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Tomaz More nasceu em Londres, em 1476. O pai de More, juiz, deu a seus filhos esmerada educação. Tomaz frequentou a escola latina, e depois a Universidade de Oxford, que, naquela época, era o centro da ciência escolástica e humanista da Inglaterra. Por desejo de seu pai, Tomaz More estudou também jurisprudência em Londres e formou-se em advocacia. Mas, arrastado por sua vocação pela filosofia, pela teologia e pela sociologia, estudou Platão e Santo Agostinho, granjeando rapidamente a reputação de um dos maiores humanistas da época. Assim como seus antecessores Duns Scott e Ocam, More tencionava ingressar na ordem dos franciscanos. Mas, convencido de que não poderia observar o voto de castidade, renunciou a esse projeto.
Casou-se, tonou-se pai de família, entregou-se de corpo e alma a sua profissão e conquistou um lugar de relevo na sociedade londrina. Foi membro do Parlamento, conselheiro dos negociantes de Londres e encarregado de resolver-lhes os litígios com a Hanse alemã, missão que desempenhou com sucesso. Em 1515, o rei Henrique VIII enviou-o a Antuérpia para negociar questões de interesse comercial entre a Inglaterra e Flandres. Apesar dessa incumbência. More teve tempo para dedicar-se a redação de uma parte da sua Utopia. Em 1518 entrou para o serviço do Estado e foi nomeado, em 1529, lorde-chanceler, naquela época o mais alto posto do reino. Nesse novo cargo, teve oportunidade de conhecer de perto os males que afligiam a sociedade inglesa: a destruição das comunidades aldeãs, a transformação das terras cultiváveis em pastos para os rebanhos, a expulsão dos camponeses de suas terras pelos senhores que começavam a dedicar-se a criação de gado e a enriquecer, graças ao comércio de lã com Flandres.
Tomaz More era partidário convicto do direito natural. A descoberta da América e das condições de vida das populações indígenas desse continente foram para ele a prova da justeza do direito natural. Leu com profundo interesse o Novo Mundo de Américo Vespúcio, uma pequena brochura de oito páginas, na qual o célebre viajante descreve sua segunda viagem à América. Partindo de Lisboa, no dia 4 de Maio de 1501, os viajantes passaram diante das ilhas Canárias e se dirigiram para o Cabo Verde, “onde os homens vivem em harmonia com a natureza. Não possuem nenhuma forma de propriedade privada. Tudo entre eles é comum. Não tem nem reis nem autoridades de qualquer espécie. Cada um é senhor de si mesmo”. Tomaz More nem por sombras duvidava da perfeição do moral dos homens que viviam em estado de natureza. A inocência e o estado de natureza, eram, para ele, sinônimos. Numa carta dirigida a seu amigo João Colet, um dos maiores humanistas ingleses, More manifesta grande admiração pelas virtudes da vida rural: “No campo, dá-se o contrário do que na cidade. Lá, o aspecto da terra é atraentes e o do céu sedutor. Vêm-se por toda a parte, os abençoados dons da natureza e os santos traços da inocência”. Na sua Utopia, More fala constantemente nas “leis da natureza” e na “vida de acordo com a natureza”.
Em virtude dessas suas concepções, Tomaz More devia, cedo ou tarde, entrar em conflito violento com Henrique VIII, rei despótico. Este conflito estalou quando, fiel às suas convicções católicas, More não quis aprovar os sucessivos divórcios do rei. Acusado de alta traição, foi executado em 1535.
A Utopia de Tomaz More, que apareceu em 1518, é uma aplicação da moral dos doutores da Igreja e da filosofia humanista ao grande problema social: a organização da sociedade humana em geral, e em particular da sociedade inglesa, na época da passagem da economia feudal à economia burguesa. Esta obra está dividida em duas partes: a primeira é consagrada a crítica social e enumera as chagas da sociedade que se baseia na propriedade privada, especialmente os da sociedade inglesa do século XV. A segunda parte descreve a organização de uma sociedade comunista modelo. A forma do livro é sobretudo narrativa. A principal personagem é Rafael Hytlodeus, grande viajante e filósofo humanista, erudito, familiarizado com o que de melhor produziu o pensamento grego, e comunista convicto. É ele quem descobre Utopia e mostra a perfeição de sua organização social. A segunda personagem é o próprio Tomaz More. Concorda com a crítica social feita pelo viajante Rafael, menos quanto às possibilidades práticas do comunismo e com os métodos preconizados por Hytlodeus, mormente no que se relaciona com a repulsa de todo o compromisso. A terceira personagem é Pedro Egidius, comerciante culto, mas de espírito conservador, bom cristão e bom cidadão, que conhece a fundo as questões comerciais e se declara satisfeito, sob todos os pontos de vista, com a ordem existente, que defende das críticas de Hytlodeus. Mas o papel desta personagem é inteiramente secundário, porque a ordem existente é teoricamente indefensável. Ele apenas serve, por assim dizer, de “estímulo” para que Hytlodeus desenvolva a sua argumentação. Existe, desse modo, na Utopia, duas tendências principais: a do comunismo integral e a da reforma social. Hytlodeus está convencido de que “sempre que a propriedade é privada ou que o dinheiro é a medida comum de todas as coisas, é difícil ou quase impossível dar a comunidade um governo justo e garantir o bem-estar geral”. More, pelo contrário, termina dizendo que, embora não concorde integralmente com o ponto de vista de Rafael, é, entretanto, obrigado a reconhecer que na Utopia há muitas coisas que ele desejaria ver realizadas na sua pátria.
Num país onde os nobres, os banqueiros e os cortesãos possuem grandes rendimentos, e onde os camponeses, os operários, agrícolas e industriais, e todos aqueles sem os quais seria impossível a coletividade viver, não possuem a menor garantia social, em tal país não pode existir o menor vestígio de direito ou de justiça. A sorte dos trabalhadores, em país assim organizado, é pior que a de bestas de carga. A pobreza é seu salário, enquanto eles possuam forças suficientes para trabalhar. E o seu salário é a indigência e a miséria, quando a idade e as moléstias os inutilizam para o trabalho. E as leis são sempre contra eles. Se considerarmos tudo isso, é impossível não chegar à conclusão de que a ordem existente é uma conspiração de ricos, e que essa ordem tem como finalidade única a garantia do bem-estar dos ricos. O dinheiro e o orgulho são as fontes de todos os males. Os crimes desapareceriam completamente se o dinheiro desaparecesse. Aliás, os próprios ricos compreendem isso. E eles mesmos poderiam perfeitamente modificar a ordem social, se não fossem tão orgulhosos. A felicidade dos ricos é a miséria da coletividade.
Uma outra causa do mal existente na Inglaterra é a transformação das terras cultiváveis em pastos para os rebanhos. Os carneiros, outrora tão mansos, tornaram-se ferozes. Devoram o camponês e a sua terra. Nos lugares onde se produz a melhor lã, os nobres não deixam um palmo de terra para a charrua. Não se contentam com os rendimentos que auferem do trabalho e com os prazeres que lhes oferecem as fainas diárias, mas vivem, como loucos, perseguindo a riqueza. Acicatados por insaciável ambição, despovoam o país para cobri-lo com rebanhos de carneiros. E o conseguem por meio de toda a sorte de violências, legais e ilegais. A redução da superfície das terras consagradas à agricultura determina inevitavelmente a alta dos preços. Esta, por sua vez, provoca o desemprego dos servidores e do pessoal de serviço, que assim perde o seu ganha pão habitual. A alta dos preços da lã prejudica enormemente os tecelões, pois dificulta o exercício da sua profissão. Toda a riqueza do país se concentra nas mãos de limitadíssimo número de pessoas. A pobreza e o desemprego crescentes favorecem o roubo e a vagabundagem. Os desocupados são obrigados a pedir esmolas ou a roubar. Por: mais que se aumentem as penas, a criminalidade, em vez de diminuir, aumenta. A sociedade forma os ladrões e os vagabundos e, depois, castiga-os. A isso pode-se chamar justiça? Os ladrões são punidos com penas terríveis, quando, em lugar de puni-los, a sociedade deveria dar-lhes a possibilidade de ganhar a vida, para que ninguém se visse impelido, primeiro a roubar, para depois ser enforcado.
Será útil apresentar aos reis e aos governos pedidos de reformas sociais? A resposta de Rafael a essa pergunta é clara: não. Isso é inteiramente inútil. Tomaz More, porém, acha que não se deve excluir a possibilidade dos reis ou governos concederem reformas. “Não se deve abandonar o navio, no meio da tormenta, invocando o pretexto de que não é mais possível dominá-la”. Do mesmo modo, segundo More, não se deve apresentar a um rei proposições que ele não possa aceitar. É necessário agir sábia e diplomaticamente, de modo que, quando não for possível obter o melhor, pelo menos se evite o pior. Porque a sociedade não poderá ser perfeita enquanto os homens não atingirem a perfeição. Só daqui a muito tempo a Humanidade atingirá esse estado ideal”. E Rafael responde; “Os reis e os governos cuidam unicamente de preparar guerras, de conquistar territórios de outros países, de reforçar os exércitos e de equilibrar as finanças. Seus ministros e conselheiros não estão nos cargos que ocupam senão para os auxiliar na execução desses projetos, e por isso os toleram. Para conservarem sues postos, são obrigados a adular os príncipes e a lisonjeá-los exaltando-lhes a pretensa sabedoria. Para obterem favores dos reis, os ministros e conselheiros oprimem o povo, sobrecarregando-o de impostos. Que poderia fazer um filósofo junto de tais príncipes? Desempenharia o papel de um ator cômico; ou mesmo pior que isso: tornar-se-ia tão imoral como o governo, ou o povo considerá-lo-ia como tal e lhe desprezaria as ideias. Um rei, porventura, ouviria um ministro que lhe dissesse que o poder não lhe foi dado para seu bem pessoal, mas para o bem do povo? Seria capaz de compreender que um reinado, por menor que seja, é sempre grande demais para ser dominado por um só homem? Quando um rei poderia compreender essa verdade? Nunca! Não é bom, em tais assuntos, agir diplomaticamente. Todas as tentativas para remediar os males sociais por meios brandos estão de antemão condenadas ao mais retumbante fracasso. Os males sociais só poderão desaparecer com a transformação radical de todo o sistema social. Platão tinha razão de sobra quando não quis legislar para um país onde existisse o reinado da propriedade privada. Porque esses países podem acumular leis e mais leis, tantas leis que um jurista seria incapaz de as contar, e nem assim conheceriam o bem-estar, a felicidade e a paz. Enquanto existir propriedade privada, a melhor parte da nação ficará condenada a um regime de supertrabalho e de permanente pobreza. As reformas poderão combater parte do mal, mas simultaneamente o agravarão, de modo que uma parte da nação será necessariamente prejudicada com as vantagens que se conceder à outra parte.
More discorda desta concepção radical do comunismo e diz: num regime de propriedade coletiva os homens fatalmente se verão privados do estímulo do lucro pessoal que determina o esforço dos indivíduos; ora, sem esse estímulo, os homens tornar-se-ão necessariamente preguiçosos e o resultado será a miséria geral. Além disso, a supressão das leis que protegem os meios de produção e a vida humana não provocará, necessariamente, conflitos e sangrentas lutas?
Rafael responde-lhe mostrando o exemplo dos utópicos, que, pela razão, com o auxílio de uma religião sábia e por meio de boas instituições, conseguiram tornar-se virtuosos. As objeções contra o comunismo inspiram-se num estado de coisas baseado na propriedade privada. Ora, a propriedade privada não permite que se estabeleçam boas instituições. Ela é contrária a razão sadia e incompatível com uma religião sábia. A mentalidade e o caráter dos utópicos formaram-se justamente em condições de vida e hábitos comunistas.
Utopus, um rei com as qualidades desejadas por Platão e pelos humanistas, conquista a península seca e árida de Abraxa e a transforma numa ilha fértil que, a seguir, recebe o seu nome e, aliás, merece ser chamada “Eutopia”, isto é, o país da felicidade. Os habitantes, inicialmente ignorantes e pobres, vivem em constantes lutas motivadas por dissenções religiosas. Mas Utopus consegue elevá-los a um alto nível cultural, transformando-os, assim, na nação mais avançada da terra, no povo mais humanitário, de melhores costumes, mais virtuoso, mais próspero e mais sábio do globo. Utopos realiza essa transformação por meio do comunismo e da educação, na acepção mais ampla do termo, ou seja, da educação que abrange não só o ensino escolar como ainda a experiência que os homens adquirem no contacto diário com o mundo exterior, com o trabalho, com os bons costumes e as leis. A ilha de Utopia é dividida em 54 distritos. Em cada um deles há uma cidade formosa e ampla, onde se acham os censos da administração, do ensino, do comércio, da indústria, etc... Os hospitais estão instalados nos arredores da cidade. Todos os habitantes falam a mesma língua, têm os mesmos costumes e estão sujeitos à mesma legislação. Esta igualdade faz com que vivam em paz e em harmonia. Cada distrito abrange uma superfície de 32 quilômetros quadrados. E nenhum deseja aumentar a extensão de seu território, porque os seus habitantes se consideram, não proprietários, mas simples cultivadores do solo. No centro da ilha, a capital chamada Amaurota, onde funciona o Conselho nacional. A República de Utopia é uma federação democrática de distritos autônomos. Como as leis são poucas o povo todo as conhece e, por isso, não podem ser falsamente interpretadas. O governo central é formado pelo Senado ou Conselho de 162 membros. Cada distrito elege membros para esse Conselho, que se reúne anualmente em Amaurota para deliberar sobre as questões de ordem geral referentes aos negócios e a vida de todos os distritos. Os assuntos, que não foram resolvidos pelas assembleias locais, são igualmente apresentados ao Conselho nacional. É ele que controla as finanças. Mas a administração pública é verdadeiramente exercida pelos governos locais. Em cada distrito há 6.000 famílias ou fazendas camponesas. Cada família compõe-se no mínimo de 40 membros e de 2 servos, dirigida por um pater ou mater-familias. Cada grupo de 30 famílias elege, anualmente, um prefeito (phylarcho). Dez grupos de 30 famílias elegem um superprefeito (super-phyjlarcho). A assembleia dos prefeitos elege o príncipe ou presidente do distrito. Este cargo é vitalício. O príncipe ou presidente do distrito governará toda a vida, e só poderá ser destituído de suas funções quando se verifique que procura instaurar uma ditadura. Os superprefeitos formam o conselho do distrito. Reúnem-se de três em três dias e convocam todos os prefeitos para que compareçam a essas reuniões. As questões de interesse público não podem ser discutidas fora do Conselho ou dos colégios eleitorais. A violação deste dispositivo será punida com a pena de morte.
A agricultura constitui a base econômica da comunidade. Cada cidadão da ilha de Utopia deve conhecê-la, teórica e praticamente. Anualmente, certo número de cidadãos vai para os campos, e parte dos agricultores vêm para a cidade. Desse modo, a cidade e o campo conservam-se sempre estreitamente unidos. Cada cidadão deve conhecer, além da agricultura, um determinado ofício. Os cidadãos poderão escolher uma profissão qualquer: pedreiro, tecelão, padeiro, ferreiro. Na ilha de Utopia não existirão outros ofícios além desses. Assim, a vida será simples e o luxo impossível. Por via de regra, cada cidadão terá o mesmo ofício que seu pai. A principal missão dos prefeitos é fazer com que cada um execute convenientemente a tarefa que lhe cabe. Os preguiçosos e os ociosos são expulsos da comunidade. A jornada de trabalho é de seis horas. Como todos trabalham, ninguém trabalha excessivamente. Só os doentes, os velhos e os jovens que estudam ficam isentos do trabalho físico. Se um agricultor ou um artesão que consagra suas horas vagas ao estudo mostrar que será mais útil à coletividade dedicando-se às ciências do que exercendo uma atividade manual qualquer, tal aptidão poderá fazer com que ele seja incorporado a ordem dos sábios.
Todos os trabalhos penosos ou repugnantes ficam a cargo dos servos. Estes são forçados condenados pelos crimes que nos outros países se punem com a pena de morte, ou então operários pobres de outras nações. Os primeiros são tratados com o maior rigor. Os segundos recebem tratamento mais brando. Estes podem, em qualquer momento, voltar aos seus países, desde que isso desejem, e nunca partem com as mãos vazias.
A poligamia não é, de maneira alguma, permitida. Os adúlteros são castigados com a servidão. Todos os indivíduos devem conservar-se castos até o casamento. Este é considerado uma instituição tão solene e sagrada que os utópicos não permitem o casamento sem que os nubentes se conheçam intimamente antes dos esponsais. Por isso, antes do casamento, uma mulher idosa leva a futura esposa completamente nua à presença do homem que vai ser seu marido. Um dos sábios também conduz o futuro marido, inteiramente nu, à presença da noiva.
Periodicamente, os utópicos reúnem-se e fazem refeições em comum em grandes salas, para esse fim especialmente construídas. A alimentação servida nessas reuniões periódicas é simples e sã. Começa pela leitura de um trecho enaltecedor da virtude. Durante a refeição, os mais velhos procuram conversar sobre questões importantes e sérias, que interessem os presentes, e esforçam-se para que os jovens manifestem francamente suas opiniões. A refeição do meio-dia é rápida, a da tarde um pouco mais longa, porque, depois da refeição propriamente dita, os convivas deleitam-se a ouvir canções e músicas ou se entregam a outras inocentes distrações. Às oito horas, todos vão dormir. As quatro da manhã, todos se levantam. Pela manhã e a tarde há sessões de leitura, de estudo ou de divertimentos públicos.
Para os utópicos, a guerra nada mais é que uma sangrenta manifestarão da baixeza, da barbaria humana. Apesar disso, dedicam-se a exercícios militares, para poderem repelir eventuais agressões dos inimigos ou para libertarem outros povos dos tiranos que os oprimem. Os utópicos também declaram guerra às nações que possuem grandes extensões de terras não cultivadas, e que não queiram consentir na emigração do excedente da população da ilha de Utopia. Para eles, as nações que proíbem a imigração violam um direito natural.
A Constituição da República utópica procura diminuir, na medida do possível, a jornada do trabalho, para que todos os cidadãos possam consagrar-se a ocupações intelectuais. É nisto, justamente, que eles vêm a maior felicidade. Em Utopia, a instrução é obrigatória. As crianças estudam música, lógica, aritmética, geometria, astronomia e geografia. Os estudantes que manifestam aptidões especiais são dispensados de todas as ocupações manuais para que possam dedicar-se exclusivamente ao estudo. São esses estudantes que, quando terminam seus estudos, formam a ordem dos sábios.
Os utópicos gostam de discutir problemas de moral e de metafísica. Na sua opinião, a alma é imortal, feita para a felicidade, graças a misericórdia divina. Julgam, também, que a virtude é recompensada e o vício punido, depois da morte. Pretendem provar essas verdades, que escapam ao controle da razão, por meio da lógica. Mas o tema usual das discussões é o que se relaciona com a felicidade humana. Segundo os utópicos, a felicidade nasce do prazer, que não pode ser confundido com a volúpia, pois se trata do prazer conveniente e moderado. Por aí se vê que eles discordam dos estoicos, para os quais a virtude é a única fonte de felicidade. Os utópicos acham que as condições de vida capazes de se harmonizarem com a natureza e a razão são aquelas em que os homens estão sempre contentes consigo mesmos e com o próximo.
Em Utopia existe a mais completa liberdade religiosa. Foi por meio dela que o Estado conseguiu combater os males causados pelos conflitos religiosos. A liberdade de pensamento faculta a cada indivíduo o direito de discutir qualquer assunto religioso, de pesar os argumentos pró e contra, e de chegar a determinada conclusão sobre os princípios essenciais da religião. A maioria dos utópicos adora, sob diferentes formas, uma potência espiritual suprema: o Criador do universo, a causa primária que deu origem a todas as coisas, o ateísmo não é bem-visto entre os utópicos. Sintetizando, Hytlodeus declara: “Utopia é a única comunidade que merece este nome. É verdadeiramente uma República. Em todos os demais países, fala-se no bem público, mas cada indivíduo só cuida de seus próprios interesses e despreza os do próximo. Em. Utopia, onde não ha nenhuma forma de propriedade privada, dá-se o contrário. Cada indivíduo cuida do interesse coletivo, do interesse geral. Em todos os países, ninguém sabe o que será o dia de amanhã. Ninguém sabe se ainda poderá passar fome e pedir esmolas, porque, por maior que seja a riqueza da nação, cada indivíduo cuida unicamente de si e esquece-se dos interesses gerais. Em Utopia isso não sucede porque tudo é comum. Todos têm a certeza de comer no dia seguinte, porque os armazéns públicos estão abarrotados e o que neles existe é de todos. Vê-se claramente que um regime em que todos os indivíduos trabalham pelo bem geral é melhor do que o regime no qual os indivíduos só trabalham pelo seu próprio bem. Numa República como Utopia, todos são ricos, apesar de não existir propriedade privada. Este regime social nunca poderá ser abolido, porque, com a supressão do orgulho e do dinheiro, desapareceram de Utopia as causas da ambição, do espírito de revolta e de todos os outros vícios que provocam, em todos os países, lutas intestinas, guerras civis e acarretam, finalmente, o declínio e a ruína das nações e dos impérios”.
A morte trágica de Tomaz More pode ser considerada como o início da decadência do catolicismo na Inglaterra e da luta pela Reforma. Esta luta entre a antiga e a nova Igreja processou-se até o fim do século XIV. Foi no decorrer deste período que a Inglaterra lançou as bases de seu Império colonial. Em 1534, Walter Raleigh fundou a colônia de Virgínia. Em 1588 a marinha inglesa aniquilou completamente a frota espanhola. Em 1600 constituiu-se a Companhia Comercial das Índias Orientais. O espírito do novo tempo, as ciências naturais e a moral, a experimentação e a lógica indutiva (isto é, o raciocínio que parle da experiência) conquistaram cada vez maior número de adeptos. O arauto da nova era, Francisco Bacon (conhecido pelo nome de lorde Bacon de Verulam (1560-1626), apoiando-se nos ensinamentos dos sábios italianos Telesius e Galileu, fundou no seu Novum Organum o método empírico (isto é, baseado na experiência), e, na sua Nova Atlântida, criou uma Utopia científica. Pode dizer-se, sem medo de errar, que Bacon escreveu a Nova Atlântida sob a influência da Utopia de More. Não há, entretanto, quase nada de comum entre as duas obras. Bacon supunha atingir a felicidade universal aplicando a ciência a produção, e não, como More, por meio de uma transformação das relações de propriedade.
A Nova Atlântida é uma ilha situada nos mares do Sul, governada por um sábio legislador, que consegue instituir uma comunidade próspera e feliz, graças a aplicação das ciências naturais. O centro da sociedade neo- atlântica é a “Casa de Salomão” ou a “Universidade dos Seis Dias”. Este edifício, situado na capital, Bensalem é destinado ao estudo das causas das coisas e das relações imperceptíveis que entre elas existem, a fim de dilatar quanto possível a extensão das capacidades e dos conhecimentos humanos. Ali existem preparados e instrumentos de toda espécie para serem utilizados nas experiências físicas e tecnológicas; ali se encontram profundas cavernas para o estudo do interior da terra. No alto do edifício, elevam-se torres muito altas para o estudo dos fenômenos atmosféricos. Ali existem ainda muitos laboratórios, uns destinados à fabricação de substâncias orgânicas ou ao estudo das ciências médicas, outros onde são feitas experiências agronômicas, ou trabalhos artísticos e industriais. Noutra parte do edifício, ficam os fornos para a produção de altas temperaturas e as salas destinadas ao estudo da luz e do som. Noutros aposentos, fabricam-se instrumentos, máquinas e aparelhos de todos os tipos e para os mais diferentes fins. Os sábios criaram máquinas aperfeiçoadas para imitar o voo dos pássaros, barcos para viajar sobre as águas. Ao lado dos que se consagram ao trabalho prático, estão os teóricos encarregados de colher os resultados obtidos e examiná-los, grupando-os, para deles deduzir as leis gerais. Nesta maravilhosa comunidade científica os inventores são considerados indivíduos dignos das maiores honras. Os autores de descobertas e invenções dignas de nota têm a memória perpetuada em monumentos erigidos nos logradouros públicos. Recebem, além disso, recompensas especiais. O ofício divino consiste em louvar as admiráveis obras do Criador e pedir a Deus que auxilie e proteja os homens, tornando-os capazes de realizar e aplicar convenientemente novas descobertas.
Na Nova Atlântica os laboratórios, as invenções, as descobertas produzem as forças que aumentam a produção e a riqueza, fazendo todos os habitantes da ilha prósperos e felizes.
O reinado de Isabel (1558-1603) foi um período de progresso material e intelectual da burguesia, do comércio e da indústria, e da nobreza a ela aliada. A rainha Isabel, inteligentemente, procurou evitar os conflitos com a burguesia, fazendo-lhe concessões. Seus sucessores, Tiago I (1603-1625) e Carlos I (1625-1649) agiram de maneira oposta. Este último, particularmente, demonstrou total incompreensão dos Tempos Novos, pois procurou restabelecer o absolutismo, não quis considerar a vida econômica senão como uma fonte de renda para o Tesouro, praticou atentados contra a liberdade religiosa e intelectual da burguesia e entrou em conflito com as novas correntes surgidas com a economia citadina, com o Renascimento, a Reforma e o progresso das ciências naturais. A guerra civil estalou, afinal, em 1642. Olivier Cromwell revelou-se um chefe da burguesia revolucionária, notável pela excepcional energia. Foi ele quem, em 1649, mandou decapitar o rei Carlos I.
Os acontecimentos revolucionários favoreceram a ressurreição das ideias comunistas e das concepções do direito natural. Os adeptos dessas ideias eram denominados os “niveladores” ou os “coveiros”. Não desejavam apenas conquistar a liberdade política, nem restaurar a República, mas reclamavam a nacionalização do solo e o direito de cada cidadão cultivar determinada porção de terra. Seu principal porta-voz foi Geraldo Winstanley. Os escritos de Geraldo demonstram que conhecia perfeitamente a concepção social e histórica os doutores da Igreja e do direito canônico. Foi com os conhecimentos que fez a crítica do regime vigente. Quando Deus ou a Razão criou o mundo, dizia ele, reinava o direito natural comunista. Depois, veio o pecado original, provocado pelo egoismo, pelo instinto da propriedade privada, pelas relações comerciais. E assim começou a História dolorosa da Humanidade. Só com a volta da propriedade do solo às mãos da coletividade será possível, preliminarmente, atenuar, e, depois, extinguir completamente os instintos egoístas. No livro A Lei da Liberdade (1652), Geraldo Winstanley traçou o plano de uma nova sociedade, baseada na democracia e no comunismo, capaz de garantir a todos os homens o pão e a liberdade. Esta comunidade deveria ser regida do seguinte modo: a direção suprema seria entregue a um Parlamento eleito pelo povo, que teria por função elaborar as leis dentro do espírito do direito natural e da razão e, em seguida, zelar pela sua aplicação. A legislação deveria assegurar a propriedade comum do solo, proclamar o princípio do trabalho obrigatório, controlar severamente o comércio e suprimir todas as leis e costumes tirânicos e religiosos. Os produtos da terra seriam acumulados em armazéns e entrepostos públicos. Os gêneros alimentícios produzidos pelos artesãos também seriam entregues aos depósitos públicos. Todos os gêneros e objetos de consumo em geral seriam administrados com espírito comunista. Cada família produziria o que estivesse ao alcance de suas forças, mas poderia retirar dos armazéns públicos a quantidade de produtos suficientes para a satisfação de suas necessidades. Funcionários eleitos pelo povo aplicariam as leis referentes a distribuição dos produtos. Para esses cargos seria então necessário eleger homens calmos e ponderáveis, de preferência homens que já tivessem sentido a opressão dos governos tirânicos ou que manifestassem ódio de morte por todas as modalidades de tirania, ou, ainda, aqueles que, nos governos precedentes, se tivessem destacado pela coragem, pela franqueza, pelo espírito de sacrifício e por tal tivessem sido condenados à prisão ou ao pagamento de multas. Por último, esses funcionários deveriam ter mais de 40 anos de idade para que a coletividade pudesse ter certeza de que eles possuíam a experiência e o conhecimento dos homens necessários ao desempenho de suas funções. Cada comuna elegeria juízes de paz e árbitros encarregados de resolver os litígios entre os cidadãos. Elegeria, ainda, homens de mais de 60 anos de idade para fiscalizar a aplicação rigorosa do princípio do trabalho obrigatório, e das leis referentes à repartição dos produtos. Finalmente, cada comuna elegeria um funcionário encarrego de obrigar ao trabalho todos os cidadãos que, por serem preguiçosos, tivessem sido condenados, recebendo como castigo a incumbência de determinadas tarefas de utilidade pública. A instrução seria obrigatória, tendente a formar autores e não ratos de bibliotecas. A fé e as discussões metafísicas seriam substituídas pela ciência e pela experiência. A poligamia seria interdita e a sociedade zelaria pela pureza dos costumes.
No período da revolução e no pós-revolucionário surgiram alguns reformadores, dentre os quais se destacaram especialmente Pedro Chamberlen e João Bellers.
Na obra O advogado do pobre, publicada em 1649, Chamberlen afirma que o trabalho é a fonte de toda riqueza. Os trabalhadores são, em qualquer parte, diz ele, a força principal da nação, porque são eles que fazem os trabalhos necessários à sociedade e que constituem os exércitos dos países. Os trabalhadores devem, ter os mesmos direitos que os ricos, uma vez que são eles produtores de tudo aquilo que os ricos consomem. Eis porque os ricos devem ser considerados apenas como administradores e nunca como proprietários das riquezas. A produção de riquezas deve ter por finalidade, não o bem-estar dos ricos, mas a supressão da miséria. Chamberlen reclama a nacionalização das propriedades eclesiásticas e reais, em beneficio das camadas; mais pobres da população.
João Bellers (1655-1725) era quaquer. No livro As colônias do trabalho, publicado em 1696, Bellers mostra aos ricos que tudo o que eles consomem provem unicamente do trabalho dos pobres: “O trabalho dos pobres – diz ele – é a fortuna dos ricos”. Bellers propõe a criação de colônias cooperativas. Cada uma delas se comporia de 300 pessoas, apenas, escolhidas de maneira que os membros de cada colônia pudessem fazer todos os trabalhos agrícolas. Seria posto à disposição de cada uma das colônias um fundo de 18.000 libras esterlinas. Esta soma seria obtida por emissão de ações.
“Nessas colônias, os pobres viveriam em comunidade, tomando por exemplo a vida dos primeiros cristãos”. A medida do valor das coisas não seria mais o dinheiro e sim o trabalho.
O direito natural que, como já vimos, dominava todo o pensamento social da Idade Média, constituiu as bases das teorias sociais dos Tempos Novos. A questão de saber como se tinha operado a passagem do comunismo primitivo para o regime da propriedade privada prendia a atenção dos maiores espíritos. Se conseguíssemos provar que esta passagem se dera simplesmente pela violência, a usurpação e a astúcia, isto seria o suficiente para a condenação moral da sociedade burguesa. Tratava-se, consequentemente, de legitimar a propriedade privada, da mesma forma que Ocam e Wiclef haviam legitimado a realeza. E esta legitimação se fez de forma idêntica. Sob a influência do progresso da economia citadina, onde as relações sociais se faziam por negociações ou contratos, admitiu-se que, a medida que o primitivo estado de coisas se complicou (em consequência do aumento da população, da procura dos produtos e das trocas com os países vizinhos), os homens, que até então eram livres e iguais, entraram em acordo, de maneira expressa ou tácita, para dividir a terra, garantir a subsistência e a liberdade de cada cidadão, e, finalmente, criar um governo encarregado de manter a ordem assim estabelecida.
A propriedade e o Estado não haviam, pois, surgido da violência, mas emanavam de um contrato. O resultado deste foi um novo direito, com valor idêntico ao do antigo.
O sociólogo conservador inglês, Tomaz Hobbes, que escreveu durante a Revolução inglesa, pensava que, inicialmente, tudo era comum, mas que esse estado de coisas acarretava necessariamente uma guerra de todos contra todos. Segundo o que pretendia, foi justamente por isso que os homens resolveram entrar em acordo para instituir a propriedade privada, fundar um Estado nomear um soberano. A partir de então, o povo não mais podia protestar contra coisa alguma porque, desde o momento que tinha um rei, renunciava, automaticamente, ao direito de livre determinação.
Locke, partidário da Revolução inglesa, celebrou com entusiasmo a vitória da burguesia em 1689, e rejeitou a teoria de Hobbes quanto a origem da realeza. Mas sustentou que a propriedade privada existia antes do contrato social. Segundo ele, já existia propriedade privada antes da prescrição do direito natural. Desse modo, podia-se concluir que a propriedade privada era duplamente legítima. Locke o apoiava com a seguinte argumentação; “Indiscutivelmente, tudo o que dá a natureza pertence, indistintamente, a todos os homens, Mas só o trabalho individual dá valor aos produtos da natureza. Eis porque os valores produzidos pelo homem lhe pertencem na qualidade de propriedade privada”. “Ao que o homem tira do estado de natureza, acrescenta alguma coisa, ou seja, uma parte integrante da sua individualidade. Por isso, tudo o que o homem retira do estado natural deve pertencer-lhe como propriedade particular. O trabalho individual é a linha de demarcação que separa as coisas fabricadas pelo homem dos produtos brutos da natureza. Este trabalho adiciona a cada objeto alguma coisa que ele não possuía, alguma coisa que a natureza não lhe havia dado e que transforma o produto natural em propriedade privada. O trabalho é o título jurídico da propriedade”. Isto, evidentemente, já se passava no estado de natureza. Por consequência, a propriedade já existia nessa época. Pode-se então concluir que a propriedade se baseia no direito natural. Não todas as formas de propriedade, mas somente a propriedade privada, fruto do trabalho individual. Locke, quando defendia essa tese, de modo algum se propunha defender o comunismo: desejava apenas defender a burguesia e atacar o feudalismo. Para isso, afirmava que a propriedade burguesa é o produto do trabalho, ao passo que a propriedade feudal não é senão o produto do roubo e da rapina. A tese de Locke — o trabalho é a origem da propriedade — foi, mais tarde, adotada pelos socialistas, mas, desta vez contra a burguesia.
O economista Adam Smith declara, no seu livro Riqueza das Nações, que a propriedade comum primitiva garantia a cada um o produto de seu trabalho. Acrescenta, entretanto, que a propriedade privada assegurara a produtividade do trabalho e se tornava, por conseguinte, justificável.
O arquidiácono W. Paley, no seu livro A Filosofia Moral e Política (1785), defende uma tese análoga, que mais tarde foi incorporada aos princípios sustentados por todos os manuais universitários da Inglaterra. Paley considerava a propriedade privada como condenável, sob o ponto de vista da moral e da lógica pura. Mas, acrescentava ele, a propriedade privada é necessária à produtividade do trabalho. Paley é o autor da famosa fábula dos pombos:
“Imaginemos um grupo de 100 pombos num campo. Em vez de cada um consumir à vontade os produtos do solo, 99 deles juntam os grãos num só monte e só reservam para si a palha e os detritos.
Esses pombos convenceram-se da necessidade de terem à sua frente um deles, talvez o mais fraco e o pior. A este entregam o monte de grãos que ajuntaram. Durante o inverno, os 99 pombos passam fome e, sem um protesto, deixam o pombo, que eles próprios escolheram para chefe, esbanjar os grãos. Finalmente, um dos 99 pombos, mais audaz ou mais faminto que os outros, resolve comer um dos grãos do monte. Mas não consegue levar avante seu intento, porque os 98 restantes se atiram sobre ele e o fazem em pedaços. É isto que acontece diariamente na sociedade humana em que vivemos; em cada 100 homens há 99 que se esgotam para que 1 possa viver no luxo e na abundância. E esses 99 homens contentam-se com uma alimentação insuficiente, grosseira, e parecem satisfeitos com a própria miséria. Foram eles que tudo produziram. Mas cedem voluntariamente o fruto de seu trabalho a um dos seus semelhantes, frequentemente o mais fraco e o pior desses 99 homens: uma criança, uma mulher, um louco. E eles, sem um protesto, consentem que esse indivíduo desperdice e aniquile o fruto de seus esforços. E, se um desses 99 homens tiver a audácia de tocar na menor parcela do que produziram com seu trabalho, os restantes 98 atiram-se sobre ele e o enforcam como ladrão”.
Compreende-se facilmente que esse estado de coisas é lógico e injusto. Mas tem a sua razão de ser por que a propriedade privada é o melhor meio que existe para aumentar a produtividade do trabalho e da riqueza.
Aí está como os escritores da Inglaterra procuravam justificar a existência da propriedade privada.