a priori, em beneficio de um fatalismo mecânico, todo debate estratégico sobre a tomada do poder em 1917, sobre as oportunidades da revolução alemã em 1923, sobre o significado do NEP e sobre as diferentes políticas econômicas factíveis.
O debilitamento do capitalismo torna possível a subversão? Assumamos que a resposta seja positiva. Não torna ipso facto possível “a construção do socialismo”? Isto já seria dizer outra coisa e afirmar demasiado. É tratar com leviandade a noção crucial de possibilidade. Se se entende por possível o poder no sentido de possibilidade atual, subversão e construção são condicionalmente integráveis ainda que não estejam fatalmente ligadas. Sem o qual a subversão poderia consumir-se esperando o último combate e extinguir-se na resignação. Marx (e Lênin) são mais concretos. Para eles não se trata de instaurar na Rússia o comunismo “em seguida”, e sim de iniciar a transição socialista. Não buscavam classificar os países segundo uma “escala de maturidade”, em função do desenvolvimento das forças produtivas. Pelo contrário, a resposta de Marx a Vera Zasulich sobre a atualidade do socialismo na Rússia, insiste em dois elementos: a existência de uma forma de propriedade agrária que permanece sendo coletiva e a combinação do desenvolvimento capitalista russo com o desenvolvimento mundial das forças produtivas(1). A “maturidade” da revolução não se decide em apenas um país segundo um tempo unificado e homogêneo. Atua-se na discordância dos tempos. O desenvolvimento desigual e combinado torna efetiva sua possibilidade. A corrente pode ser rompida por seu elo débil. A transição socialista somente é concebível, ao contrário, em uma perspectiva, antes de tudo, internacional. A teoria da revolução permanente, que sistematiza estas intuições, sempre foi combatida em nome de uma visão rigorosamente determinista da história, e a ortodoxia staliniana reduziu precisamente a teoria de Marx ao esqueleto de um esquema “supra-histórico”, no qual o modo de produção asiático já não encontra lugar.
A sorte da Revolução Russa depois de 1917, o Termidor burocrático, o terror staliniano e a tragédia dos campos não são resultados mecânicos de sua pretendida antecipação. As circunstâncias econômicas, sociais e culturais tiveram um papel determinante. Não constituíam, no entanto, um destino inelutável, independente da história concreta, do estado do mundo, das vitórias e as derrotas políticas. A revolução alemã de 1918-1923, a segunda revolução chinesa, a vitória do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, o esmagamento do Schutzbund vienense, a guerra civil espanhola e o fracasso das frentes populares representaram outras tantas bifurcações para a própria Revolução Russa.
Como conciliar esse desenvolvimento tendencial com sua negação, resultante do fetichismo generalizado da mercadoria e da coisificação da relação social? Marx repete que a valsa infernal do trabalho assalariado e o capital reproduzem a mutilação física e mental do trabalhador, a submissão dos homens às coisas, a sujeição de todos à ideologia dominante e às suas fantasmagorias. O caráter prematuro da revolução toma, então, um sentido que Cohen e Elster não suspeitam. É, em certo modo, um acontecimento antecipado estrutural e essencial. Não é de tal ou qual país, de tal ou qual momento. Na medida em que a conquista do poder político precede a transformação social e a emancipação cultural, o começo é sempre um salto perigoso, possivelmente mortal. Seu tempo suspendido é propício para as usurpações burocráticas e para as confiscações totalitárias.
Para Elster, “o capitalismo era uma etapa incontornável em direção ao comunismo”, segundo “a filosofia marxiana da história”. Na medida em que o comunismo se torna possibilidade real somente a partir de certo nível de desenvolvimento, o capitalismo contribui para reunir as condições para isso. Esta trivial evidência não autoriza em nada a proposição recíproca de um capitalismo que sempre e em todas as partes seria a etapa necessária (inevitável) para o fim predeterminado do comunismo. Não é o mesmo dizer que o comunismo pressupõe um grau determinado das forças produtivas (produtividade do trabalho, qualificação da força de trabalho, desenvolvimento das ciências e das técnicas) ao que contribui o crescimento capitalista; que o capitalismo constitui uma etapa e uma preparação inevitável sobre a via traçada da marcha do comunismo. A segunda fórmula cai na ilusão tão amiúde motivo de piada por parte de Marx, segundo a qual “a forma derradeira considera as formas passadas como etapas que conduzem a ela mesma”.
Uma revolução “no tempo certo”, sem riscos nem surpresas, seria um acontecimento sem acontecimento, uma espécie de revolução sem revolução. Atualizando uma possibilidade, a revolução é, por essência, intempestiva e, em certa medida, sempre “prematura”. Uma imprudência criadora.
Se a humanidade somente se coloca os problemas que pode resolver, como é que nem tudo chega no momento esperado? Se uma formação social nunca desaparece antes que se tenham desenvolvido todas as forças produtivas que cabem dentro dela, por que forçar o destino e a que preço? Era prematuro ou patológico proclamar, desde 1793, a primazia do direito à existência sobre o direito de propriedade, ou exigir a igualdade social no mesmo nível que a igualdade política? Marx diz claramente que a aparição de um direito novo expressa a atualidade do conflito. As revoluções são signos do que a humanidade pode historicamente resolver. Na inconforme conformidade da época, são um poder e uma virtualidade do presente, por vezes de seu tempo e a contratempo, demasiado cedo e demasiado tarde, entre o já-não e o ainda-não. Um talvez cuja última palavra não foi dita.
Tomar o partido do oprimido quando as condições objetivas de sua libertação não estão maduras revelaria uma visão teleológica? Os combates “anacrônicos” de Espartaco, Münzer, Winstantley e Babeuf, então, seriam desesperadamente datas em vista de um fim anunciado. A interpretação inversa parece mais conforme ao pensamento de Marx: nenhum sentido pré-estabelecido da história, nenhuma predestinação justificam a resignação à opressão. Inatuais, intempestivas, descontemporâneas, as revoluções não se integram aos esquemas pré-estabelecidos da “supra-história” ou aos “pálidos modelos supratemporais”. Seu acontecimento não obedece ao programa de uma história universal. Nascem rente ao solo, do sofrimento e da humilhação. Sempre há razão para rebelar-se.
O presente é a categoria temporal central de uma história aberta. É o tempo da política que “supera doravante a história” como pensamento estratégico da luta e da decisão:
“Aquele que professa o materialismo histórico não teria como renunciar à idéia de um presente que de modo algum é passagem, mas que se conserva imóvel no limiar do tempo” (Benjamin, 1991).
À igualdade “logicamente impossível” das classes, Marx opõe sua abolição “historicamente necessária”. Esta necessidade histórica não tem nada de fatalidade mecânica. A especificidade da economia política impõe ver de novo os conceitos de acaso e de lei, distinguir a necessidade “no sentido especulativo-abstrato” da necessidade “no sentido histórico-concreto”.
Há necessidade – diz Gramsci em seus Cadernos do cárcere – quando há uma premissa eficiente e ativa, cuja consciência entre os homens tornou-se ativa, colocando fins concretos à consciência coletiva, e constituindo um conjunto de convicções e de crenças poderosamente atuante como as “crenças populares” (1971 : 273-277).
Imanente, a “necessidade histórica” enuncia o que deve e pode ser, não o que será: “Não existe entre a possibilidade e a necessidade senão uma diferença aparente. Esta necessidade é ao mesmo tempo relativa”. A possibilidade real torna-se necessidade. A necessidade começa pela unidade “não ainda refletida sobre si”, do possível e do real. Ainda não se determinou ela mesma como contingência. Porque a necessidade, acrescenta Hegel, real em si, é igualmente contingência, “o que significa dizer já de saída que o necessário real é mesmo, por sua forma, um necessário, mas que é, por seu conteúdo, limitado e que é a essa limitação que ele deve sua contingência. [...] A unidade da necessidade e da contingência existe portanto aqui em si; e designa-se essa unidade em termos de necessidade absoluta” (Hegel, 1949: 486-7, Tomo II).
Desde sua tese sobre a filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro, Marx maneja perfeitamente esta dialética:
“O acaso é uma realidade que não tem outro valor senão a possibilidade. Ora, a possibilidade abstrata é precisamente o antípoda da possibilidade real. Esta acha-se encerrada, como o entendimento, dentro dos limites precisos; aquela, tal como a imaginação, não conhece limites. A possibilidade real busca demonstrar a necessidade e a realidade de seu objeto; a possibilidade abstrata quase não se preocupa com o objeto que pede explicação, mas com o sujeito que explica. Basta que o objeto seja possível, concebível. O que é possível abstratamente, o que pode ser pensado não constitui para o sujeito pensante nem obstáculo, nem limite, nem estorvo. Pouco importa então que essa possibilidade seja aliás real, pois o interesse não se entende aqui ao objeto como tal [...] A necessidade aparece com efeito na natureza acabada como necessidade relativa, como determinismo. A necessidade relativa somente pode ser deduzida dessa possibilidade real. A possibilidade real é a explicação da necessidade relativa” (Marx, 1968)(2).
A possibilidade se inscreve nesse jogo do necessário e do contingente, no movimento da necessidade formal para a necessidade absoluta, via a necessidade relativa. Distingue-se tanto da simples possibilidade formal (ou não contradição) como da possibilidade abstrata ou geral. Como possibilidade determinada, leva em si uma “imperfeição”, da qual resulta que “a possibilidade é, ao mesmo tempo, uma contradição o uma impossibilidade”.
“Pensador do possível”, Marx atua, assim, de vários modos: o possível contingente, cujo laço com a realidade determina (segundo Hegel) a contingência; “o ser em potencial” como capacidade determinada para receber (segundo Aristóteles) uma forma dada (a passagem da potência ao ato seria, então, o momento unitário por excelência do acaso e da necessidade); o possível histórico finalmente (real ou efetivo, wirklich), que seria a unidade do possível contingente e do ser em potencial. Aparecendo de entrada como possibilidade em O Capital, a crise torna-se efetiva através do jogo da luta e das circunstancialidades. O Capital não diz outra coisa: nenhuma necessidade absoluta, nenhum demônio de Laplace. Acaso e necessidade não se excluem. A contingência determinada do acontecimento não é arbitrária nem caprichosa; somente deriva de uma causalidade não formal: “Aproximamo-nos mais da verdade dizendo que foi o próprio evento que se serviu de tal ou qual causa, pequena e ocasional, como de um pretexto” (Hegel, 1949: 226, Tomo II). A necessidade desenha o horizonte da luta. Sua contingência conjura os decretos do destino.
O último capítulo da penúltima parte do livro primeiro de O Capital, “Tendência histórica da acumulação capitalista”, inspirou muitas profissões de fé mecânicas na derrocada garantida do capital sob o peso de suas próprias contradições, assim como muitas polêmicas. Marx escreve: “A produção capitalista engendra por seu turno, com a inelutabilidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação da negação” (Marx, 1993: 856-857). Curioso texto, sem dúvida. Por um lado, antecipa lucidamente as tendências à concentração do capital, à aplicação industrial da ciência e da técnica, à organização capitalista da agricultura, à socialização contraditória dos grandes meios de produção, à mundialização das relações mercantis. Estas previsões verificaram-se amplamente. Por outro lado, parece deduzir do desenvolvimento capitalista uma lei de pauperização absoluta e de polarização social crescente. As polêmicas de Marx contra Lasalle e sua “lei de ferro dos salários” proíbem, no entanto, uma interpretação mecânica da pauperização. Pelo contrário, a idéia de que a concentração do capital e “o mecanismo mesmo da produção capitalista” têm por efeito a massificação do proletariado e a elevação automática de sua resistência, de sua organização e de sua unidade, rompe, ao menos parcialmente, com a lógica geral de O Capital. O acento posto nas “leis imanentes da produção capitalista” conduz, aqui, a uma objetivação e a uma naturalização da “fatalidade” histórica. O aleatório da luta se aniquila no formalismo da negação da negação. Como se, por apenas seu transcurso, o tempo pudesse garantir que a hora esperada soará pontualmente no relógio da história. Todavia, “a história não faz nada”: os homens a fazem, e em circunstâncias que não escolheram.
Este controverso capítulo do livro primeiro ocupa um lugar demasiado eminente para nos permitir ver nele um simples descuido. Mostra, antes, uma contradição não resolvida entre a influência de um modelo científico naturalista (“a necessidade de um processo natural”) e a lógica dialética de uma história aberta. Engels se esforçou no Anti-Dühring em combater a interpretação trivial que faz da “negação da negação” uma máquina abstrata e o pretexto formal para falsas predições:
“Que papel desempenha em Marx a negação da negação? […] Ao caracterizar o processo como negação da negação, Marx não pensa em demonstrar por aí a necessidade histórica. Ao contrário: é depois de ter demonstrado pela história como, de fato, o processo realizou-se em parte, e em parte deve forçosamente realizar-se ainda, que Marx o designa, além disso, como um processo que se consuma de acordo com uma lei dialética determinada. É tudo. Estamos, portanto, às voltas de novo com uma suposição gratuita do Sr. Dühring, quando ele pretende que a negação da negação deve fazer aqui profissão de parteira ao tirar o futuro do seio do passado, o que Marx nos pede é que confiemos na negação da negação para convencer-nos de que a propriedade comum da terra e do capital é uma necessidade. É já uma falta de compreensão da natureza da dialética considerá-la, como é o caso do Sr. Dühring, um instrumento de mera demonstração, do mesmo modo como se pode ter uma idéia limitada, digamos, da lógica formal ou das matemáticas elementares” (Engels, 1969; ênfase no original).
E para que assim conste: a negação da negação não é um novo deus ex machina nem uma parteira da história; e não se deveria dar crédito e tirar letras de mudança sobre o futuro fiando-se em uma só. A “necessidade histórica” não permite tirar as cartas e fazer predições. Opera em um campo de possibilidades, na qual a lei geral se aplica por meio de um desenvolvimento particular. Lógica dialética e lógica formal não fazem, decididamente, boas migalhas. Alcançado este ponto crítico, a lei “extremadamente geral” é muda. Deve passar as rédeas à política ou à historia. Para pôr os pontos nos “is”, Engels volta à carga:
“Que é, portanto, a negação da negação ? Uma lei extraordinariamente geral e, por isso mesmo, extraordinariamente eficaz e importante, que rege o desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento; uma lei que, como vimos, se impõe no mundo animal e vegetal, na geologia, na matemática, na história e na filosofia […] Se subentende que quando digo que o processo que recorre, por exemplo, o grão de cevada desde a germinação até a morte da planta é uma negação da negação, não digo nada do processo especial de desenvolvimento pelo qual passa o grão” (Engels, 1969; ênfase no original).
Sabendo somente que o grão de cevada deriva da negação da negação, não se pode ter sucesso em “cultivar frutiferamente cevada […] do mesmo modo que não basta conhecer as leis que regem a determinação do som pelas dimensões das cordas para tocar violino”. Se a negação da negação “consiste nesse passatempo infantil de escrever na lousa uma letra a para logo depois apagá-la, ou de dizer alternadamente de uma rosa que ela é uma rosa e que ela não é uma rosa, não resulta nada mais que tolice para aquele que se entrega a tais exercícios tediosos” (Engels, 1969: 162-172).
Exigir da lei dialética mais que sua generalidade levaria a um formalismo vazio. Igual ao grão de cevada singular, o acontecimento histórico tampouco é dedutível da negação da negação. Convém insistir neste ponto: nenhuma fórmula substitui a análise concreta da situação concreta, do que As guerra camponesas na Alemanha, ou O dezoito Brumário ou Lutas de classes na França proporcionam brilhantes exemplos. A questão mais complicada já não é, então, a do determinismo injustamente imputado a Marx, mas sim aquela segundo a qual existiria, entre os possíveis cursos de ação, um desenvolvimento “normal” e monstruosidades marginais(3).
Dez anos depois da publicação do livro primeiro, o comentário de Engels sobre “A tendência histórica da acumulação capitalista” esclarece, assim, ambigüidades bem compreensíveis no contexto intelectual da época. É surpreendente que tenha sentido a necessidade de intervir neste ponto e que o tenha feito nesse sentido. Principalmente porque o Anti-Dühring foi redigido em estreita conivência com Marx. O capítulo que causa controvérsia em O Capital já não é, então, dissociável do comentário que o esclarece e corrige.
A necessidade determinada não é o contrario do acaso, e sim o corolário da possibilidade determinada. A negação da negação diz o que deve desaparecer. Não dita o que deve ocorrer.
A história social, assim como a história dos organismos vivos, está feita de um “conjunto de eventos, extraordinariamente improváveis, perfeitamente lógicos em termos retrospectivos, mas absolutamente impossíveis de predizer” (Gould, 1993). Em 1909, Walcott descobriu nas Rochosas canadenses os fósseis conhecidos como xistos de Burgess. Ele quis forçar a entrada desses organismos no quadro de uma evolução que vai do mais simples ao mais complexo. Nos anos setenta, a reabertura do expediente por uma equipe de pesquisadores levou, por meio de uma série de estudos monográficos que aceitavam a peculiaridade anatômica como outra norma possível, a “uma revolução tranqüila”. Os animais de Burgess (Opabinia, Hallucigenia, Anomalicaris) já não são hoje em dia considerados como as formas elementares das espécies conhecidas. São testemunhas, simplesmente, da explosão cambriana dos seres viventes, disposições orgânicas e virtualidades abortadas.
Este descobrimento arruína a idéia dominante de uma evolução simbolizada pela escala do progresso contínuo o pelo “cone invertido” de diversidade e complexidade crescentes. A história incrementa a diversidade das espécies, mas poda os ramos e restringe a disparidade inicial entre diferentes organizações anatômicas. Depois da revolução copernicana e da darwiniana, a interpretação do xisto de Burgess acerta um novo golpe no antropocentrismo. Seguindo suas próprias vias, a geologia aprofunda, assim, a crítica do jovem Marx aos “artifícios especulativos” por meio dos quais se quer fazer crer “que a história por vir é a meta da história passada” e o homo sapiens, oobjetivo de Opabinia: “A diversidade dos itinerários possíveis mostra claramente que os resultados finais não podem ser preditos no início” (Gould, 1989).
Humanos, um esforço mais para ser completamente incrédulos! Para renunciar, desse modo, à ilusão retrospectiva segundo a qual nada teria podido ser mais que o que é, e renunciar também à ilusão gradativa das modificações contínuas. Do mesmo modo que as vitórias militares ou políticas não provam a verdade ou a legitimidade dos vencedores, a sobrevivência não tem valor de prova em paleontologia. A sobrevivência é, precisamente, o que deve ser explicado. Diferentemente dos darwinistas vulgares, Darwin estava consciente de que as respostas de adaptação por variação individual e seleção natural às mudanças de ambiente não necessariamente constituem um progresso (segundo quais critérios?), mas sim uma evolução sem plano, nem direção.
Apesar de seus descobrimentos, Darwin dificilmente podia escapar à ideologia progressista da época. Seu dilema é, em certa medida, o mesmo que o de Marx. O darwinismo de Darwin não é, com efeito, nem determinismo ambiental nem a simples parábola biologística da concorrência mercantil. Antecipando algumas interpretações recentes de Darwin, Marx inspira-se em “a acumulação através da herança” como princípio motor. Ao insistir na dialética da acumulação (necessária) e da invenção (acontecimento), Darwin evita a armadilha mecanicista, Marx sustenta em Teorias da mais valia, que: “os diversos organismos constituem-se por ‘acumulação’ e não passam ‘invenções’, invenções dos sujeitos vivos acumuladas pouco a pouco” (Marx, 1978: 343).
Étienne Balibar completa a inquietante declaração de Marx no sentido de que “a história avança pelo lado ruim”, agregando: e, no entanto, avança! De fato, não são raros os casos, nos quais efetivamente as “falhas”, “equívocos” e “vitoriosas derrotas” tiveram um papel inesperado (Balibar, 1993). Balibar mostra o eminente papel deste “lado ruim” – o das derrotas que arruínam a visão de um mundo unificado pela marcha irresistível do proletariado. Depois de 1848, e novamente depois de 1871, o choque do acontecimento suscita uma crítica da idéia de progresso. Impõe pensar “as historicidades singulares”. Esta conclusão não é compatível com a hipótese de uma medida histórica absoluta do progresso. O esforço de Marx busca tomar os dois extremos: emancipar-se da abstração da História universal (do “universal que paira”) sem cair no caos insensato das singularidades absolutas (do “que não acontece mais que uma vez”); e sem recorrer ao coringa do progresso. Na medida em que a universalização é um processo, o progresso não se conjuga em presente indicativo, mas somente em futuro anterior: sob reserva e sob condição. Mas se o progresso cotidiano consiste em ganhar mais que em perder, sua avaliação está condenada à vulgar comtabilidade de ganhos e perdas. O que equivale a fazer pouco caso da temporalidade da própria medida, ao fato de que os lucros do dia fazem as perdas do amanhã, e vice-versa.
A noção corrente de progresso supõe, de fato, uma escala de comparação fixa e um estado recapitulativo final. Para o otimismo liberal de ontem e de hoje, “toda mudança toma o sentido de um progresso em relação com o qual não deveria haver regressão”. Em outros termos, a crença no progresso histórico “exclui a contingência” (Simmel, 1974).
Nunca se dirá suficientemente até que ponto os políticos social-democratas e stalinianos do período entre guerras comungaram neste quietismo, e o que acabou por custar em se ver nisso, na recorrência das catástrofes, não mais que “atrasos” e “diminuições”.
Notas de rodapé:
(1) Sobre este ponto, convém examinar as cartas de Marx para Vera Zasulich. Ver também Trotsky, A revolução permanente; Lênin, O desenvolvimento do capitalismo na Rússia e as Teses de abril; Alain Brossat, La théorie de la révolution permanente chez le jeune Trotsky, assim como os trabalhos históricos de D. H. Carr e Theodor Shanin. (retornar ao texto)
(2) Sobre a categoria de possível em Marx consultar Michel Vadée (1992) e Henri Maler (1994). (retornar ao texto)
(3) Ernest Mandel fala com freqüência de “rodeios” e “desvios” históricos. Mostra, no entanto, que o problema é de normalidade mais do que de determinismo histórico. “Deve-se destacar, no entanto, que a questão de se o capitalismo pode sobreviver indefinidamente ou está condenado à derrocada não deve confundir-se com a idéia de sua inevitável substituição por uma forma mais alta de organização social, isto é, com a inevitabilidade do socialismo. É perfeitamente possível postular a inevitável derrota do capitalismo sem se postular a inevitável vitória do socialismo. […] o sistema não pode sobreviver, mas pode ser sucedido pelo socialismo como pela barbárie” (Mandel, 1985: 232). (retornar ao texto)
Bibliografia
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– Hegel, G. W. F 1949 Science de la logique (Paris: Aubier).
– Maler, Henri 1994 Convoiter l’utopie. L´utopie selon Karl Marx (Paris: L’Harmattan).
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– Marx, Karl 1977a Prefácio à Contribution à la critique de l´économie politique (Paris: Gallimard).
– Marx, Karl 1977b Grundrisse (Paris: Éditions Sociales).
– Marx, Karl 1978 Théories sur la plus-value (Paris: Éditions Sociales).
– Marx, Karl 1993 Le Capital (Paris: PUF), Tomo I.
– Marx, K. e F. Engels 1960 L’Ideólogie allemande (Paris: Éditions Sociales).
– Marx, K. e F. Engels 1970 La sainte famille (Paris: Éditions Sociales).
– Roemer, J. E. (org.) 1986 Analytical Marxism (Cambridge: Cambridge University Press).
– Simmel, Georg 1984 Les problèmes de la philosophie de Marx (Paris: PUF).
– Vadée, Michel 1992 Marx penseur du possible (Paris: Klincksieck).