A Comuna, o Estado e a Revolução

Daniel Bensaïd

26 de agosto de 2007


Observação: Publicamos em continuação o resumo de uma segunda contribuição apresentada por Daniel Bensaïd como parte do “ciclo Marx”, na Universidade de Verão da LCR, ocorrida em Port Leucate de 24 a 29 de agosto de 2007.

Fonte: https://teoriamarxista.wixsite.com/blog-mri/post/comuna-estado-revolucao-daniel-bensaid

Tradução: Pedro Barbosa da versão disponível em http://danielbensaid.org/La-Comuna-el-Estado-y-la-Revolucion?lang=fr

HTML: Fernando Araújo.

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Muitos leitores de Marx lhe criticam por um implacável determinismo econômico. É necessário acreditar que isso se dá, na maioria dos casos, por ignorância de seus escritos políticos, como sua trilogia sobre As lutas de classes na França, O 18 de brumário de Luís Bonaparte e A guerra civil na França(1). Se vinte anos separam o primeiro texto do último, não deixam de constituir uma trilogia na qual se desenha uma concepção da política, da representação, do Estado, da democracia. Estes três textos constituem, até certo ponto, a outra cara da crítica marxista da modernidade, frequentemente ignorada por leitores tapados pelo grande sol da crítica da economia política - O Capital.

Da República “tout court” à República social

“Ao impor a República”, o proletariado parisiense conquistou em 1848 o terreno para sua própria luta pela emancipação, mas “de nenhuma maneira a própria emancipação”, já que a classe operária era “ainda incapaz de realizar sua própria revolução”(2). Michelet o havia pressentido a partir de 1846: “Meio século bastou para ver a burguesia sair do povo, elevar-se sobre sua atividade e sua energia e, repentinamente, em meio a seu triunfo, desabar sobre si mesma”(3). Assim amadurecia “o gérmen obscuro desta revolução desconhecida” que se percebia nos sans-culotterie parisienses de 1793: “Os republicanos clássicos tinham atrás de si um espectro que marchava rapidamente e que havia ganhado velocidade: o republicanismo romântico de centenas de cabeças, de mil escolas, que chamamos hoje socialismo”(4). É este mesmo espectro que vem atormentar a Europa nas primeiras linhas do Manifesto do Partido Comunista, redigido nos últimos dias de 1847, e que fará sua irrupção algumas semanas mais tarde sobre o cenário europeu.

Marx data o nascimento oficial da II República em 4 de maio. Mas o lugar e a data de seu nascimento real, “não é a revolução de fevereiro, mas sim a derrota de junho”. O proletariado vencido força a República apenas declarada a aparecer como o Estado cujo objetivo declarado era “a perpetuação da escravidão assalariada”: “a burguesia não tem rei, a forma de seu reino é a República” que realiza em seu “reino anônimo” “a síntese da Restauração e da Monarquia de Julho”. Em sua forma acabada, a República constitucional realiza a coalizão de interesses do partido da ordem. Não haverá mais a República “tout court” [a simples República]. Será social ou não será mais do que uma caricatura de si mesma, a máscara de uma nova opressão.

No momento em que Marx publica O 18 de brumário, Blanqui — encarcerado na fortaleza de Belle-Ille — escreve algo similar a seu amigo Maillard: “O que é então que somos obrigados a fazer depois de tanto tempo, senão a guerra civil? E contra o que? Ah! Eis aqui precisamente a questão que esforça-se para confundir na obscuridade das palavras; porque se trata de impedir que as duas bandeiras inimigas se coloquem diretamente em frente uma da outra (...)”(5). E é por isso que os socialistas devem, de agora em diante, se distinguir dos simples republicanos burgueses que querem “reiniciar fevereiro, mas nada mais”.

Em A luta de classes na França e em O 18 de brumário, Marx começou a extrair, invocando o nome de Blanqui, as implicações estratégicas da prova de junho de 1848: “ (...) o proletariado se agrupa cada vez mais em torno do socialismo revolucionário, em torno do comunismo, para o qual a própria burguesia inventou o nome de Blanqui; esse socialismo é a declaração da revolução permanente”(6). Fórmula famosa, que retoma em forma de consigna [palavra de ordem] na conclusão de sua Carta à Liga dos Comunistas: “O ‘grito de guerra’ dos trabalhadores deve ser, de agora em diante, ‘a revolução permanente’!” Consigna enigmática, que une, problematicamente juntos, o ato e o processo, o momento e a duração, o acontecimento e a história.

A revolução permanente tem uma dimensão imediatamente europeia. Os territórios nacionais são os campos de batalha parciais de uma guerra civil de maior amplitude. Até o esmagamento, entre 1918 e 1923, das revoluções alemã, húngara e italiana, os revolucionários europeus, começando pelos bolcheviques, pensaram sua ação nesta representação europeia do espaço estratégico. É a conclusão que tira Marx, a partir de As lutas de classes na França: “A nova Revolução francesa se vê obrigada a deixar imediatamente o solo nacional e a conquistar o terreno europeu, o único onde pode se realizar a revolução social do século XIX”, já que “ninguém poderia afirmar que o mapa da Europa seja definitivo”(7). A relação entre guerra e revolução, então, se inscreve de imediato nesta perspectiva continental.

Introduzindo, em 1891, na reedição do texto de Marx sobre A guerra civil na França, Engels volta a profetizar: “A anexação das províncias francesas não empurrou a França para os braços da Rússia? E não paira diariamente sobre nossas cabeças a espada de Dâmocles de uma guerra em cujo primeiro dia todas as alianças firmadas entre os soberanos se dispersarão ao vento como farelo, uma guerra da qual nada se sabe ao certo a não ser a absoluta incerteza de sua origem(*), uma guerra de raças que sujeitará a Europa inteira à devastação por obra de 15 ou 20 milhões de homens armados”. Uma guerra de raças! Assim como da guerra surgiu a revolução da Comuna, da Grande Guerra surgirá a revolução de Outubro e da Segunda Guerra Mundial as revoluções chinesa, grega, vietnamita e iugoslava, mas a qual preço: sobre um monte de ruínas e cadáveres cada vez mais imponente, cujo peso morto pesará cada vez mais sobre a vida e o cérebro dos (sobre)viventes, até o ponto de transformar em pesadelos os sonhos de emancipação.

Um novo Leviatã burocrático

1850-1871: De As lutas de classes em França a A guerra civil na França. Entre os dois escritos, ascensão, declínio e queda do Império. Como muito bem destacou Maximilien Rubel, essa sequência oferece a Marx o material para meditar sobre este estranho fenômeno político moderno que é o “bonapartismo” e reconsiderar através dele a questão do Estado e sua relação com a sociedade civil(8).

Ressurge assim, à luz da braseira da Comuna, a crítica da burocracia, iniciada a partir de 1843 no Manuscrito de Kreuznach [Crítica da filosofia do direito de Hegel] e deixada em construção ou retomada somente de maneira esparsa em escritos de circunstância. O espírito corporativo do antigo regime sobrevive, escrevia então, na burocracia como produto da separação entre Estado e sociedade civil: “O mesmo espírito que, no interior da sociedade, cria a corporação, cria, no Estado, a burocracia (...) A burocracia é o formalismo de Estado da sociedade civil”. Ela é “a consciência do Estado, a vontade de Estado, o poder de Estado, personificada em uma corporação, formando uma sociedade particular e fechada dentro do Estado”. Ela “não pode ser um tecido de ilusões práticas: é a ilusão mesma do Estado”, e o espírito burocrático é “um espírito fundamentalmente jesuítico e teológico: os burocratas são jesuítas do Estado e teólogos do Estado; a burocracia é a República sacerdotal(9). E quanto ao burocrata “tomado individualmente”, o fim do Estado “se converte em seu objetivo privado: preocupado em ascender aos postos mais elevados, é o carreirismo”. A supressão da burocracia só seria possível “se o interesse geral se tornasse efetivamente — e não, como em Hegel, no pensamento, na abstração — o interesse particular; o que só pode ser feito se o interesse particular se torna efetivamente o interesse geral”. Forma finalmente encontrada da emancipação, a Comuna de Paris aparece precisamente aos olhos de Marx como a crítica em ato do Estado burocrático e como o interesse particular que se tornou efetivamente no interesse geral. De modo que “a maior medida” tomada pela Comuna não é uma invenção doutrinária ou um paraíso artificial, não é o estabelecimento de um falanstério ou de uma Icária, mas a “sua própria existência”, incluindo seus limites e contradições. A Comuna foi assim “a antítese direta do Império” ou também “a forma positiva da República social”, sonhada desde os Três Gloriosos de 1830 e as jornadas sangrentas de junho de 1848.

O poder de Estado é “dali em diante abolido”, escreve então Marx a respeito das seis semanas de liberdade comunal. Abolido? A palavra parece contradizer as polêmicas contra Proudhon ou Bakunin, nas quais Marx se opunha à ideia de que uma tal abolição, do trabalho assalariado ou do Estado, poderia ser decretada. Se tratava antes de um processo em que era necessário começar a reunir as condições para a redução do tempo de trabalho, a transformação das relações de propriedade, a modificação radical da organização do trabalho. O segundo esboço de A guerra civil na França matiza fortemente o que se pode entender por abolição. Enquanto “antítese direta do Império”, a Comuna “deveria ser um órgão de ação e não parlamentar, executivo e legislativo ao mesmo tempo”: “Em uma palavra, todas as funções públicas, mesmo as raras funções que haviam sido atribuídas a um governo central, deveriam ser assumidas por agentes comunais e colocadas, consequentemente, sob a direção da Comuna. É, entre outras coisas, um absurdo dizer que as funções centrais, não as funções de autoridade sobre o povo, mas as que são requeridas pelas necessidades gerais e ordinárias do país, não poderiam mais estar asseguradas. Estas funções deveriam existir, mas os próprios funcionários não poderiam mais, como no velho aparelho governamental, elevar-se sobre a sociedade real, porque as funções deveriam ser assumidas por agentes comunais e submetidas, consequentemente, a um controle verdadeiro. A função pública deveria deixar de ser uma propriedade pessoal (...)”(10). Não se trata então de interpretar o definhamento do Estado como a absorção de todas suas funções na autogestão social ou na simples “administração das coisas”. Algumas destas “funções centrais” devem seguir existindo, mas como funções públicas sob controle popular. Neste caso, o definhamento do Estado não significa o definhamento da política ou sua extinção na simples gestão racional do social. Pode significar tanto a extensão do âmbito da luta política pela desburocratização das instituições como a colocação em deliberação permanente da coisa pública.

Escritos no calor do acontecimento, os textos sobre a Comuna permitem ajustar contas com o mito de um Marx ultra-jacobino, hiper-estatista e centralizador ao extremo, diante de um Proudhon girondino, libertário e descentralizador. Certamente, ele enfatiza que a constituição comunal, que quebra o poder do Estado moderno, “se tomou erroneamente como uma tentativa de romper em uma federação de pequenos Estados, conforme os sonhos de Montesquieu e dos Girondinos, esta unidade das grandes nações que, ainda que engendradas em sua origem pela violência, passou a ser agora um potente fator da produção social”. E se quis ver também erroneamente na Comuna “que quebra o poder do Estado moderno, (...) uma lembrança da vida das comunas medievais” que precederam este poder de Estado(11). A centralização estatal pôde desempenhar um papel útil para remover os particularismos feudais e alargar o horizonte, logo para defender a revolução contra as conspirações do Antigo regime. Mas contra o Estado parasita e burocrático vitorioso e sua centralização governamental, Marx sustenta uma lógica de descentralização solidária em uma perspectiva de aliança entre os camponeses oprimidos pela Paris-capital e os trabalhadores parisienses oprimidos pela reação provincial: “Paris, capital das classes dominantes e de seu governo, não pode ser uma ‘cidade livre’, e a província não pode ser ‘livre’ porque Paris é a capital. A província só pode ser livre com a Comuna em Paris”(12). Este antagonismo entre a Paris-capital e a Paris-comuna é o cenário original de uma luta entre duas forças sociais e dois princípios políticos. As classes dominantes não cessam de querer esconjurar o espectro da Paris-comuna, várias vezes ressuscitado (em 1936 com as greves da Frente Popular, em 1945 com a insurreição e a Libertação de Paris, em 68 com sua greve geral e suas barricadas).

O que queria a Paris-comuna era “quebrar o sistema de unidade artificial que se opõe à verdadeira união viva da França”, pois a unidade imposta até então era “uma centralização despótica, ininteligível, arbitrária e onerosa”. A unidade política em torno da Comuna havia sido o contrário: “a associação voluntária de todas as iniciativas locais” e “uma delegação central das comunas federadas”(13). O Marx comunardo vai então até mesmo retomar, por sua conta, a fórmula de Montesquieu de uma República federativa concebida como “uma sociedade de sociedades que formam uma nova que pode crescer através de seus numerosos associados”.

O que é a ditadura do proletariado?

A Comuna como forma finalmente encontrada da emancipação ou da ditadura do proletariado, ou as duas, indissociavelmente unidas? Isso é o que declara Engels, vinte anos depois, na conclusão de sua introdução a A guerra civil na França: “Pois bem, senhores, querem saber que ditadura é essa? Observem a Comuna de Paris. Essa era a ditadura do proletariado”(14).

Se, como declara Engels, a Comuna “era a ditadura do proletariado”, importa saber precisamente o que era a Comuna. Ela suprime “todos os mistérios e pretensões do Estado”, dotando-se de mandatários sob controle popular permanente, remunerados como operários qualificados. Sua medida mais importante é “sua própria organização, que se improvisou com o inimigo estrangeiro em uma porta e o inimigo de classe na outra”(15). A Comuna “não suprime a luta de classes”, mas representa “a libertação do trabalho”, como “condição fundamental de toda vida individual e social”. Cria assim “o ambiente racional” no qual pode começar — começar somente — a desenvolver-se a emancipação social(16). É “essa esfinge que perturba o entendimento burguês”: é simplesmente “ a forma sob a qual a classe operária toma o poder político”(17). Diante da violência despótica dos possuidores, Marx retoma então “o audacioso lema revolucionário”: “Abaixo a burguesia! Ditadura da classe operária!”(18).

Esta forma, é necessário destacar tanto como é fácil esquecer, mantém o sufrágio universal e a representação territorial das comunas e bairros: “A Comuna devia ser composta de conselheiros municipais dos diversos distritos (como Paris foi o iniciador e o modelo, essa será nossa referência) eleitos por sufrágio de todos os cidadãos, responsáveis e revogáveis a qualquer momento. A maioria desta assembleia se compunha naturalmente de operários ou de representantes conhecidos da classe trabalhadora”(19). Na Carta de 31 de maio de 1871 ao Conselho geral da AIT, Marx insiste: “o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em comunas” e “nada podia ser mais estranho ao espírito da Comuna do que substituir o sufrágio universal por uma investidura hierárquica. Não prevê restrição baseada em critérios sociais ao direito de voto. Expressa somente sua convicção de que a maioria política corresponderá “naturalmente” à maioria social. Quanto à relação entre os representantes e representados, os mandatários e os mandantes, trata-se de um controle permanente concretizado pelos princípios de responsabilidade e revogabilidade. Os representantes têm de permanentemente prestar conta de seus atos e em caso de litígio com os representados, colocar em jogo seu mandato. Nesta passagem do segundo esboço de A guerra civil na frança, não faz menção ao mandato imperativo, como no caso da Carta à AIT de 31 de maio de 1871, onde se menciona como uma constatação que, até nas menores aldeias, as comunas rurais deveriam “administrar seus assuntos por uma assembleia de delegados, em qualquer momento revogáveis e vinculados pelo mandato imperativo dos eleitores”(20). Tanto a revogabilidade é consequência da responsabilidade do eleito frente a seus eleitores, como o mandato imperativo acaba por paralisar a deliberação democrática: se o mandatário não é mais do que o porta-voz do interesse particular de seus mandantes, sem possibilidade de modificar seu ponto de vista em função da discussão, nenhuma vontade geral pode surgir, a adição dos interesses particulares ou corporativos se neutraliza, e a esterilidade do poder constituinte termina por fazer a cama para uma burocracia que se eleva sobre essa vontade fragmentada enquanto pretende encarnar o interesse geral.

Se para saber o que era a ditadura do proletariado no espírito de Marx e Engels era suficiente observar a Comuna, essa “ditadura” parece muito respeitosa do sufrágio universal e do pluralismo político. Suas primeiras medidas consistem em uma desburocratização e desmilitarização do Estado Leviatã, em disposições que se enquadrariam no que se chamaria hoje de uma democracia participativa, e em medidas elementares de justiça social. Não tem muito de um poder ditatorial e [tem] muito pouco de um regime de exceção, exceto a suspensão da ordem legal existente em prol do exercício do poder constituinte inalienável de um povo soberano.

A Comuna, o Estado e a revolução

Para Lenin como para Marx e Engels, a questão do Estado é então indissociável daquela da ditadura do proletariado, como organização da força e da violência, “tanto para reprimir a resistência dos exploradores como para dirigir a grande massa da população”. Se essa “ditadura” tem um caráter de classe, não se concebe no entanto como uma ditadura corporativa. Se trata de tomar o poder “para conduzir o povo inteiro ao socialismo”. A fórmula evoca o conceito de hegemonia, que terá lugar na social-democracia russa para definir a relação entre o proletariado e o campesinato na aliança operária e camponesa, muito antes de Gramsci lhe dar um novo alcance estratégico. Já se trata de formar um bloco histórico, sem esquecer que “pelo papel que desempenha na grande produção, o proletariado é o único capaz de ser o guia de todas as classes trabalhadoras exploradas mas incapazes de uma luta independente pela sua libertação”.

Depois da tomada do poder, o Estado subsiste inicialmente, mas “como Estado burguês sem burguesia”. Esta fórmula paradoxal servirá de novo a Lenin para pensar de maneira inédita o tipo de Estado resultado da revolução russa. Mas um Estado burguês sem burguesia não é ao mesmo tempo um Estado proletário. O Estado burguês sem burguesia vai, assim, se tornar o terreno sobre o qual vão desabrochar os perigos profissionais do poder e o refúgio no qual se desenvolve uma nova forma de excrescência burocrática parasitária da sociedade. Em O Estado e a revolução, Lenin rompe radicalmente com o “cretinismo parlamentar” do marxismo ortodoxo, mas conserva a ideologia gestionária. Assim, imagina-se ainda que a sociedade socialista “não será mais do que um escritório, uma oficina, com uma igualdade de trabalho e igualdade de salário”. Tais fórmulas lembram certas páginas onde Engels sugere que o definhamento do Estado significará também o definhamento da política em favor de uma simples “administração das coisas”, cuja ideia se empresta dos saint-simonianos; isto é, a uma simples tecnologia de gestão do social, onde a abundância presumida dispensaria o estabelecimento de prioridades, de debater as alternativas, de fazer viver a política como espaço de pluralidade.

Como ocorre frequentemente, uma utopia de aparência libertária se transforma em uma utopia autoritária. O sonho de uma sociedade que não seria “nada mais que um único escritório e uma única oficina”, com efeito, não tomaria o lugar de uma boa organização administrativa. Do mesmo modo, um “Estado proletário”, concebido como um “cartel de todo o povo”, pode facilmente conduzir à confusão totalitária da classe, do partido e do Estado. Ao querer torcer o pescoço ao legalismo institucional da II Internacional, Lenin torce o bastão da crítica no outro sentido. Rompe com as ilusões parlamentares, mas se interdita ao mesmo tempo de pensar as formas políticas do Estado de transição.

É este o ponto cego que Rosa Luxemburgo vai colocar em evidência. Se ela assume plenamente a noção de ditadura do proletariado em sentido amplo — “nenhuma revolução foi finalizada de outro modo que não pela ditadura de uma classe” —, também avisa os social-democratas russos: “Ao que parece, nenhum social-democrata se deixa levar pela ilusão de que o proletariado possa se manter no poder. Se pudesse se manter, então isso acarretaria o domínio de suas ideias de classe. Suas forças não são suficientes atualmente, porque o proletariado, no sentido mais estrito da palavra, constitui precisamente, no império russo, a minoria da sociedade. No entanto, a realização do socialismo por uma minoria está incondicionalmente excluída, pois a ideia do socialismo exclui justamente a dominação de uma minoria”. Este artigo de 1906 prefigura e anuncia o famoso folheto de 1918 sobre a Revolução russa. Contrariamente aos socialistas ortodoxos da social-democracia alemã, saúde a revolução e os bolcheviques que “ousaram” abrir a via ao proletariado internacional ao tomar poder. Destaca as responsabilidades que resultam para os revolucionários europeus, a começar pelos alemães: “Na Rússia, o problema não podia ser mais do que colocado. Não podia ser solucionado na Rússia. Neste sentido, o futuro pertence em toda parte ao bolchevismo”. O futuro da revolução russa se joga então, em larga medida, na arena europeia e mundial.

No entanto, os bolcheviques russos tiveram também sua parte de responsabilidade. Rosa critica suas medidas relativas à reforma agrária e a questão nacional. Ao criar não uma propriedade social, mas uma nova forma de propriedade privada agrária, o parcelamento dos grandes domínios “aumenta as desigualdades sociais no campo” e gera massivamente uma nova pequena-burguesia agrária cujos interesses entrarão inevitavelmente em contradição com os do proletariado. Do mesmo modo, a aplicação generalizada do direito à autodeterminação para as nacionalidades do império czarista só resulta na “autodeterminação” das classes dirigentes destas nacionalidades oprimidas, pois “o separatismo” é “uma armadilha puramente burguesa”. Lenin e seus amigos “inflaram artificialmente o preciosismo de alguns professores universitários e de alguns estudantes para fazer um fator político”. Em matéria de política agrária e a política das nacionalidades, os bolcheviques haviam pecado por excesso de ilusão democrática, enquanto, inversamente, subestimaram o desafio democrático da questão institucional.

A questão da Constituinte

É o famoso debate sobre a dissolução da Assembleia Constituinte. Rosa não é surda aos argumentos segundo os quais era necessário “romper essa constituinte caduca”, e que portanto “nasceu morta”, que estava atrasada quanto à dinâmica revolucionária, tanto por suas modalidades eletivas como pela imagem deformada que dava do país. Mas então, “era necessário promover sem demora novas eleições para uma nova Constituinte!”. No entanto, Lenin e Trotsky (em seu folheto de 1923 sobre As lições de outubro) excluem por princípio toda forma de “democracia mista”, defendida pelos austro-marxistas.

Para Trotsky, aqueles que, no partido, fetichizam a Constituinte, são os mesmo que, segundo ele, haviam vacilado pelo legalismo diante da decisão da insurreição. Se, em outubro, a insurreição foi “canalizada pela via soviética e associada ao 20º congresso dos sovietes”, não se tratava, segundo ele, de uma questão de princípio, mas “de uma questão puramente técnica, ainda que de uma grande importância prática”. Esse choque entre a decisão militar e a instituição democrática é propício à confusão dos papéis entre o partido e o Estado, mas também entre o estado de exceção revolucionário e a norma democrática. Esta confusão se eleva a seu auge em Terrorismo e comunismo, folheto redigido também na urgência da guerra civil que é a forma paroxística do estado de exceção.

A abordagem de Rosa Luxemburgo é diferente. Aceita os argumentos formulados pelos bolcheviques para dissolver a Constituinte, mas se preocupa com essa confusão entre a exceção e a norma: “O perigo começa ali onde, fazendo da necessidade virtude, eles [os dirigentes bolcheviques] procuram fixar em todos os pontos da teoria uma tática que lhes foi imposta por condições fatais e propô-la ao proletariado internacional como modelo de tática socialista”. É isso que está em jogo, para além da questão da Constituinte, é a vitalidade e a eficácia da democracia socialista mesma. Rosa destaca a importância da opinião pública, que não poderia se reduzir a um engodo ou a um teatro de sombras. Toda a experiência histórica “nos mostra ao contrário que a opinião pública irriga a constantemente as instituições representativas, as penetra, as dirige. Como explicar então as brincadeiras divertidíssimas que, em todo Parlamento burguês, os representantes do povo às vezes nos deixam ver, quando, animados subitamente por um espírito novo, fazem ouvir entonações perfeitamente inesperadas? Como explicar que, de vez em quando, múmias ressecadíssimas ganhem ares de juventude, que os pequenos Sheidemann inteiramente desnudos encontrem repentinamente em seu coração entonações revolucionárias quando a cólera ressoa nas fábricas, nas oficinas e nas ruas? Essa ação constantemente viva da opinião e da maturidade política das massas deveria, pois, justo no período revolucionário, ser abandonada diante do esquema rígido das insígnias de partidos e das listas eleitorais? Pelo contrário! É justamente a revolução que, por sua efervescência ardente, cria essa atmosfera política vibrante, receptiva, que permite às ondas da opinião pública, ao pulso da vida popular atuar instantaneamente, milagrosamente sobre as instituições representativas”. Ao invés de comprimir este “pulso da vida popular”, os revolucionários devem deixá-lo prevalecer, já que constitui um poderoso corretivo ao pesado mecanismo das instituições democráticas: “E se o pulso da vida política da massa bate mais rápido e mais forte, sua influência se faz então mais imediata e mais precisa, apesar dos clichês rígidos dos partidos, das listas eleitorais obsoletas, etc. Certamente, toda instituição democrática, como toda instituição humana, tem seus limites e suas lacunas. Mas o remédio que encontraram Lenin e Trotsky – suprimir diretamente a democracia – é pior do que o mal que supõem curar: causa a obstrução da fonte viva de onde teriam podido brotar os corretivos às imperfeições congênitas das instituições sociais, a vida política ativa, enérgica, sem entraves, da grande maioria das massas populares”.

As advertências de Rosa ganham então, retrospectivamente, todo o seu sentido. Temia em 1918 que as medidas de exceção temporariamente justificáveis se convertessem na regra em nome de uma concepção puramente instrumental do Estado como aparelho de dominação de uma classe sobre outra. A revolução consistiria então, somente, em fazê-lo trocar de mãos: “Lenin disse que o Estado burguês é um instrumento de opressão da classe trabalhadora, o Estado socialista um instrumento de opressão da burguesia, que não é, num certo sentido, mais do que um Estado capitalista invertido. Essa concepção simplista omite o essencial: para que a classe burguesa possa exercer sua dominação, não necessita ensinar e educar politicamente o conjunto da massa popular, ao menos não além de certos limites rigorosamente traçados. Para a ditadura proletária, esse é o elemento vital, a respiração sem a qual não ela poderia existir”.

A nova sociedade se inventa sem manual de instruções. O programa do partido só oferece “os grandes marcos que indicam a direção”, e ainda estas indicações só tem um caráter indicativo, de baliza e advertência, mais do que um caráter prescritivo. Certamente, o socialismo “pressupõe uma série de medidas coercitivas contra a propriedade”, etc., mas, se “se pode decretar o aspecto negativo, a destruição”, não ocorre o mesmo com o “aspecto positivo, a construção: terra nova, mil problemas”. Para resolver esses problemas, são necessárias a liberdade mais ampla, a atividade mais ampla, e da mais ampla parte da população. Não é a liberdade, mas o terror que desmoraliza: “Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida se murcha em todas as instituições públicas, vegeta, e a burocracia resta como o único elemento ativo”. Em O Estado e a revolução, o mesmo Lenin entreviu esta funcionalidade social da democracia política. Para alguns marxistas, para os quais o direito de autodeterminação das nações oprimidas era irrealizável sob o capitalismo e se tornaria supérfluo sob o socialismo, respondia de modo antecipado: “Esse raciocínio, supostamente espiritual mas na realidade errôneo, poderia se aplicar a toda instituição democrática, já que um democratismo rigorosamente consequente é irrealizável no regime capitalista e, no regime socialista, toda democracia terminará por ser extinta. (...) Desenvolver a democracia até o final, buscar as formas deste desenvolvimento, submetê-las à prova da prática, esta é uma das tarefas essenciais da luta pela revolução social. Tomado separadamente, nenhum democratismo, qualquer que seja, levará ao socialismo, mas na vida, o democratismo jamais será “tomado separadamente”. Ele será “tomado de conjunto”; exercerá também uma influência sobre a economia, estimulará sua transformação”(21).


Notas de rodapé:

(1) As lutas de classes na França (1850), Œuvres politiques, tomo I, La Pléiade, 1994; O 18 de brumário de Luís Bonaparte, Paris, coleção Folio, 2002; A guerra civil na França, Paris, Edições sociais, 1968. (retornar ao texto)

(2) Marx, As lutas de classes na França, pp. 244-246. (retornar ao texto)

(3) Michelet, O Povo. Em 1832, Blanqui já declarava, em seu informe à Sociedade dos Amigos do povo: “Não se deve dissimular que há uma guerra de morte entre as classes que compõem a nação” (Blanqui, São necessárias as armas, Paris, La Fabrique, 2007, p. 80). (retornar ao texto)

(4) Michelet, História da Revolução francesa, Paris, Laffont, tomo II, p. 474. (retornar ao texto)

(5) Blanqui, op. cit., p. 176. (retornar ao texto)

(6) Marx, As lutas de classes na França, p. 324 e 262. Em sua décima segunda tese sobre o conceito de história, Walter Benjamin denunciará em bloco a social-democracia por, no decurso de três décadas, quase ter chegado a apagar o nome de um “Blanqui, cujos acentos de bronze abalaram o século XIX”. (retornar ao texto)

(7) Engels, O Pó e o Reno [Le Pô et le Rhin]. (retornar ao texto)

(8) Ver Maximilien Rubel, Karl Marx diante do bonapartismo, publicado em Karl Marx, As lutas de classes na França, op. cit., Paris, Folio, 2002. (retornar ao texto)

(9) Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, Paris, 10-18, 1976, p. 143. (retornar ao texto)

(10) Marx, A guerra civil na França, p. 260. (retornar ao texto)

(11) Ibid., p. 44. (retornar ao texto)

(12) Ibid., p. 227. (retornar ao texto)

(13) Ibid., p. 231. (retornar ao texto)

(14) Ibid., p. 302. (retornar ao texto)

(15) Ibid., p. 215. (retornar ao texto)

(16) Ibid., p. 216. (retornar ao texto)

(17) Ibid., p. 256. (retornar ao texto)

(18) As lutas de classes na França, p. 261. (retornar ao texto)

(19) Ibid., p. 261. (retornar ao texto)

(20) Em Lenin, particularmente em O Estado e a revolução, encontram-se os princípios de responsabilidade e revogabilidade, mas não o de mandato imperativo. (retornar ao texto)

(21) Lenin, O Estado e a revolução, em Œuvres, tomo 25, éditions de Moscou, p. 489. (retornar ao texto)

(*) Nota da tradução. Para este trecho citado de Engels, retiramos a tradução de “A guerra civil na França” (Boitempo, 2011, p. 190). Comparando com a citação francesa, feita por Bensaïd, há uma diferença que merece ser indicada. Nela se lê: “l’absolue incertitude de son issue”. Ou seja, “a absoluta incerteza quanto a seu resultado”, e não origem (grifos nossos). (retornar ao texto)

Inclusão: 13/10/2020