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Primeira Edição: Excertos do livro Marx, o Intempestivo, publicado pelas Edições Combate. https://combate.info/?product=marx-o-intempestivo
Fonte: https://www.esquerda.net/dossier/tres-criticas-de-marx/54627
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Não se trata de opor um Marx original e autêntico às suas imitações, nem de restabelecer uma verdade há muito confiscada, mas de sacudir o sono pesado das ortodoxias. Uma obra tão múltipla vive da diversidade e dos contrastes das suas interpretações. A pluralidade contraditória dos «marxismos» instituídos encontra-se inscrita na indecidibilidade relativa de um texto que liga indissoluvelmente a decifragem crítica dos hieróglifos sociais e a subversão prática da ordem estabelecida. Relevando uma voz crítica direta, uma voz política «sempre excessiva, já que o excesso é a sua única medida», e uma voz indireta do discurso científico, Maurice Blanchot nota que «a disparidade preserva o conjunto» destes discursos: eles não são justapostos, mas entrelaçados, misturados. A diversidade dos registos não se confunde com o ecletismo vulgar e «Marx não vive confortavelmente com essa pluralidade de linguagens que se chocam e se dissociam em si próprio».
Dividido entre o seu fascínio pelo modelo físico da ciência positiva e a sua fidelidade à «ciência alemã», entre o apelo das sereias do progresso e a recusa dos seus paraísos artificiais, Marx discute com a sua própria sombra e debate-se com os seus próprios espectros. Atravessado por contradições não resolvidas, o seu pensamento não é, certamente, homogéneo de uma ponta à outra. O que não significa que seja incoerente ou inconsistente. O núcleo do seu programa de investigação permite, sempre, interrogar o nosso universo na perspetiva de mudar o mundo. Não se coaduna com colagens ecléticas ou bricolages mediáticos. Não uma doutrina, portanto, mas a teoria de uma prática suscetível de várias leituras. Não quaisquer leituras. Nem tudo é permitido em nome da livre-interpretação, nem tudo se vale. O texto e o contexto definem os limites, delimitam um campo de variantes compatíveis com as suas próprias aporias, e invalidam por conseguinte o que releva do contrassenso.
Por isso a teoria de Marx pode ser definida quer como uma filosofia da história, do seu sentido, do seu término; quer como uma sociologia das classes e como um método de classificação; quer, finalmente, como um ensaio de economia científica. Nenhuma destas teses resiste a uma leitura rigorosa. Se não é facil dizer o que é a teoria de Marx, é possível, pelo menos, esclarecer aquilo que ela não é.
Não é uma filosofia especulativa da história. Desconstrução declarada da História universal, ela abre caminho a uma história que não promete qualquer salvação, que não vem forçosamente reparar a injustiça, não nos faz sequer arrepiar. Esta «história profana» aparece daí em diante como um devir incerto, determinado conjuntamente pela luta e pela necessidade. Não se trata, portanto, de fundar uma nova filosofia da história de sentido único, mas de explorar «uma nova maneira de escrever história», de que os Grundrisse propõem o alfabeto. O Capital implementa assim, indissociavelmente, uma nova representação da história e uma organização conceptual do tempo como relação social: ciclos e rotações, ritmos e crises, momentos e contratempos estratégicos. A antiga filosofia da história extingue-se, deste modo, na crítica do fetichismo mercantil, por um lado, e na subversão política da ordem estabelecida, por outro lado.
A teoria de Marx também não é uma sociologia empírica das classes. Contra a racionalidade positiva, que ordena e classifica, que inventaria e repertoria, que apazigua e pacifica, ela apreende a dinâmica do conflito social e torna inteligível a fantasmagoria mercantil. Não que os diversos antagonismos (sexuais, hierárquicos, nacionais) sejam redutíveis à relação de classe. A diagonal da frente de classe liga-os entre si e condiciona-os sem os confundir. Nesta perspetiva, o outro (o estrangeiro pela sua religião, pelas suas tradições, pela sua origem, pela sua capela ou pelo seu bairro) pode sempre tornar-se um outro eu, num processo de universalização real. É por essa razão que as classes não são, nunca, objetos ou categorias de classificação sociológica, mas a própria expressão do devir histórico.
Por último, a teoria de Marx não é uma ciência positiva da economia, conforme ao paradigma então dominante da física clássica. Contemporânea das ciências da evolução e dos progressos da termodinâmica, ela resiste à racionalidade parcelar e unilateral da divisão do trabalho científico. Tanto mais quanto a estranha coreografia das mercadorias e das moedas a orienta para lógicas ainda desconhecidas dos sistemas e da informação. Se, por um lado, seria anacrónico considerá-la pioneira consciente da epistemologia mais recente, por outro lado é claro que o comportamento irregular do capital a conduz para caminhos inexplorados. Marx encontra aí, paradoxalmente, as ambições sintéticas da velha metafísica, que ele reivindica explicitamente como «ciência alemã» (deutsche Wissenschaft). Essa tradição ressuscitada permite-lhe abordar as lógicas não-lineares, as leis tendenciais, as necessidades condicionais do que Gramsci designara subtilmente como «uma nova imanência».
Estas três críticas – a da razão histórica, a da razão económica e a da positividade científica – correspondem-se e completam-se. Elas inscrevem-se perfeitamente no âmbito das interrogações atuais sobre o fim da história e a representação do tempo, sobre a relação da luta de classes com os outros modos de conflitualidade, sobre o destino das ciências duras, corroídas pelas incertezas das ciências narrativas. Nem filosofia da história, nem sociologia de classes, nem sistema de economia, o que é então a teoria de Marx? Digamos, a título provisório: não é um sistema doutrinário, mas uma teoria crítica da luta social e da mudança do mundo.
Ao introduzir a história na economia da mesma forma que Hegel temporaliza a lógica, Marx imagina uma economia rodopiante, cujos círculos dos círculos e figuras vertiginosas fascinam hoje os físicos do caos: «Efetivamente, os ciclos económicos, aproximadamente periódicos, foram observados. Em níveis ainda mais elevados do desenvolvimento tecnológico, é possível ter uma sobreposição de dois ou três níveis suficientemente elevados de desenvolvimento, devendo existir uma economia turbulenta com variações irregulares e uma dependência sensitiva das condições iniciais. É razoável afirmar que vivemos agora numa tal economia». De forma que, «se tentarmos fazer uma análise mais quantitativa, tropeçamos imediatamente no facto de que os ciclos e outras flutuações da economia têm lugar sobre um fundo geral de crescimento»(1). N’O Capital, a organização conceptual do tempo põe precisamente em evidência esta sobreposição de diferentes periodicidades (tempo de trabalho, distinto do tempo de produção, ciclos assíncronos da produção, da circulação, da reprodução, rotações articuladas de capital fixo e capital circulante). Ela torna inteligíveis as variações irregulares duma economia turbulenta do desequilíbrio, que contradiz permanentemente as quantificações provisórias do equilíbrio, sob o efeito retroativo da determinação temporal do valor pelos preços.
A economia dinâmica de Marx apresenta-se já como um sistema instável, sensível às condições iniciais. Ela anuncia, nos seus próprios limites, a teoria geral dos sistemas, a ecodinâmica, o pensamento ecológico. O capital gira sobre si mesmo, fragmenta-se em torções e flexões. As relações sociais exibem nessas formas fragmentadas a sua coreografia surpreendente(2). Estas razões caóticas são as da lógica dialética d’O Capital. Como as «forças diretrizes» de Claude Bernard, as suas leis tendenciais reabilitam as causalidades múltiplas (funcionais, estruturais, recíprocas, morfológicas, fechadas, acidentais, metonímicas, simbólicas) durante muito tempo desdenhadas unicamente em prol da causalidade mecânica. As curvas de preços enrolam-se em torno de um valor virtual. A igualização do valor de mercado para alcançar o valor real «é obtida pelas oscilações constantes do primeiro». Diferentemente das leis abstratas da física clássica, a lei do valor impõe-se como «ligação interna» e «estrutura interna oculta». «Ordem da desordem», a lei do valor rege assim, do interior, do jogo das aparências, como uma espécie de atractor estranho que controlaria os desvios do mercado. Nos pontos singulares das bifurcações abertas à esperança aplica-se a escolha estratégica, a mira do arqueiro hábil a alcançar as realidades possíveis em pleno voo.
A querela, muitas vezes obscura, em torno da teleologia ganha, assim, nova luz. Marx saudou calorosamente o «golpe mortal» infligido por Darwin «à teleologia nas ciências da natureza». Este entusiasmo é coerente com a sua admiração por Espinosa, cuja filosofia da substância exclui qualquer recurso às causas finais: «A natureza não tem nenhum fim que lhe esteja prescrito e todas as causas finais não são mais que ficções dos homens».
O que Marx apoia, em Darwin, é o combate contra a velha teleologia religiosa, que atribui à história do mundo um destino e um fim providenciais. Mas um comportamento sistémico autoregulado, condicionado e orientado pela estabilidade de um estado final, pode ser chamada teleológico num sentido completamente diferente. A teoria dos sistemas traz nova luz a uma dificuldade antiga. A «ciência alemã» nunca renunciou à teleologia em benefício exclusivo da causalidade mecânica. Kant reivindica esta teleologia como estrita «finalidade interna». Schelling evoca a natureza como «um todo organizado a partir de si mesmo e organizando-se a si mesmo». A doutrina hegeliana do conceito desenvolve a teleologia da vida: «A teleologia encontra-se, por excelência, em oposição ao mecanicismo, no qual a determinidade colocada no objeto é essencialmente – na medida em que é exterior –, uma determinidade em que não se manifesta nenhuma outra determinação […]. Podemos dizer da atividade teleológica que, nela, o fim é o começo, a consequência o fundamento, o efeito a causa, que ela é um devir do que deveio […].» Concebida como ação orientada para um objetivo, inscrita na imanência dos processos reais, trata-se agora de uma teleologia laicizada, cujo conteúdo é renovado pelos contributos da ciência contemporânea sobre a auto-organização, a regulação em círculo e os controlos homeostáticos.
Em Marx, a relação dos preços com o valor, o papel da moeda como pressuposto da própria circulação, o papel do mercado como pressuposto do trabalho abstrato, são outros tantos sinais da passagem do ponto de vista mecanicista ao ponto de vista teleológico, assim compreendido. O capital enquanto sujeito, a troca orgânica, a autodeterminação do valor, surgem como momentos de uma totalidade cuja dinâmica rigorosamente imanente não deixa subsistir qualquer exterioridade(3). Da mesma maneira, o lucro médio do capital individual não é imediatamente determinado pelo trabalho excedente extraído diretamente da produção, mas a posteriori, pela quantidade total de trabalho excedente extorquido pelo capital total. O capital individual recebe, assim, uma parte proporcional à que detém no capital total.
Deste ponto de vista, a ordem do capital é teleológica.
Ao eliminar as causas finais (bem como os conceitos de organização, de totalidade, de diretividade), o paradigma determinista clássico foi extraordinariamente fecundo para as ciências físicas. O vitalismo, pelo contrário, continuava a ser suspeito de nostalgias teleológicas com laivos místicos. Inerente às ciências da vida, essa tentação explicava no entanto, à sua maneira, o funcionamento retroativo e os efeitos de reciprocidade dos sistemas. A causalidade mecânica, de sentido único, não representa os comportamentos adaptativos regulados pela procura de um estado final. A teleologia reaparece assim, não como o cumprimento de um destino ou como a perseguição de um objetivo fixado exteriormente, mas como autoregulação imanente à procura de um estado estacionário. Embora a interpretação dos acontecimentos, à luz deste estado final, seja propícia às fantasmagorias religiosas do melhor dos mundos possíveis, essa finalidade pode tomar um sentido diferente do antropomórfico. Indício de uma “dependência em relação ao futuro», ela significa então um efeito de «causalidade inversa», cujas condições futuras determinam a orientação do processo.
Considerando o capital como uma relação social dinâmica em desequilíbrio crónico, Marx vislumbra, sem poder ainda decifrá-los, «os vestígios do caos sobre a areia do tempo»(4). Num caminho de preenchimentos e singularidades históricas inacessíveis ao aperfeiçoamento exclusivo do cálculo, a sua ciência é, em primeiro lugar, uma crítica das formas de mercado.
Se já não se trata apenas de interpretar o mundo, trata-se de quê?
De mudá-lo, sem dúvida.
Por vezes, Marx parece anunciar o devir ciência da filosofia, como se a certeza positiva das Luzes devesse prevalecer definitivamente sobre as obscuras incertezas hermenêuticas. O seu prefácio d’O Capital começa, assim, por prestar uma sentida homenagem às leis naturais da física, mas termina sublinhando o caráter polémico do conhecimento enquanto produção social: «Sobre o terreno da economia política, a investigação científica livre encontra muitos mais inimigos que noutros campos de exploração.» Prisioneira das servidões terrenas, esta investigação livre, conforme às imagens heroicizadas da ciência e dos sábios, permanece trivialmente sobre «o campo de batalha», onde encontra «as paixões mais vivas, as mais mesquinhas e as mais odiosas do coração humano, todas as fúrias do interesse privado»(5). Científica em certo sentido e em certa medida, a crítica da economia política é assim condenada a enfrentar as ilusões ideológicas da opinião, sem poder fugir por completo ao engodo do fetichismo. Ela evoca e chama as subtilezas vindouras de «mecânica orgânica», o conhecimento ondulante de uma desordem ordenada, em suma, uma outra forma de fazer ciência.
Confrontado com os movimentos descontínuos e irregulares, em vez de se resignar e de renunciar a legiferar, o pensamento consegue agora, ao preço de um esforço colossal, conceber conjuntamente a ordem e a desordem, em vez de deixa-las excluírem-se mutuamente. A desordem é sempre a perturbação de uma ordem determinada, tal como a ordem é sempre o regulador de uma desordem determinada. Os paradoxos da lei do valor ganham, assim, todo o seu sentido.
Notas de rodapé:
(1) David Ruelle, Hasard e chaos, Paris, Odile Jacob, 1991, p.110. (retornar ao texto)
(2) «As turbulências, os deslizamentos dos ciclones sobre os anticiclones, como sobre o mapa meteorológico. Os nós de palha. Um conjunto de relações. As nuvens de anjos que passam. Uma vez mais, a dança das chamas» (Michel Serres, Éclaircissements, Paris, Flammarion, «Champs», p.180). (retornar ao texto)
(3) Gramsci percebeu com acuidade esta ambivalência da teleologia: «não haverá na palavra e na conceção da missão histórica uma raiz teleológica? De facto, em muitos casos, ela toma um valor equívoco e místico. Mas, noutros casos, tem uma significação que, após o conceito kantiano de teleologia, pode ser apoiada e justificado pela filosofia da praxis». (Cahier de prison 11, op. cit., p.224). (retornar ao texto)
(4) Ian Stewart, Dieu joue-t-il aux dès?, op. cit. (retornar ao texto)
(5) Karl Marx, prefácio à primeira edição d’O Capital, op.cit.. (retornar ao texto)