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Primeira Edição: ....
Fonte: Resistir.info - https://www.resistir.info/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
2. As velhas crises ocidentais
O conceito de crise é extremadamente ambíguo, teve múltiplos usos, muitas vezes contraditórios. Ao longo do séulo XX gozou de períodos de enorme popularidade em contraste com outros em que a sua existência futura, como fenómeno social de amplitude e duração significativa, era quase descartada. Assim ocorreu nos finais da era keynesiana, nos longínquos anos 1960 e ainda muito no princípio dos anos 1970, nessa época o mito do estado burguês regulador, domador dos ciclos económicos, fazia com que um economista de prestígio na altura época como Marchal assinalasse em 1963 que "no estado actual dos conhecimentos e das ideias, uma crise prolongada seria impossível" (Marchal J. M, 1963). Por sua vez, o prémio Nobel de economia Paul Samuelson afirmava pouco antes da crise de 1973-74: "O National Bureau of Economics Research trabalhou tão bem que de facto eliminou uma das suas próprias tarefas principais, a saber: as flutuações cíclicas" acrescentando que "Graças ao emprego apropriado de políticas monetárias e fiscais o nosso sistema de economia mista pode evitar os excessos dos booms e das depressões e desenvolver um crescimento são e sustentado" (Mandel, E., 1978).
Mas antes da primeira guerra mundial, em plena hegemonia do liberalismo e da ideologia do progressos (que muitos supunham indefinido) também era subestimada a ideia de crise, lançada ao museu das antiguidades anarquistas e marxistas catastrofistas. Mas o paraíso desmoronou em 1914.
E mais recentemente, nos anos 1990, sobretudo no segundo lustro, em pleno delírio bursátil, a prosperidade dos Estados Unidos costumava ser apresentada como o modelo do futuro, a matriz de um capitalismo que finalmente havia conseguido desencadear uma dinâmica de crescimento imparável durante um longuíssimo período. Explicavam-nos que a revolução tecnológica fazia subir os rendimentos e em consequência a procura, incitando mais revolução tecnológica, aumentando a produtividade laboral e gerando novos rendimentos, etc, etc. Mas o círculo virtuoso das tecnologias de ponta ocultava o círculo vicioso da especulação financeira que terminou por apodrecer completamente a mega fortaleza do capitalismo global. Esse frenesim neoliberal dos 90 foi abençoado nos seus princípios por personagens como Francis Fukuyama, o qual nos informava que estávamos a entrar não só numa era sem crises significativas como também no mesmíssimo "fim da história" (Fukuyama F, 1990).
Como se sabe, a origem do conceito de crise é muito remota. Se nos restringirmos à história do Ocidente costuma ser situada na Grécia Antiga. Foi empregue por Tucídides em "A guerra do Peloponeso" para assinalar o momento de decisão na batalha mas também na evolução da peste em Atenas atravessando certos pontos de inflexão, e naturalmente por Hipócrates, ancorando o tema na medicina onde esteve instalado com quase exclusividade durante muitos século nos quais apareceu timidamente em algumas reflexões sobre acontecimentos sociais.
Haverá que esperar o ingresso pleno na modernidade (a partir do século XVIII e sobretudo do XIX) para encontrar a expressão na sua extensão actual (curiosamente o seu destino é semelhante aos termos progresso e decadência). Hoje, a sua ubiquidade, o seu emprego esmagador, acabou por converter a palavra numa espécie de coringa difícil de encaixar.
Para além das utilizações individuais ou para fenómenos de pequena dimensão humana (grupais, etc) e quando entramos nos grandes processos sociais podemos distinguir "crises" extremamente breves de outras de longa duração (décadas, séculos), diferenciamos também as crises de baixa intensidade de outras que sacodem profundamente a estrutura. Também podemos distinguir aquelas causadas pela própria dinâmica do sistema em causa, ou seja, com causas endógenas, das provocadas por factores externos ao mesmo (causas exógenas). Exemplo da segunda é a crise catastrófica verificada na América em consequência da conquista europeia, exemplo das primeiras são as crises clássicas de sobreprodução do capitalismo industrial que se insinuam desde princípios do século XIX mas que se exprimem plenamente desde meados do mesmo.
Um certo reducionismo económico limita-as ao momento de mudança de fase do ciclo, quando se passa da etapa de crescimento à de recessão deixando de lado as turbulências sistémicas que se prolongam muito mais além desses momentos.
Além disso é saudável descartar a ideia de crises puramente económicas, elas sempre fazem parte de um conjunto social mais amplo abrangendo factos políticos, institucionais, culturais e muitos outros mais.
Simplificando talvez demasiadamente poderia definir-se a crise como uma turbulência ou perturbação importante do sistema social considerado mais além da sua duração e extensão geográfica, que pode chegar a por em perigo a sua própria existência, os seus mecanismos essenciais de reprodução. Ainda que em outros casos permita a este recompor-se, livrar-se de componentes e comportamentos nocivos e incorporar inovações salvadoras.
No primeiro caso a crise leva à decadência e a seguir ao colapso. No segundo à recomposição mais ou menos eficaz ou durável seja como sobrevivência difícil ou antes como " crise de crescimento ", própria de organismos sociais jovens ou com reservas de renovação disponíveis.
Em qualquer caso a crise é um tempo de decisão onde o sistema opta (se houver lugar para isso) entre reconstituir-se de uma ou outra maneira ou decair (também transitando algum dos vários caminhos possíveis). Na base desta opção está o fundo cultural que predispõe para um comportamento ou outro, a cultura não como stock, como património inamovível, e sim como evolução, como dinâmica de seres viventes que inclui espaços de criatividade reformista ou revolucionária e espaços de rigidez, de conservadorismo letal. Nesse sentido "a crise propõe mas a cultura dispõe" (Le Roy Ladurie, 1976), as sociedades desenvolvendo-se e agravando suas contradições chegam às crises e das suas próprias entranhas emergem (a partir de uma espécie de emaranhado, de labirinto de memórias, de reservas históricas) sinais, empurrões, solavancos, sabedorías que alentam caminhos futuros. Obviamente nunca podemos falar, em termos históricos, de sistemas fechados. É muito raro encontrá-los no passado e impensável no presente mundializado, mas ainda hoje é superficial limitar-nos às "correntes globais de mudança" (imperialistas, periféricas, regionais, etc) e ignorar as especificidades, produto de longos anos e complexos processos locais-globais, de sobrevivências e entrelaçamentos de ciclos históricos mais ou menos antigos, etc.
Como a crise é um detonador, uma caixa de pandora, de onde irrompem passados supostamente enterrados para sempre, iniciativas inconcebíveis pouco antes da turbulência, interacções de diversa amplitude geográfica, constitui sempre uma avalanche de "surpresas", muitas delas previsíveis desde que não se esteja submerso na rotina conservadora aferrada à crença ilusória de que o que foi e é certamente será.
As crises melhor estudadas são as ocidentais, reduzidas a esse espaço ou com repercussões mais amplas, inclusive planetárias, o que permite estabelecer uma longa sequência histórica.
Agora, nos princípios do século XXI, quando assistimos à acumulação de incertezas num planeta profundamente ocidentalizado (imerso na civilização burguesa) torna-se sumamente útil iniciar o percurso remontando à crise multisecular do Império Romano. Nos últimos tempos proliferaram comparações, várias delas muito atraentes, entre o declínio romano e a situação actual do Ocidente. Denis Duclos por exemplo estabelece três similitudes notáveis (Duclos Denis, 1997). Em primeiro lugar: o agravamento extremo da opressão-exploração das classes inferiores do sistema, não como primeira acumulação sangrenta, desapiedada, apontando para a expansão imperial, e sim como último recurso perante o estancamento do processo expansivo cuja continuação traz mais custos do que benefícios. Engels assinalava a respeito que no começo do fim do Império "o estado romano havia-se convertido numa máquina gigantesca e complicada com o fim exclusivo de explorar os súbditos. Impostos, gravames e requisições de toda classe afundavam a massa da população numa pobreza cada vez mais miserável, pelas exacções dos governantes, dos arrecadadores, dos soldados... (em consequência) os bárbaros contra quais pretendia proteger os cidadãos eram esperados por estes como salvadores" (Fernandez Urbiña J., 1982). A comparação com a sobre-exploração actual da periferia combinada com défices crescentes (fiscal, comercial...) nos Estados Unidos é imediata. O caso das guerras coloniais do Iraque e do Afeganistão cujo custo provoca graves problemas financeiros à superpotência, com grandes dificuldades para enviar mais tropas ao combate, pode ser facilmente comparado com situações semelhantes do Império Romano declinante.
Em segundo lugar, o distanciamento físico das classes altas em relação ao resto (actualmente o refúgio dos ricos nos seus "bairros privados" e residências afastadas e na Roma decadente da aristocracia nos seus palácios rurais). Trata-se do aprofundamento do abismo social que reproduz de maneira ampliada duas subculturas cada vez mais separadas, expressão da desvinculação crescente da elite em relação à sua base reprodutiva. Mas em ambos os casos é também distanciamento dos de cima em relação à suas responsabilidades públicas, a função integradora do Estado é desprezada, o Estado só aparece como couto de caça, lugar de rapina. No mundo de hoje isso é evidente desde os países periféricos até o centro do Império, os Estados Unidos. Em Roma "a partir do século IV já não são mais os grandes gastos em favor da sua cidade que distinguem um homem (da classe alta)... o financiamento de edifícios públicos através de fundos privados tende a diminuir... o luxo refugia-se nos palácios e residências rurais que se tornam mundos isolados" (Rostovtzeff M. I., 1973).
Como vemos, a privatização extrema não é uma criação original dos neoliberais e das suas mafias financeiras, há mais de 1700 anos a decadente aristocracia romana já a praticava.
Em terceiro lugar, a irrupção esmagadora do parasitismo, no caso de Roma desde o século III, Rostovtzeff refere-se ao predomínio "de uma nova burguesia mesquinha... que utilizava diversos subterfúgios para eludir as obrigações impostas pelo estado e que fundava sua prosperidade na exploração e na especulação o que não impediu sua decadência" (Rostovtzeff, op. cit.). Novamente o paralelo com a mafia financeira actual é imediato. Mas também em ambos os casos o poder imperial (em Roma desde o século III e em Washington hoje) é visto pelos seus chefes como uma máquina de pilhagem, a reprodução do sistema de dominação, complexo articulador de iniciativas produtivas, culturais, políticas, institucionais, militares... e de saque, é quase reduzida a esta última função o que leva a substituir a busca de consenso só pelo emprego da força bruta. Ontem as operações punitivas dos imperadores romanos, hoje o Iraque. Parasitismo, especulação, militarização.
Mas devemos ir além dos sintomas que acabo de assinalar e entender o ciclo milenar de Roma, desde a sua origem modesta até a dominação mundial, como um processo onde a cidade escravocrata de cidadãos-soldados desenvolveu a sua "conquista numa sucessão (expansiva) de círculos concêntricos produzindo uma crescente depredação de homens e produtos da periferia. O característico do referido sistema era que excluía entre outras coisas o estado estacionário, só podia subsistir incorporando novas zonas de pilhagem" (Chaunu P., 1981). Tratava-se de uma dinâmica imparável de enriquecimento do centro imperial que gerava novas necessidades de conquista. Quando por volta do século II o Império alcançou aproximadamente os três milhões de quilómetros quadrados, chegando até à Mauritânia e a Arménia, cobriu a máxima superfície de território habitado explorável dadas as condições técnicas (meios de comunicação e transporte) da época. Nesse ponto de inflexão a reprodução do sistema só podia prosseguir aumentando os níveis de exploração de recursos naturais e humanos do espaço já conquistado. A acumulação havia atingido o teto, os mecanismos de reprodução começaram a gerar crescentes desenvolvimentos parasitários, o consenso interior foi-se deteriorando ao ritmo da autofagia do sistema. O século III marcou o princípio da decadência.
Dito em outros termos, a vitória "planetária" do Império, a ocupação de todo o "mundo" (tecnicamente) possível assinalava o princípio de uma crise -- declínio que se prolongou durante vários séculos até a desintegração física completa do sistema. Só dezassete século depois, por volta de 1900, o Ocidente voltou a ocupar o seu espaço máximo, desta vez coincidente com a totalidade do planeta. Nesse momento, salvo o Japão e alguns territórios marginais, o mundo estava integrado por países ocidentais, colónias e semicolónias do Ocidente.
A crise do império romano foi atravessada, na sua etapa inicial, por tentativas fracassadas de recomposição para entrar a seguir na decadência. Foi uma crise longa, multisecular, que engendrou formas autárquicas de sobrevivência até chegar a estruturas institucionais que agrupavam, conservavam inter-relações, laços culturais, comunicações, parasitando durante muito tempo sobre os restos do antigo império para ir engendrando pouco a pouco formas renovadas, ainda que restritas, de articulação do velho espaço. A igreja cumpriu um papel essencial não só de preservação de certa continuidade cultural como também de preparação do próximo salto imperial do Ocidente.
Visto do futuro esse universo decadente, é possível afirmar que a desintegração foi desenvolvendo os embriões do que em meados do milénio seguinte seria o caminho capitalista de dominação mundial. Le Roy Ladurie afirma-o de modo contundente: "a imensa crise pós-imperial do segundo terço ou da segunda metade do primeiro milénio da era cristã gerou um dado socio-económico radicalmente novo; mais além da época medieval, prefigura e prepara a nossa modernidade capitalista" (Le Roy Ladurie, op cit).
No longo período que se estende entre o ano 1000 e o princípio do século XVIII podemos distinguir duas grandes crises seculares: a dos meados do século XIV (até meados do século XV) e a do século XVII, ambas podem ser incluídas no termo comum de crise do protocapitalismo.
O processo de decadência reverte-se completamente por volta dos princípios do novo milénio, quando se produz no Ocidente a convergência de três fenómenos. Em primeiro lugar uma revolução técnica que gera um crescimento significativo da produtividade agrícola; a reintrodução maciça dos moinhos de água, as melhorias de sementes, o emprego de instrumentos de ferro. Estabelece-se assim um círculo virtuoso envolvendo o artesanato e a agricultura conformando o que autores como Gimpel denominam "revolução industrial" da baixa Idade Média (Gimpel J., 1985).
Segundo, a extensão de redes comerciais no interior do território e a sua conexão com pólos de comércio marítimo, o que impulsiona a reprodução de uma burguesia mercantil que começa a pressionar sobre as estruturas produtivas existentes. E terceiro, facto decisivo, o retorno da pilhagem colonial promovida pelas Cruzadas. Tudo isto desencadeia uma onda de prosperidade protocapitalista e a consequente explosão demográfica: a população da Europa Ocidental duplica entre, aproximadamente, os anos 1100 e 1300 (Gaudin T., 1988).
Mas a expansão colonial frustra-se porque as cruzadas não conseguem restaurar o domínio ocidental sobre o Mediterrâneo e o saque prolongado e sistemático da sua zona de influência. O que bloqueia a fonte decisiva de recursos do desenvolvimento ocidental.
Em princípios do século XIV retorna a penúria alimentar e a peste de 1348 abate-se sobre uma população fragilizada pela deterioração económica, produzindo uma catástrofe demográfica. Trata-se de uma crise longa, de aproximadamente um século, onde se sucedem guerras intestinas, pestes, quedas populacionais, mas também desarticulações institucionais e culturais significativas. Trata-se de um processo prolongado de trituração do mundo medieval do qual vão emergir em meados do século XV burguesia comerciais pequenas mas relativamente libertas dos controles feudais, grandes extensões de terras férteis com baixa densidade de população (mediante guerras-pestes) e um desenvolvimento de ideias técnicas (próprias ou copiadas-adaptadas) que permitirão o salto colonial de um protocapitalismo cuja área principal de expansão já não será o mundo mediterrânico e sim o Oceano Atlântico, primeiro em direcção à África ocidental e a seguir a América e depois em direcção ao Oriente.
Nesse sentido torna-se apropriada a ideia de Chaunu quando interpreta o longo desmoronamento do império romano como um processo de paedomorfósis; retroceder para a seguir saltar com mais força para a frente. "A paedomorfósis significa que a chegada a um certo ponto crítico e com a condição de não haver cometido erros irreparáveis, de não haver ido demasiado longe pelo caminho equivocado, a evolução pode retroceder, desandar boa parte do caminho que a havia conduzido a um beco sem saída e recomeçar a marcha numa nova direcção" (Chaunu, op.cit). A involução dos últimos dois terços do primeiro milénio é sucedida por um primeiro salto imperial (as cruzadas) que é seguido por um novo processo de crise e paedomorfismo, entre meados do século XIV e meados do século XV, de alta intensidade, com enormes quedas demográficas e produtivas que darão lugar ao começo da aventura planetária do Ocidente concluída com êxito por volta de 1900.
Mas no começo dessa longa marcha ocorreu uma nova crise secular, a chamada "longa crise do século XVII" que Le Roy Ladurie denomina "longo século XVII" estendendo-o desde as últimas décadas do século XVI até começos do século XVIII. Hobsbawn considera que "durante o século XVII a economia europeia sofreu uma crise geral, última fase da transição global de uma economia feudal para uma economia capitalista" (Hobsbawm, 1983). A desaceleração da grande expansão colonial europeia ocorrida em torno do século XVI aparece como pano de fundo do fenómeno (processo heterogéneo com algumas excepções mais ou menos duráveis). Como assinala Trivor-Roper "o XVII foi um século de expansão económica. Foi o século em que pela primeira vez a Europa esteve a viver a custa da Ásia, África e América" (Trevor-Roper, 1983). Atenuada a avalanche colonial desencadeia-se uma sucessão de convulsões económicas, político-militares, religiosas no fim das quais já nada se opõe ao avanço do capitalismo, os restos feudais são eliminados, a ciência moderna emerge irresistível, é a época de Newton e Descartes, de grandes avanços na matemática e na física, em suma de uma renovação intelectual que se contrapõe às penúrias económicas e a significativos retrocessos demográficos. O fim da primeira onda de prosperidade colonial desencadeia a crise que opera como um mega catalisador da reestruturação burguesa da Europa.
É possível desenvolver um modelo geral das crises anteriores ao capitalismo incluindo as formas protocapitalistas mais avançadas, não só no Ocidente como no conjunto de civilizações do planeta. Em síntese, trata-se de crises de subprodução próprias de economias onde o sector agrícola consagrado à produção de alimentos era dominante, sobredeterminando de maneira absoluta o conjunto do sistema. O ciclo clássico é o seguinte: a prosperidade agrícola(1) provoca aumento de população e do aparelho estatal e outras estruturas parasitárias (religiosas, etc), sobe a massa de tributos e demais exacções aos camponeses e a pressão alimentar geral da sociedade. Isto, em condições de rigidez técnicas a médio prazo (ou de progressos hiper lentos nas técnicas vinculadas ao desenvolvimento agrícola), termina por causar o esgotamento dos recursos naturais empregados: a produtividade da terra diminui, o que exacerba a exploração das elites sobre os camponeses e destes sobre os recursos naturais declinantes, o que agrava a situação. A fase decadente pode ser antecipada, acelerada ou provocada devido a mudança climáticas negativas (que muitas vezes não constituem factores "exógenos" e sim o resultado de manipulações depredadoras do ecosistema), guerras internas, invasões, etc.(2)
Em numerosos casos a queda produtiva, ao causar penúria alimentar, fragiliza as classes inferiores tornando-as vítimas fáceis de pestes e outras calamidades sanitárias o que costuma provocar quedas demográficas.
A escassez de alimentos causa o aumento dos seus preços (do que só se beneficiam uns poucos açambarcadores). Trata-se, em suma, de uma combinação explosiva de alta geral de preços e queda da produção. A longo ou médio prazo a catástrofe elimina população camponesa e liberta recursos (terra cultivável) o que permite recomeçar o ciclo mais adiante.
Este sistema começa a ser superado no Ocidente a partir do desenvolvimento, primeiro tímido e a seguir esmagador, da modernidade industrial.
A partir dos princípios do século XVIII inicia-se uma nova era de ascenso da civilização burguesa e da sua base colonial que chega ao ponto do domínio planetário máximo por volta do ano 1900. O crescimento económico, salpicado por numerosas turbulências, algumas com estancamentos ou depressões de duração variável, prolonga-se até a actualidade. E, por volta de fins do século XX, importantes rupturas anti-capitalistas (em primeiro lugar a Revolução Russa) haviam sido reabsorvidas pelo sistema. Contudo, é necessário aprofundar a análise.
Uma primeira distinção deve ser feita entre as velhas crises de subprodução que ainda se sucederam no século XVIII e as crises de sobreprodução não muito prolongadas, mas cíclicas, próprias do capitalismo industrial ascendente. Estas últimas aparecem como crises de sobre-oferta geral de mercadorias (ou procura relativa insuficiente) combinada com a baixa da taxa de lucro. Os capitalistas entram numa dinâmica onde competem uns com os outros ao mesmo tempo que travam a participação dos assalariados nos benefícios obtidos pelo incremento da sua produtividade (graças ao fluxo incessante de inovações técnicas). Precisam investir cada vez mais para sustentar seus lucros (diminui a taxa de lucro) e o grosso da população afectada pela concentração de rendimentos tem dificuldades crescentes para comprar a massa de produtos oferecidos pelo sistema económico. A crise de sobreprodução aparece como consequência de diversos factores: a sobreacumulação de capitais que engendra uma capacidade oferta que ultrapassa a procura, o subconsumo relativo ligado ao anterior, a desordem produtiva e económica em geral e o declínio da rentabilidade das actividades produtivas. A evolução negativa pode ser desacelerada ou bloqueada graças a certas iniciativas estatais (reduções fiscais, compras públicas a preço artificialmente altos, etc), uma maior exploração da periferia, e eludida por alguns capitalistas através do canibalismo financeiro, assim como o subconsumo relativo pode ter paliativos por meio de créditos, pressões consumistas, etc. Mas, finalmente, o peso das grandes tendências acaba por se impor, provocando a crise e com ela deflação, desocupação, encerramento de empresas, etc. Até que o desastre produza uma baixa decisiva nos salários e vazios significativos de oferta, então o investimento produtivos encontra espaços de alta rentabilidade, pode incrementar o empregado de assalariados (baratos) e vender para mercados vacantes; o ciclo económico recomeça. Ainda que, como demonstraram Marx e Engels ao descrever as crises do século XIX e sua reprodução futura, não se trate de simples repetições e sim de uma sucessão de ciclos cada vez mais degradados. Isto só pode ser entendido a partir de uma visão histórica, superando as modelações ahistóricas da teoria económica. Como assinala Marx: "Até 1825... pode-se dizer que as necessidades do consumo geral marchavam mais rapidamente que a produção, e que o desenvolvimento da maquinaria era a consequência forçosa das necessidades do mercado... (na Inglaterra) a indústria acabava de sair da sua infância, como o prova o facto de que é só com a crise de 1825 que ela inaugura o ciclo periódico da vida moderna. E foi só em 1830 que se produziu uma crise realmente característica (de sobreprodução" (Marx-Engels, 1978).
Abriu-se então um período de crises decenais de crescimento que mascaram o ascenso do capitalismo industrial inglês, mas em 1870 Engels afirmava que pelo menos para a velha Inglaterra essas regularidades pertenciam ao passado: "A supressão do monopólio inglês sobre o mercado mundial e os novos meios de comunicação contribuíram para liquidar os ciclos decenais da crise industrial" prognosticando desde então a tendência para um encurtamento do ciclo até chegar assintoticamente a uma crise crónica, uma super-crise muito provavelmente acompanhada por guerras, antecipando o desastre de 1914-18 (ibid). Mas antes desse momento o capitalismo exacerbou sua pressão expoliadora, engendrando deformações parasitárias-financeiras que foram estendendo sua dominação ao conjunto do sistema, incluindo o Estado, abrindo a era do imperialismo contemporâneo, que Bucarin definirá mais tarde como "a política do capital financeiro" (Bucarin, 1971), expressão segundo Lénin da "degeneração do capitalismo" correspondente à sua etapa histórica de decomposição parasitária (Lenin, 1960). Obviamente nenhum deles estabeleceu prazos precisos ainda que o seu optimismo os levasse muitas vezes, como é lógico, a inclinar-se por uma aceleração dos tempos.
Podemos então descrever a trajectória das crises no Ocidente ao longo do século XIX partindo de "crises mistas", muito no princípio, onde se misturaram fenómenos próprios das velhas crises de escassez ou subprodução, correspondentes às economias com predomínio agrário, com as novas crises de sobreprodução inscritas na era industrial, passando pelas crises de sobreprodução "clássicas" descritas por Marx, suas repetições decenais, até chegar nos fins desse século à emergência dominante do capital financeiro. Todo esse longo período inscreve-se numa onda mais extensa que arranca em princípios do século XVIII, marcada pela expansão imperial do Ocidente. É uma terceira arremetida depredadora depois das cruzadas no início do milénio e das conquistas coloniais dos século XV e XVI.
A partir dos fins do século XIX abre-se a era das crises do "capitalismo drogado", do imperialismo contemporâneo, "reacção da forma capitalista perante o seu envelhecimento... tentativa destinada a sustentar e acelerar de maneira artificial o processo produtivo" (Roger Dangeville em Marx-Engels, op. cit.). As referidas turbulências sucederam-se ao longo do século XX.
A primeira delas foi a super-crise de sobreprodução que derivou na Primeira Guerra Mundial, da qual emergiu uma civilização burguesa amputada pela Revolução Russa.
A segunda foi a de 1929 e sua sequela depressiva que chegou à terceira, a Segunda Guerra Mundial. Desde então o capitalismo global saiu com decisivos retrocessos territoriais que continuaram até fins dos anos 1970: a perda da Europa do Leste, da China em 1949, Cuba em 1959 até chegar ao Vietnam em meados dos anos 70... vinculada a uma onda tricontinental periférica de revoluções anti-imperialistas ameaçando deslocar o capitalismo como sistema mundial.
Aqui nos encontramos com um capitalismo caracterizado por uma esmagadora intervenção do Estado, pela extensão de grandes burocracias públicas, pela instalação da indústria militar e dos aparelhos institucionais correspondentes como muleta decisiva do sistema, a hipertrofia de produções de bens suntuários e de consumos artificiais, a sustentação estatal da procura (subvenções ao consumo, gastos de prestígio, obras públicas, gastos militares...), o manejo voluntaristas do crédito.
Essa fase decolou nos últimos anos do século XIX com uma avalanche militaristas ligada às grandes empresas do sector e às suas tramas financeiras, fenómeno que Engels destacou no fim da sua vida (Marx-Engels, op.cit.) e que explodiu na guerra de 1914-18. Ela continuou com os fascismos nos anos 1920 e 1930, mas também com o New Deal nos Estados Unidos... e com a Segunda Guerra Mundial.
Depois de 1945 consolidou-se com o mega remendo keynesiano que estabilizou o Ocidente, permitindo-lhe integrar as suas classes baixas e assegurar pouco mais de duas décadas de crescimento sustentado.
Pode ser útil destacar quatro fenómenos que, sob diversos envoltórios ideológicos e políticos, atravessaram o período (entre fins do século XIX e princípios dos anos 1970).
Primeiro, a ideia de que as crises capitalistas podiam ser domesticadas e inclusive anuladas graças à aplicação de doses variáveis de voluntarismo estatal. Foi uma convicção forte nos delírios fascistas, mas também o foi depois de 1945 durante a prosperidade keynesiana. A crise iniciada em fins do anos 1960 e que explodiu incontrolável em 1973-74 esmagou a referida ilusão.
Segundo, o ascenso do capital financeiro como centro dominante do mundo burguês até chegar à hegemonia absoluta a partir dos finais dos anos 1970. Na sua origem o fenómeno foi descrito, entre outros, por Hilferding, Lénin, Bucarin, mas na referida época e até muito depois (pelo menos até os anos 1960) essa dominação económica crescente teve de coexistir com a hegemonia cultural do produtivismo, a legitimidade burguesa encarnava-se na figura da empresa produtiva, nos seus gerentes e engenheiros industriais. Tudo mudou a chegada do neoliberalismo, os engenheiros industriais foram ofuscados pelo ascenso dos engenheiros financeiros, os capitalistas inovadores produtivos foram deslocados do altar da cultura burguesa pelos especuladores financeiros, os Henri Ford pelos George Soros. A dominação financeira discreta tornou-se hegemonia civilizacional do parasitismo.
Terceiro, a persistência e expansão permanente no longo prazo dos complexos económico-militares (indústrias, sistemas de espionagem, burocracias militares, camarilhas políticas e financeiras, etc). A expectativa da sua redução após a primeira guerra mundial foi rapidamente descartada, o mesmo aconteceu depois de 1945 e do fim da guerra fria.
Quarto, a combinação perversa do retrocesso territorial do capitalismo (entre a primeira guerra mundial e fins dos anos 1970) com a reprodução da sua hegemonia cultural planetária. As rupturas anti-capitalistas dessa época foram, do ponto de vista ideológico, rupturas a meias, híbridos culturais, prisioneiras dos mitos da revolução tecnológica ocidental (subestimando seu peso cultural capitalista), da eficácia do novo estado burguês do século XX, do capitalismo de estado, da planificação autoritária, das formas militarizadas de organização, do modelo de consumo ocidental, da ideologia do progresso. A tragédia desse período foi protagonizada por tentativas heróicas de construção de um mundo novo, socialista, que chocavam com gigantescas barreiras civilizacionais que as impediam de desenvolver plenamente uma cultura superadora do desenvolvimento e do subdesenvolvimento burguês. O que deu lugar a degenerações monstruosas como a do estalinismo cujo pano de fundo foi o fracasso da Revolução Russa, deglutida pelo aparelho burocrático, herança do passado czarista (forma específica do capitalismo periférico, subdesenvolvido) mas recomposto ao consolidar-se a União Soviética, modernizado segundo as técnicas autoritárias (ocidentais) mais avançadas da época.(3)
Com as revoluções e reformas nacionalistas da periferia a meio caminho entre a imitação dos êxitos idealizados das transformações keynesianas nos países centrais e os híbridos socialistas (em primeiro lugar a URSS) o resultado foi semelhante.
Em síntese, o retrocesso do capitalismo mundial foi compensado, amortecido por um resseguro, uma reserva descomunal de poder, nutrida pela super-acumulação histórica de riquezas e de desenvolvimento cultural, o que lhe permitiu bloquear as rupturas periféricas (anti-capitalistas e nacionalistas) e também as que emergiram no seu próprio seio. Mas o declínio seguiu o seu curso, atravessando crises de diferente envergadura, prosseguindo a mutação parasitária do sistema.
A última grande onda de prosperidade do capitalismo conduziu, em fins dos anos 1960, a uma acumulação de desequilíbrios que foram forjando as condições de uma crise geral de sobre-produção. Tal como em outras ocasiões esta não se restringia à esfera económica pois abrangia o conjunto da reprodução social, enquanto emergiam as tensões monetárias, os desajustes comerciais, as aventuras militaristas (Vietnam), explodiram em 1968 inesperadas rupturas políticas nos países centrais. A Europa viu-se sacudida por uma série de rebeliões que estabeleceram um corte cultural profundo que marcava o fim do optimismo burguês, do renascimento das ilusões do progresso indefinido.
Chegou a seguir a crise monetária de 1971 e finalmente a disparada de preços do petróleo de 1973-74. Esta última foi o detonador da crise mundial. Que não se exprimiu sob o aspecto deflacionista convencional e sim como uma combinação inovadora de estancamento (até chegar à recessão) e inflação.
A outra "novidade" foi a natureza do "detonador". A alta do preço do petróleo levou nessa altura Le Roy Ladurie a assinalar que não se tratava de uma crise tradicional de sobreprodução e sim de uma "crise mista" de sobreprodução, principalmente industrial, e de subprodução, de escassez de matéria-prima energética (Le Roy Laduri, op.cit). Mandel respondeu acertadamente a este tipo de argumentações assinalando que não era a primeira vez que a escassez de uma matéria-prima cumpria essa função; a crise de 1866 por exemplo foi provocada pela penúria de algodão devida à guerra de secessão nos Estados Unidos (Mandel E., op. cit). Evidentemente não é o tipo de detonador o que define a dinâmica da crise ainda que não se tenha tratado de um factor conjuntural, de uma penúria acidental ou reversível no âmbito histórico capitalista e sim de um fenómeno que desde princípios dos anos 1970 foi emergindo de maneira irresistível como parte de um processo mais amplo de destruição de recursos naturais. Esta subestimação permitiu a Mandel explicar a referida crise sem se afastar do esquema marxista convencional, deixando de lado uma avaliação civilizacional de maior alcance. A escassez de matéria-prima energética (petróleo) pôde ser amenizada e inclusive revertida a médio prazo (poupanças de energia, substituições parciais) mas acabou por impor-se a longo prazo.
Não se tratava do retorno ao mundo dos princípios do século XIX e sim de um fenómeno ao mesmo tempo "novo" (do ponto de vista do capitalismo) mas que se entrelaçava inesperadamente com crises antigas, muitas delas civilizatórias.
Os Estados Unidos haviam chegado em princípios dos anos 1970 ao zenit da sua produção de petróleo. A partir dali a mesma desceu de maneira irresistível. Mas foi em meados dos 1980 que a tendência se acelerou; entre 1986 e 2004 a extracção caiu cerca de uns 40%. Um de cada quatro barris vendidos no mercado internacional é, no princípio de 2005, comprado pelos Estados, que representa só 9% da produção mundial de petróleo apesar de consumir 25% da mesma. A isto acrescenta-se a União Europeia que importa 80% do petróleo que consome, ao passo que o Japão compra no exterior quase 100% do seu consumo. Se somarmos as três potências teremos 12% da produção mundial mas 50% do consumo e 62% das importações internacionais (Beinstein J., 2004).
O declínio petroleiro estadunidense foi prognosticado por King Hubbert nos anos 1950 por meio de um modelo matemático que foi a seguir aplicado por destacados peritos à produção global, chegando à conclusão de que o planeta alcançaria o ponto de máxima produção de petróleo entre 2008 e 2012. Entretanto, novas avaliações levaram muitos deles a aproximar a data para 2007 e inclusive 2006.
Actualmente, à pressão sobre os recursos exercida pelas três potências mencionadas acrescenta-se a procura adicional (em expansão explosiva)da China. O resultado em 2004 foi uma forte elevação do preço do petróleo. A esta escassez no prazo curto-médio é necessário somar outras menos próximas, como a dos recursos hídricos e a das terras férteis, sobretudo em extensas áreas da periferia onde a aplicação de tecnologias avançadas vai degradando esse recursos natural (exemplo: as técnicas de "semeadura directa" associadas ao emprego de agroquímicos depredadores na produção de soja ou milho transgénicos impostos por multinacionais do sector como a firma Monsanto).
Uma conclusão teórica importante é que o modelo marxista convencional de crise de sobreprodução é ao mesmo tempo um instrumento indispensável mas ao mesmo tempo insuficiente para compreender a crise iniciada em fins dos anos 1960. Esta crise mista de sobreprodução e subprodução (de matérias-primas devido ao esgotamento de recursos naturais) surge então como um resultado muito original da sucessão de crises capitalistas de sobreprodução mas com vínculos, similitudes históricas com crises civilizatórias anteriores ao capitalismo. Porque o que se trata, visto no longo prazo, é de um fenómeno de rigidez técnica (ou melhor, tecnológica, nesta era de fusão entre ciência e indústria) que bloqueia mudanças em métodos de produção essenciais (de produtos energéticos e outros) provocando esgotamento de recursos naturais. A referida rigidez não é um obstáculo superável no âmbito civilizacional existente e sim um dos resultados centrais de um processo cultural prolongado, de um modo de produção (capitalista, no presente caso) que se instalou e consolidou num longo período histórico até adquirir dimensão planetária. Poderia argumentar-se que actuais e futuras revoluções tecnológicas acabarão por solucionar esses problemas, mas essa é uma resposta limitada (prisioneira de abstracções tecnologistas), devem ser considerados os custos e tempos de reconversão, e sua compatibilidade com a lógica da rentabilidade capitalista, pressionada agora como nunca pelo comportamento curtoprazista próprio da hegemonia financeira.
Ao desencadear-se a crise, entre 1868 e 1974, exacerbaram-se as tendências à concentração de empresas e de rendimentos entre centro e periferia no interior de ambos os subsistemas, o que produziu crescentes massas de marginais, acentuando uma crise de sobreprodução (e subconsumo relativo global) que se tornou crónica, com agravamentos e alívios efémeros. A taxa de crescimento da economia mundial foi decrescendo gradualmente desde então sob a pressão declinante dos países centrais. O estancamento japonês desde os princípios dos 1990 acentuou a tendência, a desaceleração alemã foi menos pronunciada devido aos benefícios passageiros da anexação da Alemanha do Leste e a depredação financeira dos ex-países socialistas da Europa e da URSS. E a dos Estados Unidos menos ainda, pelo menos até agora (princípios de 2005), graças às sucessivas borbulhas especulativas que inflaram a sua procura absorvendo porções crescentes da poupança global.
Arrefecimento da produção e da procura que engendrou um círculo vicioso financeiro cada vez mais ingovernável. Os estados dos países ricos a sustentarem suas procuras internas com subsídios, isenções fiscais, gastos militares e outros meios, para os quais recorrem ao endividamento. Empresas a colocarem excedentes nessas dívidas e em papeis de outras empresas que absorvem recursos para investi-los nas suas guerras tecnológicas e comerciais cada vez mais custosas. O que cria novos excedentes orientados também para a rapina na periferia e finalmente para negócios ilegais, o que por sua vez gera mais excedentes. Borbulhas financeiras que estalam ou desincham uma após a outra para reconstituir-se em países e rubricas variáveis. A crise financeira japonesa dos princípios dos anos 90, seguida pouco depois pela do México, em 1997 pela da Ásia do Leste, da Rússia em 1998, até chegar ao esvaziamento da super-borbulha bursátil nos Estados Unidos em princípios do presente milénio sucedida nesse mesmo país por uma nova borbulha especulativa muito maior que a anterior combinada com um paroxismo militarista. O que precipita a super-potência na sobre-extensão estratégica: é obrigada pela sua lógica imperial a ampliar o seu desperdício militar, com consequências desastrosas para as suas finanças públicas.
Um conceito muito útil para descrever este panorama é o de "capitalismo senil", que pode ser associado a visões parecidas correspondentes a outras crises de civilização. São Cipriano, por exemplo, em meados do século III referiu-se ao envelhecimento do mundo romano como causa da sua decadência (Fernandez Urbiña J., op. Cit.). Por volta de fins dos anos 1970 Roger Dangeville foi o pioneiro a instalar o conceito, antecipando assim o desenvolvimento futuro da crise que então começava (Marx-Engels. op. cit.).
Para Dangeville estava a iniciar-se um processo de crise de sobreprodução crónica, com estalidos controlados, sem as quedas espectaculares das grandes crises capitalistas anteriores (pelo menos num primeiro e longo percurso). Mas sem as recuperações vigorosas que se sucederam por exemplo no século XIX (sequência de "crise de crescimento", na era do "capitalismo senil" pelo contrário cada turbulência importante (entendida como uma única super crise, crónica, de longa duração) não é sucedida por uma nova expansão durável e sim por sobrevivências praguejadas de deteriorações, de perdas de vitalidade.
É possível assinalar indicadores evidentes da senilidade do mundo burguês, dentre outros: primeiro, a tendência de longo prazo, persistente (mais de três décadas até agora) à desaceleração do crescimento económico global. Todos os "milagres" anteriores que prometiam contrapor-se a essa tendência esfumaram-se um após o outro (Japão em 1990, os tigres asiáticos em 1996) e o actual, a China, esta tão atado como os seus antecessores aos avatares da euforia parasitário-consumista dos Estados Unidos, o que não lhe augura um futuro brilhante. A perda de dinamismo aparece como um fenómeno irresistível.
Segundo, a hipertrofia (hegemónica) financeira global, o parasitismo já fez metástases, invadindo (controlando) a totalidade do sistema mundial.
Terceiro, a evidência de rendimentos produtivos decrescentes da revolução tecnológica que, submetida à dinâmica do capitalismo parasitário, vai-se convertendo num factor de destruição líquida de forças produtivas. Já mencionei o caso dos transgénicos, poderíamos acrescentar o da dupla informática-financiarização, destruidora maciça de empregos, de economias nacionais na periferia.
Quarto, a decadência do estado burguês, peça mestra da civilização burguesa. Que se exprime no desengonzamento estatal de boa parte da periferia, no apodrecimento institucional norte-americano, na crescente crise de representatividade-legitimidade nos estados da União Europeia, etc. Os neoliberais dos anos 1990 costumavam alegrar-se diante desse facto, muitos deles vaticinavam a emergência de uma espécie de "autoridade global transnacional" (amálgama de FMI, Banco Mundial, OMC, Nações Unidas...). Foi uma fantasia efémera, o aprofundamento da crise degradou e desacreditou essas organizações, as necessidades imperiais dos Estados Unidos (empregando brutais iniciativas militares e financeiras) contribuiu decisivamente para isso.
Quinto, a ultraprivatização da riqueza que se manifesta como desprezo da burguesia imperial (mas também das periféricas) para com a função pública. Ou seja, o desinteresse das classes dominantes pela integração das classes inferiores através do Estado. O apartheid social é uma das suas consequências.
Sexto, a desintegração social, marginalização em ascenso de grandes massas humanas.
Sétimo, ligado ao anterior, a sub-utilização e destruição de forças produtivas (no sentido amplo do termo) em escala global.
Oitavo, a inutilidade prática crescente dos refinados e caríssimos aparelhos militares, cujo gigantismo esmagador contrapõe-se à sua incapacidade para ganhar guerras coloniais como a do Iraque.
É necessário constatar que a longa crise actual, motorizada por uma sobredose de parasitismo financeiro, sem reconversões produtivas à vista, desintegrando de modo permanente grandes massas de população, apontando para o esgotamento de recursos naturais, rompeu numerosas rotinas características do velho capitalismo. Dentre elas a repetição de grandes ciclos de depressão-expansão como as ondas longas de Kondratieff. Nos fins do século XIX Engels sustentava que os ciclos decenais que a economia inglesa havia atravessado começavam a fazer parte do passado (Marx-Engels, op.cit.). Agora a experiência recente mostra-nos que a dinâmica dos ciclos de Kondratieff, de aproximadamente cinquenta anos (um quarto de século de ascenso e um quarto de século de descenso) a partir da "crise" da mudança de fase (1968-74) converteu-se desde há mais de três décadas em "crise crónica" (em breve cumprirá quarenta anos de idade). Sua duração supera amplamente todos os declínios capitalistas anteriores (séculos XIX e XX) e qualquer avaliação minimamente rigorosa concluiria com o prognóstico de que esta onda descendente durará facilmente mais de meio século, o equivalente a mais de um ciclo completo de Kondratieff (com o seu ascenso e descenso). Aqueles (como os neoliberais, neokeynesianos, etc) que desde fins dos anos 1990 esperam confiantes o "iminente" recomeço de uma nova era de prosperidade capitalista deverão transformar a sua impaciência em resignação. O mundo mudou. A profundidade da decadência não admite novos remendos (keynesianos ou outros), admitirá sim, cada vez mais, mudanças revolucionárias integrais, tentativas de abolição (superação) do quadro civilizacional actual, da civilização burguesa que depois do seu percurso milenar e de haver chegado à hegemonia planetária tornou-se antagónica às grandes forças humanas que ela própria desencadeou. O pós-capitalismo surge agora, muito mais que nos princípios do século XX (quando começou a primeira etapa da decadência do sistema) como uma necessidade profunda do género humano.
Notas de rodapé:
(1) A prosperidade agrícola podia eventualmente ser o resultado da recuperação de uma crise anterior, da incorporação de novas terras férteis, da realização de grandes obras de regadio e em certos casos impulsionada por rapinas de outras populações sob a forma de tributos, trabalho escravo, etc. (retornar ao texto)
(2)A fase descendente podia ser travada pela obtenção de riquezas provenientes de rapinas externas ou então pela introdução de melhorias técnicas. (retornar ao texto)
(3) O ascenso de Stalin ao poder deve ser interpretado não como a vitória do "atraso asiático" e sim como a reinstalação de formas despóticas de modernização, seguindo e radicalizando modelos organizativos autoritários provenientes do Ocidente e reconectando com a trajectória traçada pelos "modernizadores" Ivan o Terrível e Pedro o Grande. (retornar ao texto)
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