Comunismo contra stalinismo
Uma resposta ao Livro negro do comunismo

Daniel Bensaïd

1997


Primeira edição: Dossier (suplemento), Rouge, n° 1755, Paris, 1997.

Fonte: https://teoriamarxista.wixsite.com/blog-mri/post/comunismo-contra-stalinismo-daniel-bensaid

Tradução: Nina Basílio - da versão disponível em http://danielbensaid.org/Communisme-contre-stalinisme?lang=fr

Transcrição: Pedro Barbosa

HTML: Fernando Araújo.


Já em 1995, François Furet havia proposto como lápide de um comunismo defunto seu grosso volume intitulado O passado de uma ilusão, ensaio sobre o ideário comunista no século XX.(1)

Em 1997, uma equipe de historiadores dirigida por Stéphane Courtois publicou uma obra ainda mais monumental, O livro negro do comunismo: crimes, terror, repressão.(2) Oitocentas páginas para inventariar os crimes do comunismo em todo o mundo e contar os cadáveres dos quais sua história está repleta. Trata-se desta vez de tirar o comunismo de seu túmulo para julgá-lo. Por medo, talvez, de que ele ainda continue a assombrar o mundo(3)...

O nazismo teve seu Nuremberg. O que estamos esperando para erigir um Nuremberg do comunismo? – pergunta nosso historiador, que se nomeia juiz e dá seu veredito: o comunismo, indissociável do stalinismo, tem sido pelo menos tão criminoso quanto o nazismo. Formidável empresa de embaralhamento de pontos de referência, de desorientação das consciências, ao término da qual o século já não seria mais que uma pilha de cadáveres; a Revolução de Outubro, um horrível deslize; e o ideal comunista, uma funesta monstruosidade.

Para que a história não se reduza assim somente à repressão, para que a razão não ceda à raiva e as vítimas e os carrascos não se confundam, convém antes de tudo voltar a Outubro, estudá-lo e tirar dele lições para o futuro. Um Outubro grande demais para um historiador entronizado como inquisidor.

"Com efeito, semelhante fenômeno não mais se esquece na história da humanidade, porque revelou na natureza humana uma disposição e uma faculdade para o melhor que nenhum político, com a sua sutileza, extrairia do decurso das coisas até agora, e que só a natureza e a liberdade, reunidas no gênero humano segundo princípios internos do direito, podiam prometer, mas, quanto ao tempo, só de um modo indeterminado e como um acontecimento contingente.

Se, porém, não se alcançasse também agora a meta intentada neste acontecimento, se a revolução, ou a reforma, da constituição de um povo viesse por fim a fracassar ou se, após outorgada por algum tempo, tudo retornasse de novo à senda anterior (como agora alguns políticos vaticinam), aquela predição filosófica nada perde, apesar de tudo, da sua força. – De fato, tal acontecimento é demasiado grande, demasiado entretecido com o interesse da humanidade e, segundo a sua influência, demasiado propalado no mundo em todas as suas partes para, entre os povos, não ter de ser despertado na memória e na repetição de novos intentos desta índole, em qualquer ocasião de circunstâncias favoráveis [...]".(4)

Em 1798, em pleno período da reação, Emmanuel Kant escreveu, a propósito da Revolução Francesa, que um tal evento, a despeito de fracassos e contratempos, não se esquece. Pois, naquele rasgo de tempo, vislumbrou-se, mesmo que de forma fugaz, uma promessa da humanidade libertada. Kant estava certo. Hoje, nosso problema é saber se a grande promessa ligada ao nome próprio de Outubro, aquele estremecimento do mundo, aquele brilho que emergiu da escuridão da primeira carnificina mundial, também poderá ficar na "memória dos povos". É o que está em jogo não por um "dever de memória" (noção hoje degradada), mas por um trabalho e uma batalha pela memória.

O 80º aniversário da Revolução de Outubro de 1917 corria o risco de passar despercebido. A publicação do Livro negro do comunismo terá então pelo menos o mérito de colocar "a questão de Outubro" na mesa, uma daquelas grandes querelas sobre as quais nunca haverá reconciliação. Claramente enunciado por Stéphane Courtois, diretor da obra em seu conjunto, o objetivo da operação é estabelecer uma continuidade estrita, uma perfeita coerência entre comunismo e stalinismo, entre Lenin e Stalin, entre o esplendor do início revolucionário e o crepúsculo gelado do Gulag: “stalinista e comunista são a mesma coisa ”, escreveu ele no Journal du Dimanche (9 nov. 1997).

É então crucial responder sem rodeios à pergunta do grande historiador soviético Mikhail Guefter:

"Este é o problema a ser elucidado: essa marcha de eventos é realmente contínua ou trata-se de duas séries de eventos intrinsecamente ligados mas que, no entanto, referem-se a vidas diferentes, a dois mundos políticos e morais diferentes. Se não conseguirmos elucidar esse problema, podemos ainda hoje nos tornar inadvertidamente perigosos. Pois o passado sem meditação revive os piores preconceitos e interdita à consciência histórica entrar no campo político".(5)

Pergunta decisiva, de fato, que determina tanto a inteligibilidade do século que se finda como os nossos compromissos no século turbulento que se anuncia: se o stalinismo não tiver sido, como alguns o sustentam ou admitem, um simples "desvio" ou “prolongamento trágico” do projeto comunista, as conclusões mais radicais sobre o projeto em si devem ser tiradas.

Um processo fim-de-século

É isso o que buscam os promotores do Livro negro. E, de fato, o tom de guerra fria, bastante anacrônico, de Stéphane Courtois e certos artigos da imprensa pode causar surpresa. Quando o capitalismo, rebatizado pudicamente de "democracia de mercado", proclama-se sem constrangimentos como única alternativa após a desintegração da União Soviética, vencedor absoluto do fim do século, essa obstinação na verdade revela um grande medo reprimido: o temor de ver as feridas e os vícios do sistema ainda mais patentes desde que perdeu, juntamente com seu duplo burocrático, seu melhor álibi. Portanto, é importante proceder à demonização preventiva de tudo o que possa sugerir um outro futuro possível.

De fato, é no momento em que sua contrafação stalinista desaparece na débâcle, quando seu confisco burocrático termina, é nesse momento que o espectro do comunismo pode voltar a assombrar o mundo novamente.

Quantos ex-stalinistas zelosos, por não saberem distinguir stalinismo de comunismo, deixaram de ser comunistas ao deixarem de ser stalinistas para se unir à causa liberal com o fervor dos convertidos? Stalinismo e comunismo não são apenas distintos, mas irredutivelmente antagônicos. E lembrar essa diferença não é o menor dever que temos para com as muitas vítimas comunistas do stalinismo.

O stalinismo não é uma variante do comunismo, mas o nome próprio da contrarrevolução burocrática. Que militantes sinceros, na urgência da luta contra o nazismo ou debatendo-se em meio às consequências da crise mundial do entreguerras, não se tenham dado conta de imediato de que continuavam generosamente a oferecer suas vidas dilaceradas não muda em nada a questão. Trata-se claramente de responder à pergunta de Mikhail Guefter sobre "dois mundos políticos e morais", diferentes e irreconciliáveis. Essa resposta está nos antípodas das conclusões de Stéphane Courtois no Livro negro.

Ele por vezes se defende por ter reivindicado um Nuremberg do comunismo, provavelmente envergonhado por ter juntado ao tema uma fórmula cara ao senhor Le Pen.(6) No entanto, a encenação do Livro negro tende não apenas a apagar as diferenças entre o nazismo e o comunismo, mas também a banalizá-las, sugerindo que a comparação estritamente "objetiva" e contábil coloca o primeiro em vantagem: 25 milhões de mortos contra 100 milhões, 20 anos de terror contra 60. O primeiro banner de apresentação do livro anunciava escandalosamente 100 milhões de mortos. A contagem dos autores soma 85 milhões. O senhor Courtois não chega aos 15 milhões. Lida com cadáveres de modo vago. Essa contabilidade macabra de comerciantes atacadistas, misturando países, tempos, causas e campos, tem algo de cínico e profundamente desrespeitoso com as próprias vítimas.

No caso da União Soviética, ela chega a um total de 20 milhões de vítimas sem que se saiba exatamente o que esse número abarca. Em sua contribuição ao Livro negro, Nicolas Werth retifica bastante para baixo as estimativas atuais correntes. Ele afirma que os historiadores, com base em arquivos precisos, avaliam hoje em 690 mil as vítimas dos grandes expurgos de 1936-1938. Já é enorme, além do horror. Ele também chega a um número de detidos no Gulag de cerca de 2 milhões em média anualmente, dos quais uma proporção maior do que se julgava anteriormente teria sido libertada e substituída por recém-chegados. Para atingir o total de 20 milhões de mortos, seria necessário acrescentar aos números dos expurgos e do Gulag os das duas grandes fomes (5 milhões em 1921-1922 e 6 milhões em 1932-1933) e os da guerra civil, que os autores do Livro negro não podem demonstrar, por amplas razões, que sejam "crimes do comunismo", ou, em outras palavras, de um extermínio friamente deliberado.

Com tais procedimentos ideológicos, não seria muito difícil escrever um Livro vermelho dos crimes do capital, somando as vítimas das pilhagens e populicídios coloniais, das guerras mundiais, do martirológio do trabalho, das epidemias, das fomes endêmicas, não só de ontem, mas de hoje. Somente no século XX, várias centenas de milhões de vítimas poderiam ser contadas sem esforço. Na segunda parte muitas vezes esquecida de sua trilogia, Hannah Arendt viu no imperialismo moderno a matriz do totalitarismo e nos campos de concentração coloniais na África o prelúdio de muitos outros campos.(7)

Se não se trata de examinar regimes, períodos, conflitos específicos, mas de incriminar uma ideia, quantas mortes poderão ser atribuídas, ao longo dos séculos, ao cristianismo e aos Evangelhos, ao liberalismo e ao laisser-faire? Mesmo aceitando as fantásticas contas do senhor Courtois, o capitalismo teria custado à Rússia no decorrer deste século em duas guerras mundiais muito mais do que os 20 milhões de mortos do stalinismo.

Os crimes do stalinismo são assustadores o suficiente, massivos o suficiente, horríveis o suficiente para que não seja necessário acrescentar mais nada. A menos que se queira deliberadamente apagar as pistas da história, como vimos por ocasião do bicentenário da Revolução Francesa, quando certos historiadores responsabilizaram a Revolução não apenas pelo Terror ou pela Vendeia,(8) mas também pelos mortos do terror branco, dos mortos na guerra contra a intervenção coligada(9) ou mesmo das vítimas das guerras napoleônicas!

Que é legítimo e útil comparar nazismo e stalinismo não é novo – Trotski não falou de Hitler e Stalin como "estrelas gêmeas"? Mas comparação não é justificação, e as diferenças são tão importantes quanto as semelhanças. O regime nazista cumpriu seu programa e manteve suas promessas sinistras. O regime stalinista foi construído contra o projeto de emancipação comunista. Para instaurar-se, precisou esmagar seus militantes. Quantos dissidentes, quantas oposições ilustram, no entreguerras, essa trágica virada? Os suicidados Maiakovski, Joffé, Tucholski, Benjamin e muitos outros? Podemos encontrar, entre os nazistas, essas crises de consciência diante das ruínas de um ideal traído e desfigurado? A Alemanha de Hitler não tinha necessidade, como a Rússia de Stalin, de se transformar no "país da grande mentira": os nazistas estavam orgulhosos de seu trabalho, enquanto os burocratas não podiam se olhar no espelho do comunismo original.

Ao diluir a história concreta no tempo e no espaço, ao despolitizá-la deliberadamente, por uma opção de método (Nicolas Werth reivindica francamente que "se coloque em segundo plano a história política" para seguir melhor o fio linear de uma história descontextualizada da repressão), não resta mais que um teatro de sombras. Não se trata mais de instruir o processo de um regime, de uma época, de algozes identificados, mas de uma ideia: a ideia que mata. A esse gênero, alguns jornalistas entregaram-se de todo coração. Jacques Amalric registra com satisfação "a realidade gerada por uma utopia mortífera”.(10) Philippe Cusin inventa uma hereditariedade conceitual: "Está inscrita nos genes do comunismo: é natural matar".(11) É para quando a eutanásia conceitual do gene do crime?

Instruir o processo não com fatos, crimes específicos, mas com uma ideia é inevitavelmente instituir uma culpa coletiva e um crime de intenção. O tribunal da história segundo Courtois não é apenas retroativo. Torna-se perigosamente preventivo quando ele lamenta que o "trabalho de luto da ideia de revolução ainda esteja longe de terminar" e fica indignado com o fato de "grupos abertamente revolucionários serem ativos e se expressarem com absoluta legalidade"!

O arrependimento está certamente na moda. Que Furet ou Le Roy Ladurie, a senhora Kriegel(12) ou o senhor Courtois nunca tenham chegado ao fim de seu trabalho de luto, que arrastem como um grilhão sua má consciência de stalinistas arrependidos, que sua expiação seja cozida em ressentimento, esse é um problema deles. Mas aqueles que continuaram sendo comunistas sem nunca ter celebrado o pai dos povos ou salmodiado o livrinho vermelho do grande timoneiro, de que você deseja, senhor Courtois, que se arrependam? Eles certamente se equivocaram algumas vezes. Mas, vendo como está o mundo, certamente não se equivocaram de causa nem de adversário.

Para entender as tragédias do século que termina e tirar lições úteis para o futuro, é preciso ir além da cena ideológica, abandonar as sombras que nela se agitam para embrenhar-se nas profundezas da história e seguir a lógica dos conflitos políticos nos quais uma escolha é feita entre várias outras possíveis.

Revolução ou golpe de Estado?

Um retorno crítico à Revolução Russa por ocasião do 80º aniversário de Outubro levanta muitas questões, tanto de ordem histórica como programática. É muito o que está em jogo. Trata-se, nem mais nem menos, de nossa capacidade de um futuro aberto à ação revolucionária, porque nem todo passado tem o mesmo futuro.

Contudo, antes mesmo de entrar na massa dos novos documentos acessíveis em razão da abertura dos arquivos soviéticos (o que, sem dúvida, permitirá novos esclarecimentos e uma renovação das controvérsias), a discussão se depara com o prêt-à-penser ideológico dominante, cuja ascendência é bem ilustrada pela recente e consensual homenagem necrológica a François Furet. Nestes tempos de contrarreforma e reação, não surpreende que os nomes de Lenin e Trotski se tornem tão impronunciáveis ​​quanto os de Robespierre ou Saint-Just sob a Restauração. Para começar a limpar o terreno, é, portanto, apropriado retornar a três ideias amplamente difundidas hoje:

1. Embora apresentado como uma revolução, Outubro seria o nome emblemático de uma trama ou um golpe de Estado minoritário que imediatamente impôs, de cima, sua concepção autoritária da organização social em benefício de uma nova elite.

2. Todo o desenvolvimento da Revolução Russa e suas desventuras totalitárias estariam inscritas em germe, por uma espécie de pecado original, na ideia (ou "paixão", segundo Furet) revolucionária: a história seria então reduzida à genealogia e à realização dessa ideia perversa, desprezando-se grandes convulsões reais, eventos colossais e o resultado incerto de todas as lutas.

3. Em resumo, a Revolução Russa teria sido condenada à monstruosidade por ter nascido de um parto "prematuro" da história, de uma tentativa de forçar seu curso e seu ritmo, quando as "condições objetivas" de uma superação do capitalismo não estavam dadas: em vez de ter a sabedoria de "autolimitar" seu projeto, os líderes bolcheviques teriam sido os agentes ativos desse revés.

Um verdadeiro ímpeto revolucionário

A Revolução Russa não foi o resultado de uma conspiração, mas a explosão, no contexto da guerra, das contradições acumuladas pelo conservadorismo autocrático do regime czarista. A Rússia, no início do século, era uma sociedade bloqueada, um exemplo de "desenvolvimento desigual e combinado", um país ao mesmo tempo dominante e dependente, aliando características feudais de um campo no qual a servidão fora oficialmente abolida havia menos de meio século às características de um capitalismo industrial urbano dos mais concentrados. Grande potência, estava tecnológica e financeiramente subordinada (os empréstimos russos de divertida memória!). A lista de queixas apresentada pelo papa Gapone na Revolução de 1905(13) era um verdadeiro registro da miséria que reinava no país dos czares. As tentativas de reforma eram rapidamente bloqueadas pelo conservadorismo da oligarquia, a teimosia do déspota e a inconsistência de uma burguesia atropelada pelo nascente movimento dos trabalhadores. As tarefas da revolução democrática correspondiam, assim, a uma espécie de terceiro estado em que, diferentemente da Revolução Francesa, o proletariado moderno, embora minoritário, já era a ala mais dinâmica.

É por tudo isso que a "Rússia Sagrada" pôde representar "o elo fraco" da cadeia imperialista. A provação da guerra ateou fogo nesse barril de pólvora.

O desenvolvimento do processo revolucionário, entre fevereiro e outubro de 1917, ilustra bem que não era uma conspiração minoritária de agitadores profissionais, mas a assimilação acelerada de uma experiência política no nível de massa, de uma metamorfose de consciências, um deslocamento constante das correlações de forças. Em sua magistral História da Revolução Russa,(14) Trotski analisa exaustivamente essa radicalização, de eleição sindical em eleição sindical, de eleição municipal em eleição municipal, entre trabalhadores, soldados e camponeses. Enquanto os bolcheviques representavam não mais de 13% dos delegados ao Congresso dos Sovietes em junho, as coisas mudaram rapidamente após os dias de julho e a tentativa de golpe de Kornilov: já representavam entre 45% e 60% em outubro, no II Congresso.

Longe de ser uma ajudazinha bem-sucedida e dada de surpresa, a insurreição representou, portanto, o ponto culminante e o resultado provisório de um teste de forças que amadurecera ao longo do ano, durante o qual o estado de espírito das massas plebeias esteve sempre à esquerda dos partidos e seus estados-maiores, não apenas os dos socialistas revolucionários (SR), mas também os do Partido Bolchevique ou parte de sua liderança (incluindo até a decisão da insurreição).

Os historiadores geralmente concordam que a insurreição de Outubro foi o resultado, pouco mais violento do que a tomada da Bastilha, de um ano de decomposição do antigo regime. É por isso que, comparativamente à violência que se veria mais tarde, foi pouco custosa em termos de vidas humanas. Essa relativa "facilidade" da tomada insurrecional do poder pelos bolcheviques ilustra a impotência da burguesia russa entre fevereiro e outubro, sua incapacidade de colocar o Estado nos eixos e construir um projeto nacional moderno a partir das ruínas do czarismo. A alternativa não estava mais entre revolução e democracia sem adjetivos, mas entre duas soluções autoritárias, a revolução e a ditadura militar de Kornilov ou algo semelhante.

Se se entende por revolução um ímpeto de transformação vindo de baixo, das aspirações profundas do povo, e não o cumprimento de algum plano grandioso imaginado por uma elite iluminada, sem dúvida que a Revolução Russa foi uma revolução no sentido pleno do termo, com base nas necessidades fundamentais de paz e terra.(15) Basta lembrar as medidas legislativas tomadas nos primeiros meses e no primeiro ano pelo novo regime para entender que elas significaram uma mudança absolutamente radical nas relações de propriedade e poder, às vezes mais rápidas do que o esperado e desejado, às vezes até mesmo além do desejável, sob a pressão das circunstâncias. Numerosos livros testemunharam essa ruptura na ordem do mundo (veja-se Os dez dias que abalaram o mundo, de John Reed(16)) e seu impacto internacional imediato (cf. A revolução de Outubro e o movimento dos trabalhadores europeus(17)).

Marc Ferro enfatiza(18) que na época não havia muitas pessoas para lamentar a queda do regime do czar e chorar pelo último déspota. Pelo contrário, ele insiste na derrocada de um mundo, tão característica de uma autêntica revolução, mesmo nos detalhes da vida cotidiana: em Odessa, os alunos ensinavam aos professores um novo programa de história; em Petrogrado, os trabalhadores forçavam seus empregadores a aprender "o novo direito dos trabalhadores"; no exército, os soldados convidavam o capelão militar para sua reunião "para dar um novo significado à sua vida"; em algumas escolas, as crianças reivindicavam o direito de aprender boxe para serem ouvidas e respeitadas pelos maiores.

A provação da guerra civil

Esse ímpeto revolucionário inicial ainda operava, apesar das condições desastrosas, durante a guerra civil desde o verão de 1918. Em sua contribuição, Nicolas Werth lista de maneira documentada todas as forças que teve de enfrentar o novo regime: não apenas os exércitos brancos de Koltchak e Denikin, não apenas a intervenção estrangeira franco-britânica, mas também os levantes camponeses massivos contra as requisições e os motins operários contra o racionamento. Lendo-o, é difícil ver de onde o poder revolucionário retirou forças para derrotar adversários tão poderosos. Fica parecendo que foi unicamente por causa dos efeitos do terror minoritário e do alistamento nas tchecas(19) de um lúmpen-proletariado disposto a tudo. Mas tal explicação é muito limitada para dar conta da organização, em alguns meses, do Exército Vermelho e de suas vitórias. É mais realista conceder à guerra civil todo o seu alcance e admitir que nela se opuseram sem trégua forças sociais antagônicas.

Segundo os autores do Livro negro, os bolcheviques queriam a guerra civil, e o terror desencadeado a partir do verão de 1918 seria a matriz original de todos os crimes cometidos desde então em nome do comunismo. Mas a história real, feita de conflitos, lutas, incertezas, vitórias e derrotas, é irredutível a essa lenda sombria do autodesenvolvimento do conceito, em que a ideia engendraria o mundo.

A guerra civil não foi desejada mas sim prevista. E isso é mais do que uma nuance. Todas as revoluções desde a Revolução Francesa haviam inculcado esta lição dolorosa: os movimentos de emancipação enfrentam a reação conservadora; em 1792, a contrarrevolução segue a revolução como uma sombra, quando as tropas de Brunswick marcham sobre Paris, em seguida, em 1848, nos massacres de junho (sobre a ferocidade burguesa de então, releia-se Michelet, Flaubert ou Renan), depois na Semana Sangrenta de 1871. Desde então, essa regra nunca foi quebrada, do pronunciamiento(20) franquista de 1936 até o golpe de Estado de Sukarno (que fez 500 mil mortos em 1965 na Indonésia) ou o de Pinochet no Chile em 1973. Não mais do que os revolucionários franceses em 1792, os revolucionários russos não declararam a guerra civil. Eles não chamaram as tropas francesas e britânicas para derrubá-los! Desde o verão de 1918, lembra Nicolas Werth, os exércitos brancos estavam firmemente estabelecidos em três frentes, e os bolcheviques "não controlavam mais do que um território reduzido à histórica Moscou". As disposições do terror foram tomadas em agosto-setembro de 1918, quando a agressão estrangeira e a guerra civil começaram. Da mesma forma, na Revolução Francesa, Danton proclamou o terror para canalizar o terror popular espontâneo que irrompeu com os massacres de setembro diante da ameaça do avanço das tropas da coalizão de Brunswick que pesava sobre Paris.

Nicolas Werth admite que a responsabilidade no desencadeamento da guerra civil não estava do lado da revolução. Se os horrores da guerra civil foram compartilhados entre "vermelhos" e "brancos", a matriz de todos os terrores do futuro residiria, no entanto, em uma guerra oculta, uma guerra na guerra, contra o campesinato. Para colocar as vítimas da fome de 1921-1922 na lista dos crimes do comunismo, Nicolas Werth por vezes tende a apresentá-las como resultado de uma decisão de extermínio deliberado do campesinato. Os documentos sobre a repressão nas aldeias são esmagadores. Mas é possível, no entanto, dissociar os dois problemas, o da guerra civil e o da questão agrária?

Para enfrentar a agressão, o Exército Vermelho teve que mobilizar em alguns meses quatro milhões de combatentes que precisavam ser equipados e alimentados. Em dois anos, Petrogrado e Moscou perderam mais da metade de sua população. A indústria, devastada, não produziu mais nada. Sob essas condições, para alimentar as cidades e o Exército, que outra solução além das requisições? Sem dúvida, podem-se imaginar outras maneiras, levando em consideração, olhando à distância do tempo decorrido, a lógica de uma polícia política, os perigos da arbitrariedade burocrática exercida por tiranos improvisados. Mas é uma discussão concreta, em termos de decisões políticas, de alternativas imagináveis ​​diante de desafios reais e não de julgamentos abstratos.

No final da guerra civil, não é mais a base que empurra a cúpula, mas a vontade da cúpula que se esforça para arrastar a base. Daí a mecânica da substituição: o partido substitui o povo; a burocracia, o partido; o homem providencial, o conjunto. No decorrer desse processo, emerge uma nova burocracia, resultado da herança do antigo regime e da promoção social acelerada de novos líderes. Após o recrutamento massivo da “promoção Lenin” em 1924, os poucos milhares de militantes de Outubro não influenciam mais tão fortemente o partido em comparação com as centenas de milhares de novos bolcheviques, entre os quais os carreiristas que voam em socorro da vitória e elementos reciclados da antiga administração.

A pesada herança da guerra civil

A guerra civil constitui uma terrível experiência fundadora. Cria um hábito de indiferença às formas mais extremas e desumanas de uma violência que se soma às explosões da guerra mundial. Ela também forja uma herança de brutalidade burocrática, da qual Lenin tomará conhecimento por ocasião da crise com os comunistas da Geórgia e da qual Trotski presta contas em seu Stalin.(21) O "Testamento de Lenin" e o "Diário das secretárias" atestam, em sua agonia, essa patética consciência do problema.(22) Enquanto a revolução é uma questão de povos e multidões, o Lenin moribundo é reduzido a pesar os vícios e as virtudes de um punhado de dirigentes dos quais quase tudo agora parece depender.

No final das contas, a guerra civil significou um "grande salto para trás", uma "arcaização" do país em relação ao nível de desenvolvimento alcançado antes de 1914. Ela deixa o país exangue. Dos 4 milhões de habitantes que tinham Petrogrado e Moscou no início da revolução, restava apenas 1,7 milhão no final da guerra civil. Em Petrogrado, 380 mil trabalhadores deixaram a produção com os 80 mil restantes, e as cidades devastadas se tornaram parasitas da agricultura, forçando a retenção autoritária de suprimentos. E o Exército Vermelho chegou a um efetivo de 4 milhões. “Quando o novo regime finalmente conseguiu liderar o país em direção ao seu objetivo declarado”, escreve Moshe Lewin, “o ponto de partida revelou-se muito mais atrasado do que teria sido em 1917, para não dizer em 1914”. Ao longo da guerra civil é forjado um “socialismo atrasado” e estatista, um novo Estado construído sobre ruínas: “Na verdade, o Estado foi formado sobre a base de um desenvolvimento social regressivo”.(23)

Aí reside a raiz essencial da burocratização, da qual certos líderes soviéticos, incluindo Lenin, tornaram-se bastante conscientes desde logo, ao mesmo tempo em que se desesperavam por não contê-la. Aqui, o peso terrível das circunstâncias e a ausência de cultura democrática acumulavam seus efeitos. Portanto, não há dúvida de que a confusão mantida, desde a tomada do poder, entre o Estado, o partido e a classe trabalhadora, em nome da rápida extinção do Estado que se tinha e do desaparecimento das contradições no seio do povo, favoreceu muito a estatização da sociedade e não a socialização das funções estatais.

A aprendizagem da democracia é algo longo e difícil. Não segue o mesmo ritmo dos decretos da reforma econômica, muito menos na medida em que o país praticamente não tinha tradições parlamentares e pluralistas. Exige tempo, energia e também os meios. A efervescência em comitês e sovietes de 1917 ilustra os primeiros passos desse aprendizado, no decurso do qual uma sociedade civil foi sendo desenhada. Na provação da guerra civil, a solução mais simples foi subordinar os órgãos do poder popular, conselhos e sovietes, a um guardião esclarecido: o partido. Na prática, também envolveu a substituição do princípio de eleição e do controle dos responsáveis ​​pela indicação por iniciativa do partido, desde 1918, em certos casos. Essa lógica levou à supressão do pluralismo político e da liberdade de opinião necessários para a vida democrática, bem como à subordinação sistemática do direito à força.

A engrenagem era ainda mais assustadora, na medida em que a burocratização não vinha apenas da manipulação de cima. Também respondia por vezes a uma demanda vinda de baixo, a uma necessidade de ordem e tranquilidade nascida do cansaço da guerra e da guerra civil, da privação e do desgaste, à qual as controvérsias democráticas, a turbulência política, a necessidade constante de responsabilidade incomodava.

Marc Ferro enfatizou com muita pertinência em seus livros essa terrível dialética. Ele lembra que havia claramente “dois focos democrático-autoritários na base, centralista-autoritário na cúpula”, no início da revolução, enquanto “não restava mais que um em 1939”. Mas, para ele, a questão estava praticamente resolvida após alguns meses, desde 1918 ou 1919, com o declínio ou o controle dos comitês de bairro e de fábrica.(24) Seguindo uma abordagem análoga, o filósofo Philippe Lacoue-Labarthe é ainda mais explícito ao declarar o bolchevismo “contrarrevolucionário a partir de 1920-1921” (ou seja, antes de Kronstadt(25)).(26)

O assunto é da maior importância. Não se trata de contrapor ponto a ponto, de maneira maniqueísta, uma lenda dourada do "leninismo de Lenin" ao leninismo de Stalin, os luminosos anos 20 aos tristes anos 30, como se nada tivesse começado ainda a apodrecer no país dos sovietes. É claro que a burocratização esteve imediatamente em andamento, é claro que a atividade policial das tchecas tinha sua própria lógica, é claro que a prisão política das Ilhas Solovski já estava aberta após o fim da guerra civil e antes da morte de Lenin, é claro que a pluralidade de partidos fora suprimida, a liberdade de expressão, limitada, os direitos democráticos, mesmo no partido, restritos desde o X Congresso de 1921.

Mas o processo do que chamamos contrarrevolução burocrática não foi um evento simples, datado e simétrico da insurreição de Outubro. Não foi feito em um dia. Passou por decisões, confrontos, eventos. Os próprios atores não pararam de discutir sua periodização, não por uma questão de precisão histórica, mas para tentar deduzir dela tarefas políticas. Testemunhas como Rosmer, Eastman, Souvarine, Istrati, Benjamin, Zamiatine e Boulgakov (em sua carta a Stalin), a poesia de Maiakovski, os tormentos de Mandelstam ou Tsetaieva, os diários de Babel etc., podem contribuir para esclarecer as múltiplas facetas do fenômeno, seu desenvolvimento, sua progressão.

Assim, quando a desastrosa repressão de Kronstadt aumenta a conscientização, na primavera de 1921, de uma necessária reorientação da política econômica, quando a guerra civil termina vitoriosamente, as liberdades democráticas são novamente restringidas e não ampliadas: o X Congresso do partido proíbe tendências e frações.

Com a retrospectiva histórica, é necessário retornar a essas questões da democracia representativa, do pluralismo político, da censura, da dissolução da Assembleia Constituinte, para formular teoricamente os problemas que os pioneiros do socialismo enfrentaram e meditar sobre suas lições. Não há dúvida de que a herança do czarismo, os quatro anos de carnificina mundial durante os quais foram mobilizados mais de quinze milhões de soldados russos, a violência e as atrocidades da guerra civil influenciaram infinitamente mais o futuro do regime revolucionário do que as falhas doutrinárias de seus líderes, por mais graves que estas tenham sido.

Em um artigo sobre "A Revolução e a Lei", publicado pelo Pravda em 1º de dezembro de 1917 (!), Anatole Lunatcharski, futuro ministro da Educação, começou com esta descoberta: "Uma sociedade não está unificada como um todo". Demorou muito tempo e muitas tragédias para que se tirassem todas as consequências dessa pequena frase. Como uma sociedade não é unificada como um todo, mesmo após a derrubada da antiga ordem, não se pode pretender socializar o Estado por decretos sem correr o risco de estatizar a sociedade. Como a sociedade não é unificada como um todo, os sindicatos devem permanecer independentes em relação ao Estado e aos partidos, e os partidos, independentes em relação ao Estado. As contradições entre os interesses existentes na sociedade devem poder ser expressas por uma imprensa independente e por uma pluralidade de formas de representação. É também por esse motivo que a autonomia da forma e da norma jurídica deve garantir que o direito não seja reduzido à arbitrariedade perenizada da força.

A defesa do pluralismo político não é, portanto, uma questão de circunstância, mas uma condição essencial da democracia socialista. É a conclusão que Trotski tira da experiência em A revolução traída: "Na verdade, as classes são heterogêneas, dilaceradas por antagonismos internos, e não alcançam fins comuns além da luta de tendências, agrupamentos e partidos".(27) Isso significa que a vontade coletiva não pode ser expressa, exceto por meio de um processo eleitoral livre, quaisquer que sejam suas formas institucionais, combinando democracia participativa direta e democracia representativa.

Mesmo sem constituir uma garantia absoluta contra a burocratização e os perigos profissionais do poder, algumas respostas e orientações podem ser depreendidas da experiência.

– A distinção de classes, partidos e Estado deve ser traduzida no reconhecimento do pluralismo político e sindical, como a única maneira de permitir o confronto de programas e opções alternativos relativos a todas as principais questões da sociedade, e não simplesmente na troca de pontos de vista provenientes de instâncias locais de poder.

– Uma forma de democracia que combine conselhos de produção e conselhos territoriais, com expressão direta e direito de controle, não apenas dos partidos, mas também de sindicatos, associações, movimentos de mulheres.

– A responsabilidade e revogabilidade dos eleitos pelos que os elegeram, e não um mandato imperativo que bloqueie qualquer função deliberativa das assembleias eleitas.

– A limitação da acumulação e renovação de mandatos eletivos e a limitação do salário dos eleitos no nível do trabalhador qualificado ou do empregado dos serviços públicos, a fim de restringir a personalização e a profissionalização do poder.

– A descentralização do poder e a redistribuição de competências nos níveis local, regional ou nacional mais próximos dos cidadãos, com direito de veto suspensivo das instâncias inferiores às decisões que as afetam diretamente e possível recurso a referendos de iniciativa popular.

Uma democracia de produtores livremente associados é perfeitamente compatível com o exercício do sufrágio universal. Os conselhos comunitários ou assembleias populares territoriais podem ser formados por representantes das unidades de trabalho e habitação e submeter qualquer decisão importante ao voto das populações envolvidas.

Experiências recentes, a da Polônia em 1980-1981 e a da Nicarágua em 1984, trouxeram à agenda a possibilidade de um sistema de duas câmaras, uma escolhida diretamente pelo sufrágio universal, a outra representando diretamente os trabalhadores, os camponeses, mais amplamente, as diferentes formas associativas do poder popular. Essa resposta (que pode incluir nos estados plurinacionais uma câmara de nacionalidades) satisfaz teoricamente tanto a exigência de eleições gerais quanto a preocupação com a democracia popular mais direta possível. Permite não confundir por decreto a realidade da sociedade e a esfera do Estado, destinada a enfraquecer-se à medida que se desenvolve, amplia e generaliza a autogestão.

Essas grandes orientações resumem as lições de uma história dolorosa. Elas não constituem uma arma absoluta contra os perigos profissionais do poder, nem uma receita para cada situação específica. Podem-se discutir retrospectivamente as consequências da dissolução da Assembleia Constituinte pelos bolcheviques, a respectiva representatividade dessa Assembleia e o Congresso dos Sovietes no final de 1917, sobre se seria preferível manter uma dupla forma de representação duradoura (dualidade de poder prolongada). Pode-se igualmente questionar se deveriam ter sido organizadas eleições livres no fim da guerra civil, correndo-se o risco de ver, em um contexto de destruição e pressão internacional, os brancos derrotados militarmente vencerem. Tal situação específica depende de relações de força nacionais e internacionais específicas. Toda a experiência histórica, por outro lado, confirma o aviso de Rosa Luxemburgo feito em 1918: “Sem eleições gerais, sem liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta livre de opinião, a vida se extingue em todas as instituições públicas, vegeta, e a burocracia continua sendo o único elemento ativo”.(28) A democracia mais ampla possível é inseparavelmente uma questão de liberdade e uma condição de eficiência econômica: somente ela pode permitir a superioridade da planificação autogestionária sobre os automatismos de mercado.

Vontade de poder ou contrarrevolução burocrática?

O destino da primeira revolução socialista, o triunfo do stalinismo, os crimes da burocracia totalitária constituem um dos eventos mais importantes do século.

Para alguns, o princípio do mal residiria em um pano de fundo ruim da natureza humana, em uma vontade irreprimível de poder que se pode manifestar sob diferentes máscaras, incluindo a pretensão de fazer a felicidade do povo a despeito dele mesmo, impor os esquemas preconcebidos de uma cidade perfeita.

O objetivo polêmico do Livro negro é estabelecer uma continuidade estrita entre Lenin e Stalin, arruinando "a velha lenda da Revolução de Outubro traída por Stalin": "Os horrores do stalinismo são substanciais ao leninismo" (Jacques Amalric); "O impulso criminoso inicial corresponde a Lenin" (Eric Conan, L'Express, 6 de novembro). Sem levar as críticas a seu próprio passado até um exame rigoroso da periodização da Revolução Russa, às posições que se enfrentaram ao longo das décadas de 1920 e 1930, os integrantes do PCF(29) se contentam com uma autocrítica vaga e deixam-se levar a falar sobre os crimes do stalinismo como o "prolongamento trágico" do evento revolucionário (Claude Cabanes, L'Humanité, 7 de novembro). Se um destino implacável, portador de tais desastres, estava em andamento desde o primeiro dia, por que fingir ainda ser comunista?

Os anos 20: "pausa" ou bifurcação?

Apesar da reação burocrática, que logo começa a "congelar a revolução", apesar da penúria e do atraso cultural, o impulso revolucionário inicial ainda se faz sentir ao longo dos anos 20, nas tentativas pioneiras no front de transformação do modo de vida: reformas escolares e pedagógicas, direito da família, utopias urbanas, invenção gráfica e cinematográfica. É também esse impulso que permite explicar as contradições e ambiguidades da "grande transformação" operada na dor do período do entreguerras, quando ainda se misturavam o terror burocrático e a energia da esperança revolucionária. Tomar consciência do significado e do alcance histórico desse fenômeno não foi a menor das dificuldades.

Assim, é importante apreender da organização social, das forças que o constituem e que se lhe opõem, as raízes e fontes profundas do que às vezes foi chamado de "fenômeno stalinista". O stalinismo, em circunstâncias históricas concretas, refere-se a uma tendência mais geral à burocratização, que atua em todas as sociedades modernas. É alimentado principalmente pela ascensão da divisão social do trabalho (principalmente trabalho manual e intelectual) e pelos "perigos profissionais do poder" que lhe são inerentes. Na União Soviética, essa dinâmica foi ainda mais forte e mais rápida na medida em que a burocratização ocorreu em um contexto de destruição, penúria e arcaísmo cultural, na ausência de tradições democráticas.

Desde o início, a base social da revolução era ao mesmo tempo ampla e estreita. Ampla na medida em que repousava na aliança entre os trabalhadores e os camponeses, que constituíam a esmagadora maioria social. Estreita na medida em que seu componente de trabalhadores, minoritário, foi rapidamente reduzido pelos desastres da guerra e pelas perdas da guerra civil. A brutalidade burocrática é proporcional à fragilidade de sua base social. É constitutiva de sua função parasitária.

Permanece, entretanto, entre o início dos anos 20 e os terríveis anos 30 uma ruptura, uma descontinuidade irredutível, tanto na política doméstica quanto na internacional. Mas as tendências autoritárias certamente começaram a ser visíveis muito antes. Obcecados pelo "inimigo principal" (nesse caso, muito real) da agressão imperialista e restauração capitalista, os líderes bolcheviques começaram ignorando ou subestimando "o inimigo secundário", a burocracia que os minou por dentro e acabou por devorá-los. Tal cenário sem precedentes era difícil de imaginar. Demorou tempo para que fossem entendidas, interpretadas e depreendidas suas consequências. Se Lenin, sem dúvida, percebeu o sinal de alarme que a crise de Kronstadt significou, a ponto de conduzir uma profunda reorientação econômica, será apenas muito mais tarde, na Revolução traída, que Trotski descobrirá como princípio o pluralismo político na heterogeneidade do próprio proletariado, mesmo após a tomada do poder.

A maior parte dos testemunhos e documentos sobre a União Soviética ou sobre o próprio Partido Bolchevique(30) não permitem ignorar, na estreita combinação de ruptura e continuidade, a grande virada dos anos 30. A ruptura prevalece de longe, testemunhada por milhões e milhões de pessoas famintas, deportados, vítimas de processos e expurgos. Foi necessário desencadear essa violência para chegar ao "congresso dos vencedores" de 1934 e à consolidação do poder burocrático.

A grande virada

Entre o terror da guerra civil e o grande terror dos anos 30, Nicolas Werth privilegia a continuidade. Para isso, é necessário relativizar o significado dos anos 20, as escolhas que então se apresentaram, os conflitos de orientação dentro do partido, reduzi-los a uma simples "pausa" ou "trégua" entre dois auges terroristas. No entanto, ele próprio fornece os elementos que testemunham uma mudança (quantitativa) na escala repressiva e uma mudança (qualitativa) em seu conteúdo. Em 1929, o plano de "coletivização em massa" estabelece o objetivo de 13 milhões de fazendas a serem coletivizadas pela força. A operação causa as grandes fomes e deportações em massa de 1932-1933: "A primavera de 1933 marcou sem dúvida o apogeu de um primeiro grande ciclo de terror que se iniciara no final de 1929 com o lançamento da deskoulakizción".(31) Após o assassinato de Kirov (dirigente do partido em Petrogrado), começa em 1934 o segundo grande ciclo, marcado pelos grandes julgamentos e principalmente pelo "grande expurgo" (iejovschina) de 1936-1938, cujo número de vítimas é avaliado em 690 mil. A coletivização forçada e a industrialização acelerada implicam um deslocamento massivo de populações, uma "ruralização" das cidades e uma massificação vertiginosa do Gulag.

Durante todo o processo, uma legislação repressiva foi desenvolvida e reforçada. Em junho de 1929, iniciou-se, ao mesmo tempo que a coletivização em massa, uma reforma capital do sistema de detenção: os detidos condenados a sentenças de mais de três anos seriam transferidos para os campos de trabalho. Dada a magnitude incontrolável da migração interna, uma decisão de dezembro de 1932 introduziu passaportes internos. Poucas horas após o assassinato de Kirov, Stalin redigiu um decreto conhecido como "lei de 1º de dezembro de 1934", que legalizou processos sumários e forneceu o instrumento privilegiado para o grande terror.

Além do esmagamento dos movimentos populares urbanos e rurais, esse terror burocrático liquidou o que restava da herança de Outubro. Como se sabe, os processos e expurgos realizaram cortes profundos nas fileiras do partido e do exército. A maioria dos quadros e líderes do período revolucionário foi deportada ou executada. Dos 200 membros do Comitê Central do Partido Comunista ucraniano, sobreviveram apenas três. No exército, o número de detenções atingiu mais de 30 mil quadros, dos 178 que havia. Paralelamente, o aparato administrativo necessário para essa empresa repressiva e para o gerenciamento de uma economia estatizada disparou. Segundo Moshe Lewin, a equipe administrativa passou de 1 450 000 membros em 1928 para 7 500 000 em 1939; os colarinhos brancos, de 3 900 000 para 13 800 000. Burocracia não é uma palavra vã. Torna-se uma força social: o aparato burocrático do Estado devorou o que restava de militantes no partido.

Essa contrarrevolução também fez com que seus efeitos fossem sentidos em todas as áreas, tanto na política econômica (coletivização forçada e desenvolvimento em larga escala do Gulag), como na política internacional (na China, na Alemanha, na Espanha), na política cultural (veja o livro de Varlam Chalamov, Os anos vinte,(32) que sublinha o contraste entre os anos ainda efervescentes e os terríveis 30), na vida cotidiana, com o que Trotski chamou de "Termidor doméstico", na ideologia (com a cristalização de uma ortodoxia estatal, codificação do "diamat" – materialismo dialético – e redação de uma história oficial do partido).

É preciso chamar as coisas pelo seu nome e, assim, uma contrarrevolução de contrarrevolução, aquela de tal forma massiva, visível, mais dilacerante do que as medidas autoritárias, por mais perturbadoras que estas tenham sido, tomadas no fogo da guerra civil. Nicolas Werth, por outro lado, fica dividido entre o reconhecimento do que é radicalmente novo nos anos 30 e sua vontade de estabelecer uma continuidade entre a promessa revolucionária de Outubro e a reação stalinista triunfante. Assim, ele fala de "episódio decisivo" na criação do sistema repressivo ou "último episódio do confronto iniciado em 1918-1922".(33) Episódio ou ponto de virada, é preciso escolher.

O pressuposto da continuidade leva a pular os anos 20, suas controvérsias e problemas, como se fossem simples parênteses. O relato linear da repressão sai então de seu contexto. Relega a um pano de fundo difuso os conflitos em torno de escolhas cruciais, tanto em termos de política internacional (orientação durante a Revolução Chinesa, atitude em relação à ascensão do nazismo, oposições à guerra na Espanha), quanto em questões de política interna (oposição tanto trotskista como bukhariana à coletivização forçada, alternativas econômicas e sociais propostas em nome de uma outra ideia... de comunismo!).

Contrarrevolução e restauração

A ideia de contrarrevolução é perturbadora para alguns sob o pretexto de que não levou à restauração da situação anterior. O tempo histórico não é reversível como o da física mecânica. O filme não volta para trás. Após o Termidor, Joseph de Maistre, um ideólogo conservador da revolução e um bom conhecedor da reação, já assinalava finamente que uma contrarrevolução não é uma revolução na direção oposta, mas o oposto de uma revolução. Os dois processos não são simétricos. Uma contrarrevolução pode, assim, produzir algo novo e inédito. Esse foi o caso na Alemanha bismarckiana após o fracasso das revoluções de 1848. Da mesma forma, Termidor ainda não era a Restauração. O império era uma longa área cinzenta que combinava aspirações revolucionárias e a consolidação de uma nova ordem.

É em uma zona cinzenta análoga que vários militantes comunistas sinceros se perdem, impressionados com os sucessos da "pátria do socialismo" sem conhecer ou medir seu custo. Se se quisesse saber, sabia-se muito, mesmo que não tudo, nos anos 30 sobre o terror stalinista. Havia os depoimentos de Victor Serge, de Ante Ciliga, o contrajulgamento presidido por John Dewey, os depoimentos contra a repressão dos anarquistas e do POUM(34) na Espanha. Mas, nesses tempos de luta antifascista e "heroísmo burocratizado" (na formulação de Isaac Deutscher), muitas vezes era difícil combater ao mesmo tempo o inimigo principal e o inimigo não tão secundário, que derrotava por dentro. Muitos atores (Jan Valtin, Élizabeth Poretsky, Jules Fourier, Charles Tillon, sobreviventes da Orquestra Vermelha e muitos outros) testemunham essas "vidas dilaceradas".

De fato, a União Soviética sob Stalin não era a da estagnação brejneviana. Estava mudando a toda velocidade, sob o domínio de uma burocracia empreendedora. O segredo dessa energia não tem relação com a energia napoleônica que fascinou Chateaubriand: "Se os boletins, discursos, elocuções e proclamações de Bonaparte se distinguem pela energia, essa energia não lhe é própria; ela era de seu tempo, vinda da inspiração revolucionária que enfraqueceu em Bonaparte, porque ele caminhava em oposição a essa aspiração".(35) Essa não é a única analogia surpreendente entre os dois personagens: "A Revolução que era a nutriz de Napoleão logo se lhe apresentou como um inimigo. Ele nunca parou de combatê-la”.(36)

Jamais algum país do mundo sofreu uma metamorfose tão brutal como a União Soviética dos anos 30, sob o domínio de uma burocracia faraônica: entre 1926 e 1939, as cidades aumentaram em 30 milhões de habitantes e sua participação na população total passou de 18% a 33%; somente no primeiro plano quinquenal, sua taxa de crescimento foi de 44%, quase a mesma de 1897 a 1926; a força de trabalho assalariada mais que dobra (passa de 10 para 22 milhões), o que significa a "ruralização" massiva das cidades, um enorme esforço de alfabetização e educação, a imposição em marcha forçada de uma disciplina do trabalho. Essa grande transformação é acompanhada por um renascimento do nacionalismo, um aumento no carreirismo, o surgimento de um novo conformismo burocrático. Nessa grande comoção, ironiza Moshe Lewin, a sociedade estava em certo sentido "sem classe" porque todas as classes estavam disformes, em fusão.(37)

Para a pergunta essencial de Mikhail Guefter – uma "marcha contínua" entre Outubro e o Gulag ou "dois mundos políticos e morais distintos" –, a análise da contrarrevolução stalinista fornece uma resposta clara. A periodização da revolução e da contrarrevolução russas não é pura curiosidade histórica. Ela comanda posições, orientações e tarefas políticas: antes, pode-se falar de erros a serem corrigidos, de orientações alternativas no mesmo projeto; depois, são forças e projetos opostos, escolhas organizacionais. Não é uma briga de família que permita a exibição a posteriori das vítimas de ontem como prova de um "pluralismo comunista" que reúne vítimas e carrascos. A periodização rigorosa permite, assim, para retomar a fórmula de Guefter, "à consciência histórica entrar no campo político".

Uma revolução "prematura"?

Desde a queda da União Soviética, uma tese foi retomada: que a revolução teria sido desde logo uma aventura condenada por ser prematura. É o que Henri Weber defende em uma coluna no Le Monde (14 de novembro de 1997). Essa tese teve origem muito cedo, no discurso dos próprios mencheviques russos e nas análises de Kautsky, a partir de 1921: muito do sangue, das lágrimas e das ruínas, ele escreveu, teriam sido poupados "se os bolcheviques tivessem possuído o senso menchevique de autolimitação ao que é acessível, em que se revela o mestre ”.(38)

A fórmula é reveladora. Kautsky argumenta contra a ideia de um partido de vanguarda, mas imagina de bom grado um partido-mestre, educador e pedagogo, capaz de regular como quiser o curso e o ritmo da história. Como se as lutas e as revoluções não tivessem também lógica própria. Ao querer autolimitá-las logo que surgem, passa-se rapidamente para o lado da ordem estabelecida. Não se trata mais de "autolimitar" os objetivos do partido, mas simplesmente de limitar as aspirações das massas. Nesse sentido, os social-democratas, os Ebert e os Noskes, assassinando Rosa Luxemburgo e esmagando os sovietes da Baviera, celebrizaram-se como virtuosos da "autolimitação".

A tomada do poder em outubro de 1917 resultou do fracasso de fevereiro da burguesia liberal e dos reformistas em responder à crise da sociedade e do Estado. Para a pergunta "Houve uma escolha em 1917?", a resposta de Mikhail Guefter parece mais fértil e convincente do que a tese da "prematuridade":

A questão é fundamental. Tendo pensado muito sobre esse problema, posso me permitir uma resposta categórica: não havia escolha. O que foi realizado então foi a única solução que se opunha a uma remodelação infinitamente mais sangrenta, uma derrocada sem sentido. A escolha surgiu depois. Uma escolha não sobre sistema social, sobre o caminho histórico a ser percorrido, mas a ser feita nesse caminho. Nem variantes (o problema era mais amplo) nem etapas a galgar para chegar ao cume, mas uma ramificação, ramificações.(39)

Essas ramificações, essas bifurcações de fato continuaram a surgir e suscitar respostas diferentes e opostas: em 1923, diante do Outubro alemão, sobre a NEP (Nova Política Econômica), sobre a coletivização forçada, sobre a industrialização acelerada e as formas de planejamento, sobre a democracia no país e no partido, sobre a ascensão do fascismo, sobre a Guerra da Espanha, sobre o pacto germano-soviético. Em cada um desses testes, propostas, programas, orientações entraram em conflito, mostrando outras escolhas e outros desenvolvimentos possíveis.

Na verdade, a tese da prematuridade leva inelutavelmente à ideia de uma história bem ordenada e regrada, como um relógio, onde tudo chega na hora certa, bem a tempo. Ela recai nas banalidades de um determinismo histórico estrito, tão frequentemente criticado pelos marxistas, em que o estado da infraestrutura determina de perto a superestrutura correspondente. Ele simplesmente elimina o fato de que a história não tem a força de um destino, está repleta de eventos que abrem uma gama de possibilidades, nem todas certamente, mas um horizonte determinado de possibilidades.

Ao ler hoje os autores do Livro negro, temos a impressão de que os bolcheviques, uma vez que a mão amiga de Outubro fosse bem-sucedida, se apegariam ao poder a todo custo. Isso é esquecer que eles nunca pensaram na Revolução Russa como uma aventura solitária, mas como o primeiro elemento de uma revolução europeia e mundial. Se Lenin dançou na neve no 73º dia da tomada do poder, como se diz, é porque ele inicialmente não esperava durar mais do que a Comuna. O futuro da revolução dependia a seus olhos da extensão da revolução em escala europeia e na Alemanha em particular.

As convulsões que abalaram a Alemanha, Itália, Áustria, Hungria entre 1918 e 1923 indicaram uma verdadeira crise europeia. Os fracassos da Revolução Alemã ou da Guerra Civil Espanhola, os desenvolvimentos da Revolução Chinesa, a vitória do fascismo na Itália e na Alemanha não estavam escritos com antecedência. Apesar de tudo, os revolucionários russos não foram responsáveis ​​pelas renúncias e pela covardia dos social-democratas franceses e alemães.

A partir de 1923, ficou claro que eles não poderiam mais contar com uma extensão da revolução na Europa no curto prazo. Foi necessária então uma reorientação radical. Estava em jogo o confronto entre as teses do "socialismo em um país" e a da "revolução permanente", que despedaçaram o partido em meados dos anos 20.

Sem contestar a legitimidade inicial da Revolução Russa, alguns acreditam que ela se baseou em um prognóstico incorreto e em uma aposta impossível. Contudo, não era uma previsão, mas uma orientação destinada a eliminar as causas da guerra, derrubando o sistema que a havia gerado. A onda de choque à saída da guerra foi bem confirmada de 1918 a 1923. Após o fracasso do Outubro alemão, no entanto, a situação foi permanentemente estabilizada. O que fazer então? Procurar ganhar tempo sem a ilusão de poder "construir o socialismo em um país", além do mais arruinado? É isso que estava em jogo nas discussões e lutas da década de 1920. Essa é toda a dimensão política da questão, o cerne da questão. No plano econômico e social, a NEP forneceu um elemento de resposta, mas teria sido necessário para aplicá-la um pessoal diferentemente cultivado do que aquele treinado nos métodos expeditos do comunismo de guerra. No nível político, era necessária uma orientação democrática, buscando a legitimação da maioria por meio da expressão eleitoral do pluralismo soviético. Internacionalmente, deveria haver uma política internacionalista que, por meio do Comintern, não subordinasse os vários partidos comunistas e suas políticas aos interesses do Estado soviético. Essas opções foram, pelo menos parcialmente, apresentadas. Elas não assumiram a forma de discussões pacíficas, mas de confrontos cruéis.

Os perdedores dessas lutas não estavam errados. Porque, se o desejo é realizar a contabilidade macabra das revoluções, avalia-se com mais dificuldade o custo de revoluções abortadas ou esmagadas: a não revolução alemã de 1918-1923 e a derrotada revolução espanhola de 1937 não deixam de ter relação com a vitória do nazismo e os desastres da Segunda Guerra Mundial.

Para estabelecer responsabilidades reais, periodizar a história em torno das principais alternativas políticas, esse é o fio que deve ser retomado e reexaminado. Falar simplesmente de uma revolução prematura é, ao contrário, enunciar uma sentença de tribunal histórico, em vez de apreender a lógica interna do conflito e as políticas que nele se confrontaram. Pois derrotas não são provas de erro mais do que vitórias são provas da verdade:

Se o sucesso é reputado como inocência; se, corrompendo até a posteridade, ele a carregava com suas correntes; se, futura escrava, nascida de um passado escravo, essa posteridade subornada se tornasse cúmplice de qualquer um que tivesse triunfado, onde estaria o direito, onde estaria o preço dos sacrifícios? O bem e o mal não sendo mais que relativos, toda a moralidade seria apagada das ações humanas.(40)

Se não há julgamento final na história, é importante que se rastreie passo a passo, antes de cada grande escolha, cada grande bifurcação, a trilha de outra história possível. É isso que preserva a inteligibilidade do passado e permite que lições sejam aprendidas para o futuro.

O que abalou o mundo em dez dias não pode ser apagado. A promessa de humanidade, universalidade e emancipação que emergiu do fogo efêmero do evento está "demasiadamente mesclada com os interesses da humanidade" para que seja esquecida. Depositários e responsáveis ​​por um legado que o conformismo ameaça, temos a tarefa de suscitar as circunstâncias nas quais ele pode ser "recolocado na memória".


Notas de rodapé:

(1) François Furet, Le Passé d’une illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle, Paris: Callmann-Lévy, 1995. (retornar ao texto)

(2) Obra coletiva sob a direção de Stéphane Courtois, Le Livre noir du communisme: crimes, terreur, répression, Paris: Callmann-Lévy, 1997. (retornar ao texto)

(3) Referência à célebre frase de abertura do Manifesto comunista: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo” (Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto comunista, tradução de Álvaro Pina, São Paulo: Boitempo, [1848] 1998, p. 39). (N. T.) (retornar ao texto)

(4) A edição originalmente citada pelo autor é: Emmanuel Kant, Le Conflit des facultés en trois sections, Paris: Vrin, [1798] 1988 (Bibliothèque des textes philosophiques). A edição aqui citada é: Emmanuel Kant, O conflito das faculdades, tradução de Artur Mourão, Covilhã: Universidade da Beira, [1798] 2008, p. 108 [grafia revisada]. (N. T.) (retornar ao texto)

(5) Mikhail Guefter, "Staline est mort hier", L'Homme et la société, 2-3, 1987. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(6) Jean-Marie Le Pen (Trinité-sur-Mer, 20 de junho de 1928), político francês de extrema-direita. Um dos fundadores do partido Frente Nacional (que em 2018 passou a chamar-se Reunião Nacional), foi várias vezes condenado pela Justiça por declarações de cunho racista, xenofóbico e antissemita. Em 1997, quando Bensaïd escreveu este artigo, era o principal nome da extrema-direita francesa. (N. T.) (retornar ao texto)

(7) Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, volume II, "Imperialismo", Paris: Seuil, 1984 (reedição). (retornar ao texto)

(8) A Guerra da Vendeia foi um levante popular contra o governo republicano que se iniciou em 10 de março de 1793. O estopim foi o recrutamento em massa comandado pela Guarda Nacional para a guerra contra as monarquias europeias que ameaçavam a França. De base camponesa e católica, fez parte de sublevações conhecidas como Guerras do Oeste, em que a população de localidades dessa região da França insurgiu-se contra o governo republicano, que reprimiu violentamente essas revoltas. (N. T.) (retornar ao texto)

(9) Terror branco, no âmbito da Revolução Francesa, é o nome dado a ataques feitos por monarquistas contra apoiadores da Revolução e da República. “Intervenção coligada” refere-se às alianças feitas, logo após a Revolução Francesa, entre monarquias europeias, como a Prússia, Áustria e Inglaterra, para combater militarmente a França republicana. (N. T.) (retornar ao texto)

(10) Libération, 6 de novembro. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(11) Le Figaro, 5 de novembro. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(12) Anne Kriegel, nascida Anne Becker (Paris, 1926 – 1995), foi uma historiadora francesa e influente militante comunista. Participou da Resistência Francesa contra a ocupação nazista e, logo após a Segunda Guerra Mundial, converteu-se ao comunismo, passando a militar no Partido Comunista Francês, tendo nele, entre outras tarefas, a de zelar pela observância da ortodoxia stalinista por parte de seus membros. Ao longo da Guerra Fria, vai se convertendo à direita, tornando-se progressivamente mais e mais crítica do comunismo. Em 1991, publica seu livro de memórias Ce que j’ai cru comprendre [O que eu pensava que compreendia] (Paris: Robert Laffont), em que faz sua autocrítica como ex-militante comunista. (retornar ao texto)

(13) Em janeiro de 1905, trabalhadores de São Petersburgo organizaram-se para apresentar uma série de reivindicações ao czar, tanto referentes à obtenção de melhores condições de vida como de liberdades civis. O padre da Igreja ortodoxa Gregori Gapone, conhecido como papa Gapone, redigiu essas reivindicações, e, em 22 de janeiro, os trabalhadores seguiram em marcha até o Palácio de Inverno do governo esperando ser recebidos pelo czar, que, no entanto, ordenou que a guarda do palácio atirasse contra a multidão. Os trabalhadores foram massacrados, e esse dia ficou conhecido como Domingo Sangrento. (N. T.) (retornar ao texto)

(14) Leon Trotski, Histoire de la Révolution russe, Paris: Points-Seuil, 1967. (retornar ao texto)

(15) A palavra de ordem “paz e terra” entre a população russa na época resumia a demanda popular pela saída do país da Primeira Guerra Mundial e a distribuição de terras. (N. T.) (retornar ao texto)

(16) John Reed, Dix jours qui ébranlèrent le monde, Paris: Seuil, 1996 (reedição). (retornar ao texto)

(17) Obra coletiva, La Révolution d’Octobre et le mouvement ouvrier européen, Paris: EDI, 1967. (retornar ao texto)

(18) Marc Ferro, ver principalmente: La révolution de 1917, Paris: Albin Michel, 1997, e Naissance et effondrement du régime communiste en Russie, Paris: Le Livre de poche, 1997. (retornar ao texto)

(19) Polícias políticas. (retornar ao texto)

(20) Em espanhol no original: golpe militar. (N. T.) (retornar ao texto)

(21) Léon Trotski, Staline, Paris: Grasset, 1949. (retornar ao texto)

(22) Ver Moshe Lewin, Le Dernier Combat de Lénine, Paris: Minuit, 1979. (retornar ao texto)

(23) Moshe Lewin, Russia, URSS, Russia, Londres, 1995. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(24) Marc Ferro, Des soviets au communisme bureaucratique, Paris: « Archives »-Gallimard, 1980. (retornar ao texto)

(25) Revolta de marinheiros na base naval de Kronstadt, ocorrida no início de março de 1921. Os marinheiros exigiam a autonomia dos sovietes e liberdades econômicas para camponeses e artesãos, entre outras reivindicações, mas foram reprimidos pelo governo bolchevique. (N. T.) (retornar ao texto)

(26) Philippe Lacoue-Labarthe, revista Lignes, n° 31, mai 1997. (retornar ao texto)

(27) Leon Trotski, La Révolution trahie, Paris: Minuit, 1973. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(28) Rosa Luxemburgo, La Révolution russe, Paris: La Découverte, Pequena Coleção Maspero, 1969. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(29) Partido Comunista Francês. (N. T.) (retornar ao texto)

(30) Alfred Rosmer, Moscou sous Lénine, Paris: La Découverte, 1970, Pequena Coleção Maspero; Marcel Liebman, Le Léninisme sous Lénine, Paris: Seuil 1973, 2 tomos ; Pierre Broué, Le Parti bolchevique, Paris: Minuit, 1972 ; Boris Souvarine, Staline, visão histórica do bolchevismo, edição revista, Paris: Lebovici, 1985; Leon Trotski, Staline, op. cit. (retornar ao texto)

(31) Nicolas Werth, Le Livre noir du communisme, op. cit. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(32) Varlam Chalamov, Les Années vingt, Paris: Verdier, 1997. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(33) Nicolas Werth, op. cit. (retornar ao texto)

(34) Partido Operário de Unificação Marxista. (N. T.) (retornar ao texto)

(35) François René, visconde de Chateaubriand, Mémoires d’Outre-Tombe, Paris: Garnier-Flammarion. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(36) Ibid. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(37) Moshe Lewin, La Formation du système soviétique: essai sur l’histoire sociale de la Russie dans l’entre-deux-guerres, Paris: Gallimard, 1987. (retornar ao texto)

(38) Karl Kautsky, Von der Demokratie zur Staatsktaverei, 1921, citado por Karl Radek em Les Voies de la Révolution russe, Paris: EDI, 1972, p. 39. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(39) Mikhail Guefter, op. cit. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

(40) François René, visconde de Chateaubriand, op. cit. [N. T.: tradução nossa.] (retornar ao texto)

Inclusão: