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Primeira Edição: Critique communiste n° 61, março de 1987
Fonte: https://teoriamarxista.wixsite.com/blog-mri/post/nossa-identidade-comunista-daniel-bensaid
Tradução: Giulia Molossi Carneiro - da versão disponível em http://danielbensaid.org/Notre-identite-communiste?lang=fr
Revisão: Pedro Barbosa
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A plataforma de oposição dentro do Partido Comunista(1) constitui um evento para qualquer um que diga estar na luta comunista. Ela afirma claramente a tradição e os ideais do comunismo, em um momento em que este está a ser atacado por todos os lados, sob o pretexto de uma amálgama entre comunismo e estalinismo.
Ela se envolve numa crítica séria à orientação do PCF [Partido Comunista Francês], ao seu regime interno, à relação funcional entre os dois, sem cair num unitarismo sem limites nem princípios, que seria o caminho mais curto para tudo o que o Partido socialista representa.
Ela rejeita firmemente as políticas social-democratas de gestão da crise e aponta para o perigo que a consolidação de um monopólio socialista sobre o movimento de massas e o eleitorado de esquerda representaria para o proletariado deste país. Longe de deter esta dinâmica, uma retirada sectária e denunciatória a favorece: só uma linha unitária permite lutar contra tal evolução, influenciar o PS [Partido Socialista] e seus militantes, reconstruir uma verdadeira perspectiva de mudança.
Finalmente, ela vira as costas às soluções fáceis, que muitos já escolheram: as da negação em nome do falso conflito entre “arcaísmo” e “modernidade”. Temos de enfrentar todos os desafios e enfrentar novos problemas, mas nada de bom será alcançado sem a memória das experiências passadas.
O documento não é completo nem definitivo. Ele não tem essa pretensão. Ele afirma posições, define os marcos e formula questões que precisam ser discutidas em profundidade. Dirigindo-se a “todos os comunistas, membros ou não do PCF”, ele afirma que o comunismo é demasiado importante, tanto para o passado dos militantes que lhe têm muito dedicado, quanto para que o futuro da humanidade, que está ameaçado por catástrofes econômicas, militares ou ecológicas, fique nas mãos da liderança do Partido Comunista: este não pode reivindicar o monopólio de uma causa que tem contribuído tanto para desacreditar.
Dadas as tradições do PCF, a publicação de tal plataforma é um ato cheio de consequências, cujo contexto sublinha o seu possível alcance:
As evoluções subsequentes fazem parte da turbulência da luta de classes e do campo das suas provas. Isto significa que todos nós temos uma responsabilidade nisso.
Estamos convencidos de que o mundo em que vivemos está a caminhar para convulsões brutais. Estamos convencidos de que uma corrente comunista, revolucionária e militante é indispensável para enfrentá-las. Um definhamento da tradição comunista constituiria, para o conjunto dos explorados e oprimidos, uma imensa regressão histórica.
A grande fratura entre reformistas e revolucionários, precipitada pelo teste histórico da Revolução Russa, não foi o resultado de um mal-entendido. Digamo-lo claramente: para nós, não há razão para apagar o Congresso de Tours(2). Mas desde então muita água correu sob a ponte: a defesa do comunismo é agora inseparável da luta intransigente contra o estalinismo e seus efeitos no movimento operário. Se o atual declínio do PCF resultasse na dispersão e desmoralização das forças vitais que ela foi capaz de mobilizar, ou em juntarem-se à socialdemocracia, ao invés de liberar as energias necessárias para a renovação e o renascimento do projeto revolucionário, isso seria uma grave derrota para todos nós.
Porque a aposta é alta, porque a livre discussão faz parte dos valores que pretendemos defender ou reabilitar juntos, sentimos a necessidade de nos engajarmos no diálogo. Que fique claro, antes de mais nada, que estamos a medir a extensão do que hoje nos aproxima.
1. A reivindicação geral do marxismo, do comunismo, da luta de classes, de um projeto revolucionário de transformação da sociedade. Nestes tempos, isto não é pouca coisa, se nos dermos ao trabalho de verificar o significado político destas noções.
2. A afirmação de uma lógica da necessidade contra a do lucro, o que pressupõe uma socialização dos meios de produção e comunicação.
3. A referência à autogestão socialista, como expressão de uma aspiração democrática profunda do movimento de massas, e sua tradução prática: auto-organização nas lutas, pluralismo dentro do movimento operário.
4. Os elementos de resistência à crise, à sua “gestão leal” sob o pretexto de “rigor” ou de “austeridade”; a recusa de se deixar aprisionar no falso dilema da inflação/desemprego, opondo a ele o “direito ao trabalho e ao pleno emprego através da redução maciça do tempo gasto na produção”.
5. A importância estratégica das reivindicações democráticas, no momento em que o aprofundamento da crise coloca sérias ameaças sobre estas conquistas e evidencia o conteúdo social da democracia: o direito ao emprego, ao estudo, à saúde, à habitação, à proteção social...
6. A defesa da igualdade de direitos para os imigrantes e a rejeição intransigente de todas as formas de chauvinismo ou racismo.
7. O reconhecimento da contribuição do feminismo e do movimento de mulheres, como dimensão necessária de qualquer luta de emancipação genuína.
8. A reivindicação de um “novo internacionalismo” que abrace as diferentes frentes da luta de classes em escala planetária: um internacionalismo “nutrido da solidariedade com os povos do Terceiro Mundo que são presas da fome, da dívida e da superexploração; da solidariedade e articulação com as lutas populares nos países capitalistas; da solidariedade com os povos dos países socialistas que lutam sob todas as formas pela democratização de seu sistema econômico, político e social”.
9. Um compromisso resolutamente anti-imperialista, ilustrado pela solidariedade ativa com a revolução nicaraguense, com o povo da África do Sul, com o povo palestino.
10. A declaração de uma “ruptura total” com o estalinismo e “tudo o que dele resultou”: “deportações, julgamentos, medidas administrativas assassinas, crimes, intervenções políticas e militares em países terceiros, sob o pretexto de uma soberania limitada”, o que hoje implica “a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão”.
11. A posição em favor da “dissolução dos blocos e do desarmamento”, bem como o questionamento – ainda que de forma interrogativa – da “mobilização do PCF e de toda a esquerda para a política de dissuasão nuclear”, bem como do “consenso que permitiu à França tornar-se um dos principais fabricantes e comerciantes de armas do mundo”.
Isso é muito. E porque é muito, precisamos nos concentrar no que é menos claro, para que possamos separar as questões que permanecem sem resposta hoje, os possíveis mal-entendidos e os verdadeiros desentendimentos que precisam ser debatidos com total clareza. Iremos abordar sete questões, de importância desigual.
O documento leva em conta a crise e os seus efeitos, incluindo o desemprego e as mudanças sociais em curso. Mas é marcado por uma espécie de otimismo, como se os autores estivessem obcecados em recuperar os atrasos acumulados pelo PCF. Isto dá por vezes a impressão de que ainda estamos no final dos anos 60 ou início dos anos 70, numa situação de movimentos sociais inovadores crescentes e convergentes. Esta abordagem responde sem dúvida à preocupação justificada de refutar as teses da liderança do PCF sobre “o deslizamento à direita da sociedade”, um álibi conveniente para os seus próprios fracassos.
A crise, no entanto, veio e ficou. Aprofundou as diferenças e divisões, criou um desemprego massivo e duradouro, feriu profundamente certos setores e afetou regiões inteiras. Seria errado, e o documento não o faz, apostar numa “saída suave” desta crise: isto seria repetir as ilusões do Programa Comum(3), que em 1972 apostou nas perspectivas de crescimento ao estilo japonês, ou relativizá-la, atribuindo-lhe principalmente causas nacionais. Pelo contrário, devemos esperar ataques redobrados contra a classe trabalhadora e conflitos de grande brutalidade. Neste contexto internacional, o nosso horizonte permanece, infelizmente, o das crises, guerras e revoluções.
A plataforma sublinha, com razão, a amplitude das transformações em curso na organização e divisão do trabalho, bem como sobre a diversidade e heterogeneidade do mundo do trabalho. Ela sugere a noção de “bloco histórico de trabalhadores”. Será isto a rejeição de uma velha concepção obreirista, que reduzia o proletariado à classe trabalhadora industrial (como ainda fazia o clássico livro sobre o capitalismo monopolista de Estado)? E o seu corolário: a análise do desenvolvimento do assalariamento no comércio e nos serviços como a ascensão de uma “nova classe média”? Se este for o caso, estaríamos globalmente de acordo.
Consideramos que a tendência, nas sociedades capitalistas modernas, é a da extensão do proletariado, ao ponto de representar uma força potencial sem precedentes, de mais de dois terços da população ativa. Essa extensão vai de mãos dadas com profundas diferenciações, acentuadas pela crise, de uma classe que nunca constituiu uma unidade espontânea, a não ser nas narrativas mitológicas. Hoje em dia, estas diferenças entre [trabalhadores] manuais e intelectuais, estáveis e precários, nacionais e imigrantes, qualificados e não qualificados, homens e mulheres, privado e público, indústria e serviços, etc., multiplicam suas linhas de fratura e seu cruzamento. Finalmente, neste proletariado diferenciado, os trabalhadores diretamente produtivos das riquezas sociais ocupam um lugar central.
Sabemos que existem aqui antigos e profundos debates teóricos, que não podem ser esgotados por um texto. Mas a aposta desta abordagem é política. Ela nos leva a enfatizar a unificação do proletariado, contra um determinismo sociológico simplificador que fez do PCF o representante exclusivo do “proletariado autêntico” (industrial) e do PS a expressão das “novas classes médias”, e se traduz em uma pluralidade de suas representações políticas.
O texto evita qualquer julgamento de conjunto sobre a política seguida e sobre a participação governamental. Entendemos que se trata de uma questão amplamente aberta entre militantes e dirigentes que se encontram no mesmo combate, a partir de trajetórias diferentes. No entanto, elementos de resposta estão aflorando. Argumenta-se que as principais razões da derrota estão “possivelmente na inadaptação do conteúdo do Programa Comum em 1972 às necessidades de uma nova alternativa à crise global da sociedade e do sistema capitalista”. É verdade que desde 1973 esse programa, que se baseava num forte crescimento, já estava em contradição com os seus pressupostos econômicos. Mas as razões para a derrota são mais profundas. Elas têm menos a ver com um texto do que com uma abordagem. E se há um atraso, é mais uma questão de falta de compreensão das aspirações e potencialidades reveladas em maio de 1968.
Depois de um tal movimento, era normal buscar abrir uma saída política para ele, que não se reduzisse a uma soma de lutas. Ao pretender cumprir este papel, o Programa Comum estava na realidade canalizando energias apenas para a perspectiva eleitoral. Relido hoje, à luz da crise e sobretudo do que foi a política da esquerda do governo, não temos dúvidas de que pode parecer radical e audacioso em muitos aspectos. Mas estas audácias foram praticamente aniquiladas pelo escrupuloso compromisso de respeitar as instituições, a Constituição da Quinta República e as alianças internacionais.
Portanto, a função global foi mais importante do que o detalhe das medidas. Não é possível, ao mesmo tempo, dar garantias de respeito às instituições e incentivar a mobilização, as formas de auto-organização, de controle ou de autogestão, que praticamente contestam a autoridade dos patronal na empresa, ou a do Estado em diferentes níveis da sociedade.
Na verdade, a mobilização tem sido subordinada à única perspectiva de prazo eleitoral e à "solução única" do Programa Comum. Esta preocupação prevaleceu sobre o incentivo às lutas do tipo “Lip” (o acordo CGT-CFDT de 1974 que funcionou a este respeito como um abafamento) e as possibilidades de resposta aos planos “Barre”. Como podemos explicar, se não pela vontade de adquirir uma "credibilidade governamental", a súbita reunião junto à força de ataque?
Como podemos explicar, depois de 1981, se não pela preocupação de não envergonhar os camaradas ministros, a colocação em segundo plano das próprias posições e exigências do PCF, o endosso dos planos de aço, naval e carvão..., a discrição sobre as questões coloniais nas Índias Ocidentais e em Kanaky?
Será que esta forma de agitar o programa do partido, quando se tratava de murchar os giros à direita do PS, e de o embainhar, assim que a unidade foi recuperada, não desorientou os militantes e não deu crédito à ideia de que não se tem nem um projeto real nem uma vontade perseverante, mas uma série incoerente de posições circunstanciais?
Além disso, os militantes foram explicitamente advertidos pelo acordo celebrado entre o PS e o PC em 23 de junho de 1981, de que a solidariedade governamental “infalível” se aplicaria mesmo nas empresas: “cientes dos deveres ditados pela situação, as duas partes declaram-se dispostas a promover a nova política escolhida pelas francesas e pelos franceses, elegendo François Miterrand como Presidente da República. Farão isso na Assembleia Nacional nos marcos da maioria que acaba de ser constituída; farão isso no governo num espírito de solidariedade infalível; farão isso nas autoridades locais e regionais, nas empresas, respeitando as funções próprias das instituições e dos partidos...".
Em suma, o impulso da mobilização unitária, único portador de uma verdadeira dinâmica de transformação, foi quebrado, tanto antes como depois da vitória eleitoral. A partir daí, as promessas foram sacrificadas antecipadamente pelo respeito às instituições, às alianças internacionais e aos "constrangimentos externos"; e este foi o caso da formação do primeiro governo Mauroy, mesmo que 1982 tenha marcado uma mudança real na direção de uma política de austeridade.
Este balanço pesa obviamente sobre a dificuldade de definir uma política atual, diferente do “solo fúnebre” em que a liderança do PCF se sacode. A plataforma levanta pistas positivas. Ela parte do pluralismo durável da esquerda, da necessidade de reunir uma nova maioria social e política que leve em consideração a sua diversidade, de travar a batalha para não deixar o PS com o monopólio da representação popular e de não lhe dar qualquer pretexto para uma inversão de alianças em direção ao centro. Por isso, defende “uma linha unitária de saída da coabitação”. A fórmula é feliz, desde que seja traduzida em termos práticos: unidade nas lutas, unidade sindical, unidade eleitoral, o que passa por um compromisso de desistência recíproca no segundo turno, já que esse é o nosso sistema eleitoral.
Trata-se, de fato, de quebrar o círculo vicioso do oportunismo e do sectarismo, da união sem combate e sem programa próprio, [e] do combate sem união nem propostas unitárias. Somente uma orientação unitária para a ação, e em todos os níveis, de baixo para cima, pode se opor tanto aos danos da divisão como a todas as variantes de coabitação ou de colaboração com a burguesia. Mas para além da unidade na e para a mobilização surgem problemas não resolvidos: “este processo de recomposição, de aproximação, conduzirá ao compromisso de governar em conjunto, a todos os níveis de instituições políticas e da sociedade. A forma deste compromisso não pode ser decretada: o conteúdo importa em primeiro lugar; mas o compromisso é necessário.”
“O conteúdo importa em primeiro lugar”! Na verdade, ele determina a possibilidade de governarmos juntos. Um partido revolucionário deveria defender a perspectiva de um governo a serviço dos trabalhadores, responsável perante eles por seus mandatos e comprometido a governar com outros sobre a base de uma mobilização unitária e de medidas conformes às necessidades sociais urgentes. Ele não deve ser associado, por outro lado, às experiências de gestão leal da economia capitalista e do Estado.
Assim, em 1981, era importante contribuir sem negociar para a derrota da direita. Mas, como as condições para um governo de ruptura com a burguesia não foram cumpridas, o PCF, se tivesse sido um partido realmente revolucionário e unitário, não teria participado do governo, ainda que tivesse apoiado as suas medidas positivas. Ele teria concentrado seus esforços, com total independência, na defesa das suas reivindicações e na vigilância contra a direita.
Hoje, mais uma vez, a unidade contra Chirac ou Barre não admite nenhum pré-requisito, nenhuma exclusão. Tudo deve ser feito para vencê-los, tanto nas lutas quanto nas urnas. Se eles caírem, veremos novamente um governo do PS, ou mesmo – é preciso esperar tudo – um governo do PC e do PS. À luz da experiência, o importante está em outro lugar: se trata de assegurar que exista uma mobilização unitária prévia, e uma força realmente revolucionária, de modo que não se possa repetir impunemente o caminho que levou ao retorno com força da direita e à frustração de tantas esperanças.
Se trata de reconstruir as relações de forças. De colocar um motor na unidade. E um tigre no motor. É preciso determinação, e paciência.
“A revolução, camaradas!”, mas o que é exatamente a revolução, se não a derrubada do poder político da burguesia, a substituição do poder de uma classe pelo de uma outra? Uma definição geral que não esgota o problema, porque sabemos que esta transformação não se reduz a um único momento, tarde da noite ou de manhã cedo, que supõe confrontos prolongados, rupturas, saltos qualitativos; que a derrubada do poder político da burguesia e a socialização dos grandes meios de produção nem sempre coincidem no tempo.
Há uma razão estrutural para isso, ligada às próprias condições da revolução proletária em contraste com as condições das revoluções burguesas: a conquista do poder político é para a classe trabalhadora o instrumento da emancipação econômica e cultural. Ao contrário da sociedade feudal, minada pela extensão das relações mercantis, a sociedade capitalista não desenvolve gradualmente os elementos de um modo de produção socialista. Ela desenvolve as contradições entre a socialização do trabalho e a apropriação privada dos meios de produção, entre a internacionalização da produção e a manutenção dos Estados nacionais. Ela gera seu próprio “coveiro”. Mas não há nenhum automatismo de transição.
É por isso que o Estado, o nó das relações de produção capitalistas, é a aposta estratégica chave da revolução socialista. No entanto, a plataforma permanece evasiva com relação a este assunto. Ela insiste no fato de que o discurso liberal explora aspirações contraditórias. A rejeição do “tudo Estado” [“tout État”] se nutre de fato de uma profunda exigência democrática, mais do que de uma adesão à concorrência selvagem. Concordamos que esta é uma oportunidade para reafirmar a autodeterminação das massas, a reconquista da sua autonomia diante do Estado e o restabelecimento da solidariedade para além da sua tutela.
Mas, além disso, os redatores do documento perguntam: "Como a luta intensiva pelas transformações se inscrevem na gestão pelos eleitos, nas instituições e nos espaços conquistados ou a serem conquistados pela autogestão? Como se pode estar atento para conferir ao que emerge da sociedade, para conferir à perspectiva autogestionária um conteúdo de classe compreensível, realista e combativo nas empresas, no município, na região e na administração do Estado"? Estas são de fato questões práticas, que só podem ser discutidas de forma eficaz sobre a base de experiências concretas. Mas o documento leva a uma pergunta mais geral: "Quais relações estabelecer entre reformas e revolução? Não há outra escolha, na empresa ou no topo do Estado, do que entre gestão e ruptura?”.
Claro que, num país capitalista desenvolvido como o nosso, com uma longa tradição de democracia parlamentar, é preciso levar em consideração a complexidade, as ramificações e a legitimidade de um Estado que não se reduz ao famoso "bando de homens armados", mesmo que o bando ainda hoje exista, modernizado e aperfeiçoado. De fato, é difícil imaginar que os explorados possam do "nada" tornar-se "tudo", através de uma súbita metamorfose, sem terem afirmado, no curso de uma luta prolongada, a sua candidatura ao poder e à direção de toda a nação.
É esta busca de uma legitimidade alternativa que Gramsci enfatizou, entre outras coisas, com sua noção de hegemonia. Sua preocupação foi, aliás, mais difundida nos debates, infelizmente abortados, da Internacional Comunista no início dos anos 1920 sobre a derrota da Revolução Alemã, sobre a frente única e sobre o lugar das reivindicações transitórias no programa da IC. Em seu pequeno livro sobre Gramsci, Perry Anderson destaca com razão este parentesco entre a hegemonia em Gramsci e a frente única em Trotsky. A importância conferida à preparação não exclui o desfecho, o salto; em resumo, não é suficiente para dissolver o próprio ato da revolução apenas no processo de reformas.
Todas as grandes experiências do século, férteis em crises revolucionárias, confirmaram, e de novo tragicamente no Chile, que a burguesia pode se curvar e virar as costas às reformas desde que preserve o essencial, o núcleo duro do Estado. Lembremo-nos que, em 24 de setembro de 1970, vinte dias após a vitória eleitoral de Allende e antes de lhe conceder a nomeação parlamentar, a burguesia chilena pediu ao futuro presidente que se pronunciasse sobre as questões que lhes eram essenciais: “Queremos um Estado de direito. Isto exige a existência de um regime político no interior do qual a autoridade seja exercida exclusivamente pelos órgãos competentes: o executivo, o legislativo e o judiciário... Sem a intervenção de outros órgãos de fato que atuariam em nome de um suposto poder popular... Queremos que as forças armadas e os corpos de carabineiros continuem a ser uma garantia de nosso sistema democrático. Isto implica que sejam respeitadas as estruturas orgânicas e hierárquicas das forças armadas”. O essencial, de fato, está ali: belo exemplo de lucidez de classe, visto do lado da burguesia!
Todos os burgueses sabem por experiência que as nacionalizações são sempre reversíveis, desde que continuem a ser o último recurso do Estado. E não há exemplos de gestão social-democrata, mesmo as mais resolutamente reformistas, que tenha conseguido escapar ao abraço do mercado e aos limites do Estado. Paradoxalmente, a ofensiva neoliberal atual, ao pretender "reduzir o tamanho do Estado", contribui para recolocar a nu o seu esqueleto: as funções militares e de segurança. Reagan amputa os orçamentos sociais, mas bate todos os recordes de despesas militares. Na França, o orçamento da Defesa supera o da educação. E o caso Greenpeace jogou uma dura luz sobre a força do consenso em torno da "razão de Estado".
Não perder de vista esta realidade última do Estado não implica que se deva ficar afastado das instituições. Elas não estão todas amarradas da mesma maneira ao corpo do Estado. As escolas ou os municípios, por exemplo, não são estritos apêndices. Pensamos somente que toda presença nas instituições deva manter como bússola o fortalecimento da democracia mais ampla, da autonomia do movimento de massas e favorecer a intrusão de um ponto de vista de classe na ilusória neutralidade dos aparelhos levados à total transparência. Não há zonas reservadas onde a soberania democrática não penetre; nem a empresa entregue à arbitrariedade patronal, nem o exército que nega ao trabalhador de uniforme os direitos de todo cidadão.
Além disso, seria abstrato levantar hoje o problema da violência como uma questão de princípio. Mas é arriscado, no mínimo, tomar como hipótese, como o faz a plataforma, apenas uma "revolução pacífica e democrática". Não se pode ignorar o fato de que a paz, por sinal inteiramente relativa, das sociedades ocidentais tem como seu inverso oculto a miséria e a opressão do terceiro-mundo, onde a violência já está desencadeada. Não se pode ignorar que, em nossas próprias sociedades empenhadas na corrida armamentista, a violência é socialmente e ideologicamente onipresente. As classes dominantes que atingiram este grau de cinismo tanto na escalada militar quanto na exploração da miséria são capazes de tudo, e infelizmente do pior, se o seu poder estiver ameaçado.
Mesmo que não se coloque em termos imediatos, o problema do poder político pesa sobre toda escolha de orientação fundamental. O documento pergunta sobre as possibilidades de transformação econômica e social. Ele afirma a necessidade de "encarar a questão da propriedade privada". Levanta o problema do papel das nacionalizações, da transparência das escolhas nas empresas, da contradição entre "produção francesa" e a crescente internacionalização do "conhecimento, da tecnologia e da comunicação" (na verdade, trata-se igualmente da internacionalização da produção, dos capitais e, agora, dos serviços...).
Mas como é que, no final das contas, se expressa a primazia das necessidades sobre o lucro? Através da mais efetiva democracia em tudo o que concerne às escolhas da sociedade, tanto a nível central como a nível da empresa. E como podem estas escolhas articular os interesses gerais e os interesses particulares, o nacional e o local? Através de um planejamento autogestionário, apoiado sobre a socialização efetiva (que vai além da nacionalização) dos principais meios de produção e comunicação, cujas formas podem ser contratuais e descentralizadas.
Neste nível, onde estão em jogo o domínio da ciência e da tecnologia, as finalidades da pesquisa, da educação e da produção, o econômico, o social e o político entram em fusão. Não se trata, portanto, simplesmente de uma "ruptura econômica", mas de uma mudança global nos mecanismos da economia e do poder.
Toda a lógica da crise empurra nesta direção. Os redatores da plataforma sentem isso quando se perguntam se existe "uma saída progressiva para a crise, fora de uma ruptura com todas as formas de economicismo [économisme]". A ruptura com todas as formas de economicismo não implica somente ir além dos exercícios de elaboração de programas de governo realistas, ou de levar em conta as dimensões sociais e culturais da crise contra um produtivismo devastador.
Implica também apreender a dimensão diretamente política. Quanto mais a crise durar e revelar as suas consequências, com mais força ressurgirá a atração de um socialismo não burocrático. As questões ou as dúvidas serão menos sobre o fato de o socialismo ser desejável, mas antes sobre se a revolução ainda é possível.
A plataforma tem como título uma profissão de fé que nós compartilhamos. A crise está cheia de convulsões políticas tais como não se via desde a guerra, e a questão da Europa jogará um papel central: quem da burguesia ou dos explorados irá construir realmente a Europa, qual, e com que finalidade?
Nós devemos esperar verdadeiras crises revolucionárias: não somente poderosas mobilizações reivindicativas generalizadas, mas crises do sistema de dominação proveniente da guerra mundial.
O documento também aborda a questão das relações que um projeto revolucionário pode manter com o legado da Revolução Russa e, além disso, com o Estado soviético e o "campo socialista". Ele afirma uma "solidariedade com os povos dos países socialistas que lutam sob todas as formas pela democratização dos seus sistemas econômicos, políticos e sociais como condição para o desenvolvimento dos seus países". Pela sua generalidade, a fórmula deixa em aberto a possibilidade de reunir em um mesmo esforço de democratização Solidarnosc e Gorbachev. Há uma diferença, porém, que Gorbachev é explicitamente citado, mas não Solidarnosc... A experiência polonesa é, a nosso ver, decisiva para qualquer renovação comunista.
Ele afirma a "necessidade de tecer relações diferentes com todas as realidades, sem exceção dos países socialistas". Ele cita as "reformas propostas à sociedade soviética por Mikhail Gorbachev", mas rejeita "qualquer alinhamento com os interesses do Estado soviético".
Nós estamos todos conscientes da importância das reformas em curso e atentos aos seus efeitos. A interpretação e a discussão estão amplamente abertas. Há uma precisão a se fazer. Na crítica ao estalinismo, o documento vai muito além da denúncia do culto à personalidade ou dos crimes de Stálin. Ele põe em questão um sistema. Mas este sistema só poderia ser visto como um escorregar acidental da história, o efeito irracional de uma vontade de poder ou mesmo o produto mecânico de uma sociedade arcaica. Para nós, a compreensão do fenômeno estalinista parte da análise da burocracia. Esta não é certamente a última palavra. Mas é um elo necessário para compreender as razões, os mecanismos, o alcance das reformas, a resistência a elas e seus eventuais limites. De Khrushchev a Gorbachev, passando por Dubcek ou Teng, não há exemplos de reformas que não conduzam a conflitos no interior da burocracia e na própria sociedade.
A dinâmica deste conflito muda quando as massas se envolvem. Os desenvolvimentos em curso na União Soviética colocarão à prova do real os nossos instrumentos de compreensão, desde que saibamos nos precaver contra certezas exaustivas e ilusões apressadas.
O documento reivindica vigorosamente “a identidade comunista”. Mas ela não pode flutuar como um espectro no ar dos tempos. Ela existe somente pelo agrupamento de revolucionários em torno de um projeto comum, para a reflexão e a ação. Sem tratá-la explicitamente, pelo simples fato de sua existência, a plataforma levanta a questão de tal agrupamento, pois constata a realidade diversa e dispersa de uma corrente revolucionária, da qual a PCF não tem o monopólio.
A conclusão lógica seria de que é necessário começar a refrear esta dinâmica de fragmentação, que desencoraja e desperdiça energias. Mas como?
Dentro do PCF, para sua renovação? De nossa parte, pensamos que o PCF como um todo, quaisquer que sejam a riquezas e as potencialidades militantes que ele contenha, não é reparável nem renovável. Sem se pronunciar sobre este ponto, a plataforma anuncia um XXVI Congresso onde os jogos são feitos com antecedência e denuncia a ofensiva de normalização empenhada pela direção.
Todas as hipóteses estão, portanto, abertas. Diante do risco de ver militantes expulsos em pequenos pacotes a fim de enfraquecê-los ainda mais, seria necessário afirmar agora a vontade de prosseguir, aconteça o que acontecer, em um combate político organizado. Porque um projeto e uma identidade revolucionários são necessariamente encarnados em uma forma de organização militante, um partido capaz de agir e debater, de manter viva a ligação entre teoria e prática, de enfrentar em um quadro democrático e sobre a base de uma prática comum os problemas não resolvidos. Esta ainda é a melhor forma de constituir uma força de treinamento [force d’entraînement] para os movimentos sociais, que assimile suas experiências, respeite sua unidade e fertilize-os com propostas revolucionárias. É a melhor maneira de colocar as ideias à prova da prática, de evitar as desmoralizações, de enfrentar os desafios. A preocupação de evitar os impasses de um certo centralismo burocrático deve nos incitar a refletir sobre outros modos de funcionamento e debate, sem renunciar a um instrumento de luta indispensável. Este projeto não concerniria apenas aos militantes hoje membros do PCF, ou provenientes de suas fileiras, mas a todos os revolucionários, organizados ou não, aos quais se dirige a plataforma.
Critique communiste n° 61, março de 1987
Notas de rodapé:
(1) Publicado em Critique communiste n° 61, em março de 1987 (nota do autor) (retornar ao texto)
(2) O Congresso de Tours foi o 18° congresso nacional da Seção Francesa da Internacional Operária, que ocorreu entre 25 e 30 de dezembro de 1920. Nesse congresso foi criada a Seção Francesa da Internacional Comunista, futuro Partido Comunista Francês. (nota da tradução) (retornar ao texto)
(3) O Programa Comum, cujo nome completo é Programa Comum de Governo, é um programa de reforma adotado em 27 de junho de 1972 pelo Partido Socialista (PS) e pelo Partido Comunista Francês (PCF). (nota da tradução) (retornar ao texto)