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Primeira Edição: Rouge nº 1418
Fonte: https://teoriamarxista.wixsite.com/blog-mri/post/o-ultimo-combate-de-trotski-daniel-bensaid
Tradução: Ana Paula Vitorasse - da versão disponível em http://danielbensaid.org/El-ultimo-combate-de-Trotski?lang=fr
Revisão: Pedro Barbosa
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
O mundo se transforma. O antigo bloco Stálinista já não é nada além de um campo em ruínas. Se esvaem as ilusões. Porém o que realmente espreita o movimento operário é a debandada da memória. Daí o interesse por uma continuidade de prática e de programa para se orientar nas grandes mudanças que estão no porvir.
Desde a formação da Oposição de Esquerdas até a fundação, em 1938, da IV Internacional, o combate de Trótski contra a degeneração Stálinista centrou-se na defesa do internacionalismo revolucionário frente à ascensão do patriotismo e da razão de Estado. Meio século mais tarde, sua aposta histórica aparece com toda sua amplitude.
Por um lado, a internacionalização da produção, dos intercâmbios, da divisão do trabalho, da informação, dos serviços... tem progredido a passos gigantes. Um espirro na Bolsa de Tóquio tem efeitos imediatos na de Nova Iorque. A burguesia e as multinacionais estão dotadas de um vasto mecanismo de concertação e de ação monetária, diplomática e militar, na qual se combinam cúpulas, pactos (OTAN, OTASE), organismos financeiros (FMI, Banco Mundial)...
Por outro lado, o movimento operário está cada vez mais fragmentado e parcelado no quadro dos Estados nacionais. Enquanto há mais de um século estava na vanguarda e se antecipava na história fundando a 1ª Internacional, hoje está atrasado com relação às multinacionais e os governos na hora de organizar sua resposta do projeto de união econômica e monetária, ainda que somente seja a nível europeu. O custo deste atraso é enorme e duradouro.
O internacionalismo também foi desfigurado. Em primeiro lugar, pela estreita colaboração dos partidos social-democratas com as burguesias imperialistas, seu apoio ativo às políticas coloniais e, ainda hoje, à exploração e pilhagem do Terceiro Mundo. Pela subsequente subordinação do movimento comunista aos interesses de uma burocracia de Estado Stálinista e a mãe pátria do socialismo real, fosse soviética ou chinesa. Os “amigos” da URSS, da China e da Albânia substituíram em todo o mundo revolucionários colaborando em plano de igualdade e de respeito mútuos. Finalmente, a degeneração burocrática das revoluções vitoriosas levou à sua conclusão lógica: os conflitos sino-soviéticos, sino-vietnamitas e a guerra entre o Vietnam e o Camboja.
No entanto, os acontecimentos atuais põem novamente em evidência a atualidade do internacionalismo e seu papel insubstituível. Quantos colegas latinoamericanos ou asiáticos, autenticamente revolucionários, não nos reprovaram por criticar irresponsavelmente o “campo socialista” que, apesar de seus defeitos, constituía a seus olhos, na relação de forças mundiais existente, uma retaguarda logística, política e material indispensável.
No início do levante operário polonês de 1980-1981, um velho amigo chileno nos dizia: “O que está acontecendo com a Polônia é formidável. É uma demonstração manifesta da realidade da burocracia e das reivindicações de um movimento social independente. Porém como não tem nenhuma possibilidade de ganhar, de estabelecer nas fronteiras da URSS um socialismo democrático, é melhor para nós que os soviéticos restabeleçam a ordem o mais rápido possível”.
Cinismo, falso realismo, dupla consciência?... Debate mil vezes repetido. Explicamos que esse pretenso realismo era míope. Que as sociedades burocráticas do Leste estavam minadas por contradições bem reais e que tais contradições acabariam estourando de algum modo. Que se recusar a se preparar para aquilo levava, na melhor das hipóteses, a uma atitude inconsequente: a longo prazo, os revolucionários do Terceiro Mundo só poderiam contar com a solidariedade dos povos, com a comunidade do combate de classes, com o internacionalismo consciente, e não com a lealdade diplomática de Estados pútridos até a medula, nem com a solidez de qualquer “campo socialista”. Na pior das hipóteses, essa “realpolitik” os conduzia ao campo dos opressores, a ponto de apoiar a “normalização” de Praga ou Varsóvia, não por amor à burocracia, mas em função de um anti-imperialismo mal compreendido, que, em nome da luta contra o inimigo principal, sacrificava seus únicos aliados naturais aos punhais do inimigo secundário. Esta discussão chega agora à sua conclusão.
Donde emerge, não um renascimento espontâneo do internacionalismo de massas, mas uma nova onda de conflitos exasperados, de fanatismo religiosos, de integrismos étnicos e de nacionalismos rançosos e recozidos. Há nisso uma razão política profunda. Não se perde impunemente uma formidável esperança, um formidável impulso de confraternização dos povos como o que pôde suscitar a Revolução de Outubro. A história não volta sobre seus passos, não abre parênteses com relação a um caminho preestabelecido. Suas experiências e improvisações carregam todo o peso de seus desastres.
E este século tem sido particularmente fecundo de catástrofes. Com aparelhos políticos e maquinarias militares cada vez mais monstruosas, o enfrentamento entre Estados, blocos e campos tem feito retroceder a lógica das lutas de classes. O respectivo patriotismo das burocracias social-democratas e Stálinistas infectou de forma duradoura ao movimento operário. Não se apagarão com um pedaço de esponja mágica os efeitos profundos das guerras “patrióticas”, das guerras coloniais controladas ou da complacẽncia diante da xenofobia contra os imigrantes (histórias de direito de voto e de “bulldozers”).
Há evidentemente uma razão social, que apenas uma visão angelical poderia ignorar. Os explorados nunca se uniram espontaneamente. Podem se juntar em uma luta comum, porém ao mesmo tempo a competição no mercado de trabalho não cessa de colocá-los uns contra os outros. O que é certo à escala de um país o é, a fortiori, a escala nacional. Não somente por meio da utilização de políticas migratórias, mas de maneira ainda mais simples. Nos países europeus lutamos contra os efeitos da crise, as políticas de austeridade, o desemprego... Porém, por enquanto, estes efeitos estão amortizados por conquistas passadas do movimento operário (seguridade social, subsídios de desemprego).
As burguesias só puderam gerar seus equilíbrios transferindo os custos aos mais debilitados (Terceiro Mundo e países do Leste). A social-democracia conseguiu seus êxitos eleitorais com essa imagem de paladina do mal menor. Mas a base material destes novos compromissos sociais é uma concentração de riquezas, de tecnologias de ponta, de capitalização de mercado sem precedentes nos sete países mais ricos, e uma pilhagem crescente dos mais pobres: depois de uma década, repetimos, o Terceiro Mundo é um exportador líquido de capitais em prol das metrópoles.
Nestas condições, não basta que caia o Muro de Berlim e que se desmoronem com ele as ilusões dos revolucionários asiáticos ou latino americanos sobre a realidade e o verdadeiro papel do “campo socialista” para que eles reencontrem o caminho do internacionalismo militante. O problema se coloca evidentemente nas primeiras tentativas, nos primeiros intentos de reflexão e reorganização (como o encontro dos partidos da esquerda latinoamericana, em São Paulo, no último julho).
Porém para chegar a uma solução positiva os revolucionários latino americanos, por exemplo, devem poder reencontrar um interesse e uma disponibilidade internacionalistas de outra amplitude no movimento operário da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e do Japão, embora frequentemente seus interlocutores sejam os órgãos governamentais e para-governamentais geridos pela social-democracia. Devem finalmente poder se reunir, não com os burocratas governantes, mas com os militantes de correntes socialistas e democráticas da Europa do Leste. Porém estas correntes não são hoje mais que débeis fios de água. A troca de ideias com elas é indispensável e pode ser fecunda, porém não pode compensar a curto prazo a perda de ajuda material, ainda que fosse limitada e condicionada, que podia dar, por exemplo, a Alemanha Oriental.
Certamente, existem as sementes para uma renovação internacionalista. Tanto a juventude como entre os trabalhadores há impulsos de generosidade e solidariedade que se manifestam de mil maneiras, inclusive nas campanhas contra a dívida do Terceiro Mundo, contra a guerra e a corrida armamentista, pelas grandes causas ecologistas e inclusive nas iniciativas a favor das populações romanas ou das vítimas de catástrofes. Mas esta disponibilidade segue sendo uma aposta. Pode ser canalizada e neutralizada pelas instituições de caridade ou se desenvolver no sentido de uma maior tomada de consciência dos fatores de miséria no mundo. A reconstrução dessa consciência internacionalista é também um combate.
Mesmo ao lado revolucionários convictos e internacionalistas autênticos, um obstáculo se mantém sobre esta via: o balanço das internacionais passadas. Marx dissolveu a 1ª, após a derrota da Comuna de Paris, antes de vê-la degenerar em uma seita dividida por disputas sem verificação prática. A 2ª se converteu na caricatura estatista que conhecemos. A 3ª foi dispensada por Stálin, em 1943, para poder negociar com toda a liberdade de Estado a Estado, a reorganização do mundo. A 4ª, fundada nas profundezas da derrota, tem mantido uma preciosa continuidade, mas nunca pôde se transformar em internacional de massas.
Para além da constatação, os camaradas que recusam a atualidade de uma internacional apresentam dois tipos de justificativas. Uns afirmam que seriam a favor de uma internacional de massas, mas que as condições imediatas para sua construção não existem, [e] uma internacional minoritária teria necessariamente um efeito perverso e uma lógica de sectária. Constatam, não sem razão, que a nebulosa de correntes que se reivindicam do trotskismo e da 4ª Internacional tem produzido internacionalmente um forte contingente de seitas delirantes, cujas práticas e concepções organizativas frequentemente não deixam de invejar (em modelo reduzido) os partidos stalinistas mais endurecidos. Outros remetem ao descarregamento de utopias derrotadas a ideia mesma de uma internacional, ideia certamente generosa e entusiasmante, inocente como o movimento operário em seu nascimento, mas cuja história demonstrou a inanidade prática. Nos labirintos da dúvida, escolheremos sempre o fio dos princípios. É aqui que nós contamos com “o último combate de Trótski”.(1)
Para expressar um projeto de emancipação universal, os trabalhadores têm, em suas condições de exploração, a potencialidade de ver o mundo ao mesmo tempo com olhos do proletariado chileno em Santiago, nicaraguense em Manágua, polonês de Gdansk, chinês, etc... Tal potencialidade só pode vir a ser efetiva através da construção de um movimento operário internacional, sindical e político. Se é verdade que a existência determina a consciência, o internacionalismo exige uma internacional.
Retomemos o exemplo de nosso amigo chileno partidário da “realpolitik”: seu realismo lhe ditou sacrificar os interesses do trabalhador polonês em prol daquilo que ele acreditava ser seu interesse próprio como revolucionário chileno; ao deixar de cumprir seu dever internacionalista, na verdade, abriu caminho para a reação clerical na Polônia e para o patriotismo polonês. Não podemos jurar, mas podemos razoavelmente imaginar que a trajetória do Solidarnosc e de suas direções teria sido outra se eles tivessem se encontrado com um movimento internacionalista potente. Não se pode abusar dos princípios. Restam poucos.
É por esta razão que posicionar-se de acordo com os princípios é tão caro. É por isso que o combate de Trótski se articula em torno do combate por uma nova Internacional desde que ele considerou irrevogavelmente falida a Comintern [Internacional Comunista] stalinizada.
Desde 1933 até a conferência de fundação de 1938, este será o centro de sua atividade, febril e obsessiva, no acúmulo de derrotas e no aproximar da guerra. A abordagem, portanto, é clara. Frequentemente reprovou-se a Trótski por sua precipitação. No entanto, durante estes cinco anos, ele conduziu de frente dois esforços. Um esforço de clarificação e um esforço de reagrupamento.
Por um lado, trata-se de assentar as bases programáticas de uma nova internacional. Elas não podem consistir em uma doutrina, uma visão geral do mundo, mas somente nas mais importantes lições assimiladas pelo movimento operário internacional. Para ele, trata-se de enriquecer o patrimônio dos primeiros Congressos da Internacional Comunista com as experiências cruciais que constituíram a derrota da segunda revolução chinesa (discussão sobre a teoria da revolução permanente), a degeneração burocrática da URSS (programa da revolução anti-burocrática) e a vitória do nazismo na Alemanha (reivindicações democráticas e frente única operária).
Ao mesmo tempo, multiplica os passos para reagrupar aos revolucionários saídos da social-democracia ou de partidos stalinistas, [com] as propostas de conferências, as cartas abertas. Seu projeto não é o de uma internacional “trotskista”. Ele está pronto para imaginar uma internacional pluralista, mas sob duas condições:
É somente em 1938, diante da iminência da segunda guerra mundial, e depois de ter esgotado esses passos anteriores, que a 4ª Internacional é fundada, em condições radicalmente distintas com relação às internacionais precedentes. Cada uma das três primeiras havia coincidido com uma fase de ascensão e de organização, com uma vitória do movimento operário. Cada uma delas contava, em seu início, com a existência de ao menos uma seção de massas (inglesa para a 1ª, alemã para a 2ª, soviética para 3ª). A 4ª nasceu, pelo contrário, da derrota e contava com o principal das suas forças no exílio, nos campos stalinistas ou nos campos nazistas. Alguns historiadores e militantes têm chegado à conclusão de que a fundação da IV Internacional era vinculada, por Trótski, ao prognóstico segundo o qual a Segunda Guerra Mundial, que ele previu, levaria à queda do stalinismo e a um progresso da revolução mundial tão impetuoso como aquele que se produziu imediatamente após a Primeira Guerra Mundial. Neste caso, se veria ressurgir na URSS a corrente bolchevique revolucionária, sem que sua continuidade fosse realmente quebrada por uma ou duas décadas de reação staliniana. Este prognóstico não se verificou. Mas a criação da Internacional derivava de princípios, e não de um prognóstico. Sua existência, a manutenção de um quadro de reflexão programática comum no coração da tormenta, permitiu a seus militantes se orientar, manter o norte, em situações inéditas e imprevistas, enquanto correntes quantitativamente mais importantes antes da guerra desapareceram totalmente.
Os acontecimentos atuais constituem uma nova mudança maior de situação. O meio século transcorrido não constitui um parêntese que está se fechando. A história não se volta sobre seus passos para nos oferecer recomeçar, no momento em que foi interrompida por operações da GPU, o debate entre a Oposição de Esquerdas e os bukharinianos, assim como a queda do Muro de Berlim não nos faz remontar ao tempo, para recomeçar em um bom passo na companhia de Rosa Luxemburgo. O tempo ofuscou muitos mapas e apagou muitos dos pontos de referência. Ao ponto em que a revolução de Outubro já não aparece, na própria URSS, como a experiência fundadora e a origem natural para a refundação de um movimento operário independente.
Aqueles que querem fazer as pazes com as melhores tradições do movimento operário estão em seu direito de questionar tudo. Nestas condições, a 4ª Internacional, tal como é, não aparece como a alternativa natural às direções burocráticas que se desmoronam. Esse poderia ter sido o caso nos anos trinta ou após a guerra: a legitimidade da Revolução Russa operava em linha direta, os atores eram frequentemente os mesmos. Hoje, a reorganização internacional do movimento operário é uma construção infinitamente mais aberta e complexa. Nós mantemos um objetivo, não excessivo, mas certamente ambicioso: a reconstrução, em tempo, de uma Internacional revolucionária de massas.
Nós consideramos a 4ª Internacional nem mais nem menos que um precioso instrumento para esta tarefa. Precioso, pois nada de bom surgirá do método da tabula rasa ou dos contadores a zero. Podemos colocar novas questões, porém as colocamos sempre com uma linguagem anterior. Podemos interrogar o mundo em mutação, porém as próprias questões que se colocam pressupõem uma teoria aberta, disposta a se enriquecer e se autocriticar, mas suficientemente coerente para organizar um diálogo.
Em outras palavras, frente à debandada da memória que espreita o movimento operário, é importante manter uma continuidade de prática e de programa que permita orientar-nos nas vastas recomposições que estão por vir. Ao mesmo tempo, devemos ser capazes de intervir, sem preconceitos nem sectarismo, nos elementos, ainda que limitados e frágeis, de reorganização parcial, a nível nacional ou regional, quer se tratem de mobilizações e atividades comuns de correntes que, ontem, se ignoravam ou brigavam, quer se tratem de trocas de experiências ou de reflexão.
Saibamos ser pacientes. O trauma foi profundo. A recuperação será longa. Ela não pode ser acelerada se não por novos acontecimentos maiores, por novas experiências fundadoras, capazes de resolver claramente as grandes questões e de polarizar as forças hoje dispersas. O futuro depende de nossa capacidade de segurar os dois extremos da corrente, de não perder o fio de uma identidade política e de nos engajarmos comprometermos sem preconceitos nos diálogos que se abrirem. Um caminho estreito, sem dúvidas, entre as tentações seguras da retórica sectária e do travesseiro macio da dúvida sem método. Contrariamente a muitos dos clichês ignorantes ou mal intencionados, o Trótski do combate pela 4ª Internacional não é um megalomaníaco apressado, mas um pedagogo paciente, cuja abordagem importa ser assimilada: “Não sei a qual fase chegará a 4ª Internacional. Ninguém sabe. É possível que devamos entrar de novo em uma Internacional unificada com a 2ª e a 3ª. É impossível considerar o destino da 4ª Internacional independentemente do destino de suas seções nacionais e vice-versa (...). Temos que prever situações sem precedentes na história (...). Se nós considerarmos a 4ª Internacional apenas como uma forma internacional que nos obriga a alojar sociedades independentes propagandistas em todas as condições, nós estamos perdidos. Não, a 4ª Internacional é um programa, uma estratégia, um núcleo de direção internacional. Seu valor deve consistir em uma atitude que não seja demasiado jurídica”.(2)
Rouge nº 1418
Notas de rodapé:
(1) “Os anos de formação da IV”, Daniel Bensaïd. Inprecor n° 65, diciembre de 1988. (retornar ao texto)
(2) Trótski, Œuvres, tomo 8, p. 184 (EDI). (retornar ao texto)