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No ano em que se comemoram os 70 anos da fundação da Quarta Internacional e os 35 da formação da LCI (Liga Comunista Internacionalista), a publicação em português do livro de Daniel Bensaid sobre os trotskismos não poderia ser mais oportuna. Como o próprio autor afirma na nota introdutória:
"Apesar de algum recuo relativo e do esforço de compreensão distanciada que procurei ter, não pretendo ter escapado à subjectividade inerente às experiências e comprometimentos pessoais".
Para Daniel Bensaid, não se trata pois de elaborar uma história das correntes trotskistas, mas sim "de dar sentido às controvérsias políticas e teóricas que marcaram esta história agitada".
Não é minha intenção fazer aqui uma história dos grupos trotskistas em Portugal. A cronologia publicada na página da APSR dá-nos uma panorâmica bastante precisa da corrente LCI/PSR.
Não pretendendo retirar à leitora e ao leitor o prazer de ler por si mesmo(a) este livro, gostaria no entanto de deixar algumas notas para a sua leitura.
Bensaid faz questão de nos alertar (ou lembrar a quem se possa ter esquecido) que o epíteto de trotskista, forjado pelos seus adversários, começou por ser pejorativo e estigmatizante, uma "estrela amarela" que marcou a origem das várias identidades analisadas no livro. Muitos de nós terão bem presente na memória o filme "A Confissão" de Costa-Gavras (1970), exibido em Portugal dois anos antes do 25 de Abril. Yves Montand interpreta a personagem de Gerard/Anton Ludvik (aliás Artur London, ex-ministro do governo da Checoslováquia), que foi preso por acusação de "espionagem e traição, sionismo e trotskismo"! Sofreu tortura do sono, com holofotes potentes permanentemente dirigidos para os seus olhos: "Confessa, confessa que és trotskista!". Foi assim nos processos dos anos 50 (processo Slansky, 1951) na antiga Checoslováquia. Tinha sido assim nos processos de Moscovo (1936-38) e na Barcelona republicana em que a GPU raptou e assassinou Andrès Nin, dirigente do POUM.
Este filme representou, na altura, para mim (e creio que para muitos e muitas de nós) um poderoso incentivo a conhecer mais de perto essa heresia maldita que era apelidada com desprezo de trotskismo.
Bensaid alerta-nos logo no início do livro para a necessidade de usarmos um "prudente plural": trotskismos no plural, em vez de trotskismo no singular. No fim do capítulo "as tribos dispersas", o autor afirma:
"Sublinhemos enfim que, seja quais forem as caracterizações divergentes da União Soviética, Pablo como Castoriadis, Mandel como Cliff, Cannon como James, consideravam todos a revolução russa como uma revolução autêntica e não como um golpe de Estado. Todos datavam igualmente a viragem contra-revolucionária qualitativa do primeiro Plano Quinquenal e do grande terror dos anos 30" (p. 83).
É também o próprio Bensaid a reconhecer que, por vezes, as diferenças são maiores que as similitudes entre essas diferentes tribos marcadas pela herança da derrota e do isolamento. Muitas tiveram tendência "a confiar mais na influência das ideias do que na relação real de forças efectivas"(p. 93). "Os hábitos da luta a contra-corrente podem virar para o sectarismo. A desproporção entre a actividade teórica e a possibilidade de verificação prática levam a um exacerbar das disputas doutrinais e ao fetichismo dogmático da letra" (p. 17). Ou ainda "A maioria dos que pretenderam combater esta impaciência não conseguiu escapar a um propagandismo fora do tempo ou a uma ortodoxia doutrinária" (p. 96). O sectarismo (e algumas das formas de o evitar) é um dos fios condutores do livro.
Por fim, a imagem de divisões e cisões, frequentemente atribuída às correntes trotskistas, está patente no diagrama/organograma incluído na introdução. A leitura do livro mostra-nos como muitas das polémicas parecem hoje absolutamente excessivas ou mesmo ridículas. O que Bensaid faz é contextualizá-las nos grandes problemas da época de que elas acabavam por ser um eco, traçando alguns dos elementos políticos constitutivos dos trotskismos:
"O enigma da revolução estalinista ocupa nelas um lugar central: como compreender a evolução da revolução russa para um regime de terror burocrático? Como definir o fenómeno inédito do estalinismo e como nos situarmos perante ele? Mas também, como vencer o fascismo e como nos orientarmos na prova das guerras para não nos fecharmos na lógica binária dos campos e numa política do mal menor que constitui tantas vezes o caminho mais curto para o pior? Que atitude adoptar face às lutas de libertação nacional e aos regimes delas saídos?" (p. 16 e 17).
A ruptura de Trotsky, a oposição entre teoria da revolução permanente e socialismo num só país, as reivindicações transitórias, a frente única e a luta contra o fascismo, a luta contra o estalinismo e a burocracia, as dificuldades e as hesitações sobre a criação da IV Internacional (nesses difíceis anos 30, com a opção de Trotsky pela sua criação, depois das grandes purgas na URSS e da derrota da revolução em Espanha) são alguns dos temas que atravessam os primeiros capítulos.
De onde Bensaid passa ao eclodir da II Guerra Mundial e à situação de pequenos núcleos militantes que se opunham a forças colossais, naquilo a que chamou "herança sem manual de instruções". Algumas das histórias do entrismo podem hoje fazer-nos sorrir. Contudo, num registo mais sério, o autor analisa os "vícios" que se criam com a táctica de entrismo ("a tendência a tornar-se mutantes", p. 106) que, em algumas organizações, foram (e são) levados ao extremo de fazer entrismo em organizações revolucionárias. Nos últimos capítulos, Bensaid fala-nos de um tempo que muitos e muitas de nós viveram mais directamente: as lutas estudantis e o ascenso do movimento operário nos anos 70, sem que, contudo, as organizações tradicionais tenham sofrido fracturas decisivas. E da mudança de época a partir do início dos anos 80, com a enorme complexidade que lhe conhecemos. Mas em que a IV Internacional, no seu congresso de 1985, reconhece claramente que a crise de direcção revolucionária internacional já não pode ser colocada nos termos dos anos 30. "Já não se trata de fornecer uma direcção de mudança a um movimento operário internacional formado numa cultura revolucionária no seguimento da revolução russa" (p. 126), muito menos de "se tomar por um partido mundial imaginário" (p. 127).
A leitura deste livro deixa-nos, sem dúvida, uma sensação amarga sobre muito heroísmo e tenacidade, mas também sobre as oportunidades perdidas, de que é espelho o seu último parágrafo.
"O colapso do "socialismo realmente existente" libertou uma nova geração de anti-modelos que envenenam o imaginário e comprometem a própria ideia do comunismo. Mas, a alternativa à barbárie do Capital não se desenhará sem um balanço sério do século que se concluiu. Nesse sentido, pelo menos, um certo trotskismo, ou um certo espírito dos trotskismos, não está ultrapassado. A sua herança sem manual de instruções é, sem dúvida, insuficiente, mas não menos necessária para desfazer a amálgama entre estalinismo e comunismo, libertar os vivos do peso dos mortos, e virar a página das desilusões." (p. 133)
O livro de Bensaid detém-se no início do século XXI, altura em que os Fóruns Sociais Mundiais e os movimentos alter-globais conheciam uma dinâmica e um apogeu que entretanto se desvaneceu.
Os tempos que hoje vivemos são ainda de derrota do campo dos trabalhadores e da esquerda, de vitória do capitalismo neoliberal, de guerra, de aquecimento global, de crise alimentar.
As resistências sociais e políticas ao rolo compressor do neoliberalismo são desiguais. Na maioria dos casos as lutas continuam a ser defensivas. O fosso entre resistências sociais e a sua tradução em termos de consciência anti-capitalista é ainda grande.
Mas, se os momentos de derrota e isolamento podem ser propensos a sectarismos, também podem ser férteis em novas soluções e construção de novas "constelações", de que a Aliança Verde e Vermelha na Dinamarca e o Bloco de Esquerda (até agora o projecto mais sólido e com mais sucesso na recomposição da esquerda anti-capitalista europeia) são exemplos. Com o processo de criação de um novo partido anti-capitalista em França, em que a LCR está profundamente empenhada, alarga-se a possibilidade de construção de um campo alternativo que permita refundar a esquerda para políticas socialistas.
No momento em que acabo este texto, realizou-se a primeira reunião de Coordenação Nacional dos comités para um novo partido anti-capitalista. Foi um sucesso e uma esperança na possibilidade de, segundo Olivier Besancenot, a esquerda radical "mudar de escala", não só numericamente mas também na capacidade de ter peso nas alternativas.
Pretender fundar novas organizações com base nas heranças dos trotskismos seria desistir da tarefa de construir organizações anti-capitalistas alargadas e seria certamente um caminho votado ao fracasso. Os elementos constitutivos de novas forças anti-capitalistas não deverão ser postos em termos de escolhas ideológicas ditadas por ou na linha dessas heranças históricas. Mas há dois elementos imprescindíveis e igualmente importantes: a convergência política em termos das tarefas de intervenção e o pluralismo das novas formações que deverão agrupar correntes de origem diversa, nos antípodas dos partidos-fracção. Neste contexto, há por vezes muito pouco em comum entre as correntes ou organizações que se reclamam do trotskismo e que não sabem/não querem conviver com as diferenças. Voltando ao diagrama da introdução, como acontece em outras árvores genealógicas ou filogenéticas, apesar de antepassados comuns, as diferenças entre ramos aparentemente próximos podem ser tão intransponíveis como as que separam duas cidades em encostas diferentes de uma mesma montanha.
Mas um outro elemento ainda é fundamental neste princípio de século que pode ser fundador: a recusa em ser gestor ou co-gestor de políticas neoliberais, mesmo que disfarçadas de social-democracia. Neste contexto, a capitulação do PT brasileiro representa muitas décadas de recuo. Também a experiência do Partido da Refundação Comunista italiana acaba por ser dramática. A este propósito, gostaria de citar o próprio Bensaid, num texto recente publicado no Le Monde de 8 de Maio último.
«A desastrosa lição italiana apenas reforça a necessidade de um novo partido, portador de uma verdadeira alternativa a um sistema capitalista selvagem e que seja independente do social-liberalismo anunciado».
Alda Sousa
Junho 2008
Este texto foi uma colaboração |
Inclusão | 05/03/2010 |