História do Socialismo e das Lutas Sociais
Segunda Parte: As Lutas Sociais na Idade Média

Max Beer


Capítulo V - Extensão e Repressão do Movimento Herético


capa

1. —O Movimento Herético na Bulgária.

Os eslavos meridionais penetraram na península balcânica arrastados pela onda das migrações. Viviam em tribos, parentelas e famílias. Possuíam nesse momento uma organização social de caráter democrático. Mas, depois, entraram em conflito com os seus vizinhos e com o Império bizantino e organizaram-se militarmente. Passaram, então, a viver da criação de rebanhos, da guerra e do banditismo. Em virtude dessas novas condições de vida, formou-se rapidamente uma casta guerreira que, feudalizando-se sob a influência do Império bizantino, se apropriou das melhores terras e impôs tributos à população rural. Os camponeses, que desejavam conservar as sobrevivências do regime comunista e democrático em vias de desaparecimento, revoltaram-se.

É necessário lembrar, ao lado disto, um outro fenômeno econômico de grande importância. Na época de Carlos Magno, o comércio entre a Alemanha e Constantinopla realizava-se em grande parte através do país dos avaros (Hungria). Em meados do século VIII, os húngaros venceram os avaros e tornaram-se senhores deste comércio de trânsito entre Constantinopla e a Alemanha. Começaram, então, a acumular grandes riquezas. Os gregos invejaram-lhes a sorte.

"Os búlgaros — diz um escritor da Grécia — são hoje comerciantes. Por isso, tornaram-se egoístas e corruptos”.

O país cristianiza-se à medida que essa transformação se processa. Em 864, a Bulgária adotou o Catolicismo como religião oficial. As ideias gnósticas e maniqueístas invadem nesse momento o país, veiculadas pelo Cristianismo. E, encontrando um terreno favorável, desenvolvem-se principalmente nos campos. Desde então, a luta entre o Bem e o Mal torna-se o símbolo do antagonismo entre a casta feudal e os ricos comerciantes, de um lado, e entre estes dois setores sociais e o povo explorado, de outro. Em outras palavras: a luta entre o Bem e o Mal simbolizava, então, o antagonismo entre a nova sociedade de classe e o primitivo regime igualitário.

O povo trabalhador adota o Cristianismo à luz da doutrina gnóstico-maniqueista à medida que a situação do país se agrava.

Em meados do século X, grande número de padres, chefiados por um certo Bogomil, fundaram uma seita religiosa. O movimento invadiu a Sérvia. Em toda parte conquistou entusiastas, particularmente na Bósnia.

No final do século X, os padres ortodoxos abriram luta contra os bogomilos, que foram acusados de preconizar a desobediência às autoridades, condenar os ricos, insultar os senhores feudais, desprezar os funcionários do Estado, declarando-se ímpios, e de pregar a rebelião dos escravos contra os senhores.

Na seita dos bogomilos havia também duas categorias de membros: os perfeitos e os crentes. Os primeiros viviam em comunidades. Os segundos apenas adotavam a doutrina, sem praticá-la.

As perseguições iniciais contra os bogomilos datam dos primeiros decênios do século XI. Inauguradas por ordem dos papas Inocêncio III e Honório III, essas perseguições estendem-se até o século XV, quando partem da Hungria várias cruzadas para exterminar os hereges, que se defenderam valentemente. Depois de cada derrota, erguiam-se contra os atacantes. Nessas lutas, várias vezes os bogomilos venceram os cruzados. No ano 1400, por exemplo, eles conseguiram implantar o catarismo como religião do Estado em toda a Bósnia. Afinal, foram definitivamente destroçados por uma cruzada húngaro-polonesa de 60.000 homens.

Mas o Cristianismo pouco lucrou com essa vitória. Logo depois, (1385), os turcos esmagaram as forças sérvias em Amselfeld e apoderam-se de toda a península balcânica. Apesar disto, os cruzados continuaram a perseguir os cátaros, até que converteram quase toda a população ao Cristianismo. Em 1463, a Bósnia foi atacada pelos turcos e capitulou sem luta. Na verdade, não possuía nesse momento forças para defender-se. Aliás, por que motivo haveria de lutar contra os turcos para, em seguida, ser aniquilada pela Igreja? O ódio da população da Bósnia contra a Igreja era tão grande que os hereges do país, depois da vitória do Islã abandonaram as suas concepções maniqueístas, que haviam defendido com tanta energia contra os ataques da Igreja, e passaram-se, em massa, para o Islamismo.

2. — O Movimento Herético na Itália.

As cidades lombardas foram as primeiras a despertar, sob a influência das novas forças econômicas e políticas que se desenvolvem, por toda a parte, de meados do século X em diante. Elas tornaram-se centros de comércio e de trânsito entre a Europa e o Oriente, e da finança europeia. Os inconvenientes desta transformação logo se manifestaram. Essas cidades excitaram a cobiça dos imperadores alemães e dos papas romanos. Por isto, a região tornou-se, como a Flandres, um dos maiores campos de batalha da Europa. Sua situação econômica e política toda especial contribuiu consideravelmente para reforçar a consciência das cidades lombardas. As cidades da Lombardia tornaram-se Repúblicas, com Constituições mais ou menos democráticas, e lutaram pela sua independência, contra o papa e o imperador. Nessa luta, tiveram de combater, em primeiro lugar, as pretensões clericais. O clero, com efeito, exigia uma posição privilegiada no interior do território das cidades. Pretendia também conservar as suas imunidades e privilégios, a sua jurisdição especial. Desejava ainda ficar completamente isento de todos os impostos e gozar do direito de executar pelo braço secular as sentenças pronunciadas pelos tribunais eclesiásticos. As cidades, naturalmente, repeliram essas pretensões exorbitantes e, em virtude disso, surgiram graves conflitos, nos quais seus representantes procuravam argumentos para combater as aspirações da Igreja. Eles encontraram esses argumentos, tanto nas velhas tradições democráticas que Marcílio de Pádua recolheu ao seu livro intitulado O Defensor da Paz, como nos textos bíblicos e nas ideias do Cristianismo primitivo. Apoiavam-se, portanto, na doutrina social do Evangelho. Nesses conflitos, surgiram partidos para manter aceso o espírito de oposição à Igreja. A luta travava-se principalmente entre o clero e a burguesia das cidades. Mas, à margem desses dois partidos, os artesãos e os pobres elaboraram também suas teorias próprias para os problemas sociais.

Essas lutas locais foram ainda agravadas pela célebre disputa da Investidura, entre o papa e o imperador, que estalou no decorrer do último quarto do século XI e ecoou profundamente na Itália do Norte. A Personalidade do papa Gregório VII (1073-1085) não permitia que nenhum italiano permanecesse indiferente. Por um lado, sua condenação ao clero corrupto, e, por outro, suas pretensões ao poder temporal, que foram coroadas pela marcha de Henrique IV sobre Canossa, despertaram na burguesia republicana sentimentos bastante desencontrados. A nobreza de caráter, as ideias avançadas desse homem, que condenava o abuso do comércio e lutava contra reis e príncipes, atraíram-lhe a simpatia das camadas operárias e artesãs. Surgiram partidos papistas e imperiais, que só vieram aumentar a confusão geral.

As lutas entre o Papado e os imperadores Frederico Barbaroxa (1152-1190) e Frederico II (1212-1250), exerceram uma influência ainda mais profunda na vida da Itália. Os partidos dos guelfos (papistas) e dos gibelinos (adeptos do imperador), tornaram-se partes integrantes da política da Itália. Em todas essas lutas, o Papado revelou qualidades diplomáticas superiores às do Império. A querela das Investiduras teve como resultado a fundação do Estado da Igreja. Além disso, legou grandes tradições diplomáticas à Curia e fez com que a Igreja conseguisse o apoio do braço secular, na sua luta contra os hereges. A coroação do imperador em Roma tornou-se um instrumento diplomático nas mãos dos papas, que se serviram do poder temporal para aniquilar completamente o movimento herético.

Todos esses conflitos fizeram aparecer outros antagonistas nas cidades lombardas. Enquanto os papas combatiam os imperadores alemães, mostravam-se tolerantes para com os movimentos heréticos da Lombardia. Com rara sagacidade política, com fino tato diplomático, eles compreenderam que precisavam, nesse momento, do apoio das Repúblicas lombardas. Os imperadores alemães, pelo contrário, logo que tiveram à sua disposição forças navais suficientes para pôr em prática seus planos de conquistas, invadiram a Lombardia e tomaram as cidades de assalto. Desse modo, atiraram para os braços dos adversários aqueles que, na realidade, eram seus aliados, porque também lutavam contra o papa. O exército de Frederico Barbaroxa foi vencido pelos burgueses das cidades livres da Lombardia em Linhano, no ano de 1176. Seu sucessor, Frederico II, não foi mais feliz.

Esse jogo diplomático e guerreiro entre o Papado, o Império e a burguesia, preparou o terreno para o desenvolvimento das ideias cataras. As cidades e as vilas da Lombardia tornaram-se refúgios e centros de propaganda catara. No ano 1030, mais ou menos, foi instaurado um processo contra os hereges conhecidos por patarenos, nome derivado do bairro de Milão onde estava localizada a sua sede principal. Mas esta perseguição era ainda de ordem puramente local. De modo geral, os cátaros viveram em relativa tranquilidade até o final do século XII. No ano 1125, chegaram a conquistar o poder em Orvieto, mas foram vencidos pelos ortodoxos, depois de sangrenta luta. Em 1150, conta- com tantos adeptos que atraíram a atenção da Igreja. Nessa época, a Lombardia era fortemente herética, mas Frederico Barbaroxa já não estava mais em guerra com o Papado. Por isso, no concilio de Verona, no ano 1184, o imperador Frederico Barbaroxa e o papa Lúcio III reuniram-se e redigiram um severo édito contra a heresia, estabelecendo a Inquisição episcopal e encarregando o braço secular de executar sentenças pronunciadas pelos tribunais eclesiásticos. Mas isto não impediu o desenvolvimento da heresia. Esmagada num ponto, ela se refugiava noutro, com a cumplicidade das autoridades municipais que não estavam nada dispostas a desempenhar o papel de carrascos dos papas. No início do século XIII, em Milão, Ferrara, Verona, Rimini, Firenze, Prati, Fienza, Piacenza, Trevisi, Viterba, etc... existiam numerosas organizações patarenas. Em Setembro de 1290, uma ordem papal recomendou que todos os bispos adotassem severas medidas contra os hereges e fiscalizassem cuidadosamente a execução dessas medidas. Ordens desse gênero apareciam de vez em vez, provocando perseguições locais, mas não surtiam efeito geral. A Lombardia e principalmente Milão eram os dois mais importantes centros do movimento herético na Europa. Já tivemos ocasião de ver que os cátaros de Estraburgo haviam sido acusados de enviar dinheiro para Milão, onde se encontrava Pickhard, o chefe do movimento. Quando, na França, as autoridades começaram a perseguir os albigenses, grande número deles refugiaram-se na Lombardia, onde foram protegidos pelos correligionários.

Os hereges lombardos tinham criado grande número de escolas. Os alunos que mais se destacavam eram enviados à Universidade de Paris, onde estudavam a escolástica e a teologia, afim de poderem sustentar polêmicas com os representantes da Igreja. Quando o imperador Oto IV foi a Roma para ser coroado, os eclesiásticos da sua comitiva ficaram indignados porque encontraram em Roma escolas que ensinavam as doutrinas gnóstico-maniqueístas. O imperador Frederico II queixava-se também, em 1236, porque o papa nada fazia contra Milão, que naquele momento era o principal centro da heresia. Mas o papa tinha boas razões para agir dessa maneira: a maioria de Milão era guelfa, isto é, contra os Hojenstaufen. Eis porque o papa a deixava em paz.

No século XIII, o catarismo italiano foi reforçado pelo aparecimento das seitas dos arnoldistas e dos valdenses, e, em seguida, dos Irmãos Apóstolos.

A seita dos arnoldistas foi fundada por Arnold de Bréscia. Nascido em Bréscia, na Itália, Arnold estudou teologia em Paris, sob a direção de Abelardo, assimilando o método crítico de seu mestre e manifestando, como ele, ótimos dons oratórios. Terminando os estudos, voltou à sua cidade natal. Aí foi ordenado padre. Começou desde então a lutar contra o clero. Afirmava que a posse de bens terrestres era um mal para a Igreja, para o clero e para os ordens monásticas. Suas prédicas produziram um formidável efeito no povo que, desde então, não obedeceu mais à Igreja. O caso foi discutido no concilio de Latrão, em 1139.

O papa destituiu Arnold de suas funções, desterrando-o. Arnold dirigiu-se a Paris e juntou-se a Abelardo. Mas suas ideias propagavam-se rapidamente. Em Roma, o povo revoltou-se contra o papa e confiscou-lhe os domínios. O papa ordenou então que Abelardo e Arnold fossem encarcerados num convento e seus livros queimados. Abelardo submeteu-se. Mas Arnold, pelo contrário, continuou a propagar suas ideias com redobrada intensidade. Acabou conquistando em França tão grande número de adeptos que nenhum bispo teve coragem de executar a decisão papal. Só quando o papa se dirigiu diretamente ao rei da França, Arnold foi obrigado a deixar o país. Dirigiu-se então à Alemanha e depois à Suíça. A seguir visitou a Itália, onde a sua popularidade, durante a ausência, havia aumentado. Em Roma, os hereges agruparam-se em torno dele. Arnold tornou-se o centro de todo o movimento de oposição ao Papado. Frequentemente, falava em público, atacando violentamente o papa e os cardeais, a quem chamava "fariseus do Cristianismo”. Seu colégio — dizia ele — é mais uma casa de comércio ou uma caverna de bandidos do que uma Igreja de Deus. O papa — afirmava Arnold — é um cão sanguinário que se apoia no assassinato e no incêndio, que violenta a Igreja, oprime os inocentes e enche as suas arcas esvaziando as alheias. Arnold era tão popular em Roma que o papa não ousou fazer coisa alguma contra ele. Finalmente, Frederico Barbaroxa, que viera a Roma para ser coroado imperador, conseguiu, mediante um pedido da Cúria, a extradição de Arnold, que foi enforcado e, depois de morto, queimado numa fogueira. Para evitar que o povo lhe prestasse homenagem ou adorasse os seus restos mortais, suas cinzas foram atiradas ao Tibre. Como recompensa, Frederico Barbaroxa viu se coroado imperador pelo papa Adriano IV, sem o conhecimento da população.

Arnold divulgava as seguintes ideias: a herança de Cristo obriga os bispos, os padres e os monges a viverem na pobreza, amando o próximo. O poder temporal da Igreja, suas riquezas, seus privilégios e imunidades só fomentam disputas, conflitos, lutas políticas, processos, intrigas e ardis diplomáticos, numa palavra, o grave desvio do caminho traçado por Jesus. Por isto, os padres são indignos de desempenhar o papel de intermediários entre Deus e os homens e indignos de ministrar os santos sacramentos.

Arnold deixou grande número de discípulos que lhe propagaram as ideias, acolhidas com entusiasmo principalmente pelos operários organizados nas florescentes cidades da Lombardia, em comunidades religiosas e caixas de socorros mútuos. Estas confrarias proletárias fizeram surgir a seita herética dos humiliatas, cujos adeptos eram, na maioria, tecelões lombardos. Desde o começo da Inquisição, instituída por decisão de concilio de Verona, (1184), aquela seita foi violentamente perseguida. Finalmente, com a seita dos arnoldistas, os humiliatas aderiram ao movimento herético, sofrendo por isso represálias da Igreja.

Segundo Arnold, o verdadeiro sucessor de Cristo e dos apóstolos deve viver na pobreza. Esta ideia central de sua doutrina, inspira-se manifestamente nos ensinamentos de Francisco de Assis. Francisco de Assis, é verdade, conservou-se fiel à Igreja, conseguindo, desse modo, evitar as perseguições. Mas a ordem que fundou afastou-se da ideia fundamental que lhe norteava toda a atividade. Os Franciscanos, com exceção apenas da ala esquerda, realizaram acordos de toda a natureza. Abandonaram completamente a regra da ordem e acabaram fazendo as pazes com a Igreja. Os Franciscanos descontentes com esta nova orientação, procuraram voltar à ideia inicial que havia determinado a fundação da ordem. Sob a direção de Geraldo Segarelli, esses Franciscanos descontentes fundaram uma nova seita, a dos Irmãos Apóstolos.

Em 1248, um jovem camponês inculto apresentou- se no convento dos Franciscanos de Parma e pediu para ser admitido na ordem. Não foi atendido. Disseram-lhe que era muito simples para tornar-se Franciscano. Mas o camponês não desanimou. Mandou fazer um hábito igual ao que havia visto nas imagens dos apóstolos — manto branco e sandálias, — deixou crescer os cabelos e a barba, e começou a pregar sobre o tema: "Arrependei-vos e convertei-vos, porque o reinado de Deus se aproxima!”. Depois, vendeu todos os seus bens, guardou num saco o dinheiro que assim apurou, e foi pregar na praça do mercado. Quando a multidão se aglomerou para ouvi-lo, ele atirou o dinheiro no meio dos assistentes, gritando: "Quem quiser que o apanhe!” Logo depois, grupou certo número de adeptos, que começaram também a pregar, aconselhando os cristãos a penitenciarem-se, atacando a Igreja corrupta, e anunciando o próximo advento do reino de Deus. Surgiu, assim, a seita dos Irmãos Apóstolos. Todos os seus membros viviam na pobreza e percorriam o país pregando ao povo, que os ouvia de bom grado. Grande número de mulheres juntaram-se-lhes. Os Irmãos Apóstolos estavam muito mais próximos da vida sentimental das massas populares do que os Franciscanos. Por isso, tiveram logo contra si a inveja das ordens mendicantes e do clero. Desde então, começaram a ser considerados pela Igreja como perigosos. O concilio de Lyon, em 1274, interditou todas as ordens mendicantes não reconhecidas pelo papa. Estabeleceu, ainda, que essas ordens deviam aderir às ordens regulares já existentes, ou, pelo menos, renunciar a todo o proselitismo. Apesar desta decisão, a seita dos Irmãos Apóstolos continuou a crescer. E cresceu tanto que em 1286 uma bula papal ordenou que todas as autoridades eclesiásticas adotassem enérgicas medidas para destruí-las. Alguns Irmãos Apóstolos já haviam sido também acusados de heresia. O clero recomendou à população que se afastasse deles. Em 1294, os Dominicanos começaram a persegui-los. Segarelli foi preso e queimado numa fogueira (no ano 1300 aproximadamente). Foi substituído por Dolcino, que, na realidade, era o verdadeiro chefe da seita, desde a prisão de Segarelli. Dolcino possuía, de fato, ótimas qualidades de chefe: era corajoso e enérgico, feito para a luta. Desprezando todas as decisões dos concílios e das bulas papais, Dolcino continuou a atividade pública, até que o papa preconizou a organização de uma cruzada contra a sua seita.

As lutas de Dolcino contra o Papado foram grandiosas que podem ser comparadas, guardando-se as proporções, à luta de Espártaco contra Roma. É justamente por isso que as memórias a seu respeito, que chegaram até nossos dias, têm um caráter tão romântico.

Dizia-se que Dolcino era filho de um padre descendente de família nobre. Por amor de uma noviça, Margarida, penetrara como empregado num convento, em Tridente, onde estava a mulher amada, que conseguiu raptar.

Em seguida, segundo as crônicas da época, Dolcino viveu com Margarida, errando através do Trentino e da Dalmácia, pregando a comunidade dos bens e das mulheres. O que se sabe ao certo é que ele nasceu na região de Novara, estudou teologia e conheceu as obras de Joaquim de Flora. Possivelmente, foi gibelino, como Dante e tantas outras personagens notáveis da Itália. Seus sentimentos violentamente antipapistas falam a favor dessa hipótese.

Dolcino calculava, apoiando-se nos textos bíblicos, que no período compreendido entre 303 e 306 produzir-se-ia um importante acontecimento na História da Humanidade. O imperador, nesse período, venceria definitivamente o Papado. Deus, em seguida, faria subir ao trono de São Pedro um papa cheio de benignidade.

“Ao redor desse papa ficarão os partidários da vida apostólica. E o espírito de Deus estará com eles. Dentro de pouco tempo terão multidões a seu lado. O novo imperador e o papa que surgirá em lugar do papa assassinado (Bonifácio VII), reinarão até que, como S. João anunciou, o grande inimigo de Deus se levantará pela última vez. Chegará então o dia do Juízo Final”.

Em última análise, tudo isto não era mais que o velho sonho do reinado milenar, o sonho da instauração de uma era de paz, de virtude, de fraternidade. Eis, em síntese, as ideias que inspiravam a atividade de Dolcino.

O seu prestígio aumentou de maneira prodigiosa, quando, por singular coincidência, o papa Bonifácio VIII teve um fim trágico no ano 1303. Desesperado com o resultado desfavorável da luta contra o rei da França, Felipe o Belo, Bonifácio morreu depois de um ataque de loucura furiosa. Seus servidores, certo dia. o encontraram roendo um bastão de madeira, amaldiçoando Deus e invocando o diabo. Completamente louco, batia com a cabeça de encontro às paredes. Seus cabelos brancos estavam empapados de sangue. Bonifácio VIII morreu no ano 1303, no Vaticano. Dolcino havia profetizado esse fim trágico do papa durante a vida de Segarelli. Havia também declarado que, no ano de 1303, começaria a ruína do Papado. Depois deste fato, o número de partidários de Dolcino aumentou prodigiosamente. Ele dirigiu-se em seguida a Novarra, sua província natal, onde foi aclamado por uma multidão imensa de cátaros, que se passaram, em massa para o seu lado. Mas a Inquisição desencadeou, logo depois, tão violenta perseguição contra a sua seita, que Dolcino foi obrigado a fugir errando de cidade em cidade. Seus amigos e adeptos foram cruelmente castigados. As casas de todos os elementos apontados como partidários de Dolcino foram arrasadas. A Inquisição confiscou todos os bens da seita. Mas Dolcino possuía em toda a parte amigos secretos, que o punham ao par dos planos da Inquisição. Assim conseguiu muitas vezes evitar golpes de adversários, fugindo a tempo. Em 1305, termina a vida errante de Dolcino nas montanhas e na região milanesa de nordeste. Ele resolve iniciar a luta armada contra a Inquisição. No momento em que toma essa resolução, Dolcino encontrava-se na vila de Campertólio, nos arredores de Novara. Daí, parte em companhia de alguns partidários para a montanha onde edificou uma colônia, armazenou víveres e se preparou para a luta. O papa Clemente V, que residia em Lyon, estava nesse momento organizando uma cruzada contra os hereges de Novara, e dirigindo apelos aos crentes, conclamando-os para a luta. Dolcino foi prevenido, a tempo, da aproximação do exército inimigo. Mas não julgou oportuno lutar. À frente de seus adeptos, abandonou ocultamente o campo. Quando os cruzados, depois de subirem a montanha, se preparavam para atacar os hereges, não encontraram viva alma e se dispersaram. Dolcino ergueu nova colônia na região de Varalo. Aí construiu um acampamento entrincheirado entre montanhas, tão bem situado que a sua colônia era praticamente inexpugnável. Juntou-se-lhe grande número de hereges da Savoia, da Lombardia, do Languedoc e da província de Salzburgo. Os cruzados novamente se reuniram e assaltaram o campo dos hereges. Seus ataques foram, entretanto, repelidos, deixando muitos prisioneiros nas mãos de Dolcino, que só os restituiu a troco de provisões. Depois disso, novamente os cruzados investiram e foram várias vezes derrotados. Correu por todas as aldeias a notícia de que os hereges eram invencíveis. Mas o exército de Dolcino não possuía víveres. A fome invadiu-lhe o acampamento. A situação era extremamente grave, porque a região onde se travavam os combates entre os cruzados e os hereges estava completamente devastada. No ano de 1308, muitos partidários de Dolcino morreram de inanição. As moléstias e a morte invadiram o reduto dos Irmãos Profetas, que foram obrigados a abandoná-lo em Março de 1306.

Mas as forças de Dolcino lutaram até Agosto desse ano, e derrotaram, em sucessivas batalhas, todos os cruzados mandados ao seu encontro. O papa continua dirigindo apelos cada vez mais desesperados, chamando os crentes para uma guerra de extermínio aos hereges. As autoridades civis e eclesiásticas das províncias de Novara e Saboia organizaram um exército de vários milhares de homens, que partiu contra os hereges, sob o comando de dois cavaleiros. Este exército atacou as forças de Dolcino, mas foi também completamente destroçado. Os cruzados debandaram precipitadamente, deixando todas as cidades vizinhas em poder dos hereges. Os castelos, as igrejas e os conventos foram saqueados. Os soldados de Dolcino castigaram severamente as autoridades civis e eclesiásticas.

Mas todas essas vitórias não podiam salvar os hereges, que, inteiramente separados do mundo exterior, não logravam, portanto, receber nenhum auxílio de fora. No inverno de 1308-1307, as forças dos Irmãos Apóstolos sofreram terríveis privações. O frio e a fome lhes devastaram as fileiras. Enquanto isso, os cruzados, grupando novamente as forças com os auxílios que recebiam de toda a parte, organizaram um novo exército.

No dia 23 de Março de 1307, travou-se a batalha decisiva entre cruzados e hereges, no monte Zabelo. Esta batalha durou um dia inteiro. Do lado de Dolcino, só 1150 soldados tinham forças suficientes para lutar. Desses 1150, quase todos, ou seja 1.000, morreram pelejando. Os 150 restantes, esgotados pela fome e pelo frio, renderam-se. Dolcino e sua mulher Margarida estavam entre eles. Os sobreviventes da batalha morreram nas mãos dos vencedores, depois de suportarem terríveis suplícios.

3. O Movimento Herético na França.

O tratado de Verdun (813), que dividiu o Império de Carlos Magno em várias partes, fez surgir o núcleo geográfico da França. Os sucessores de Carlos Magno reinaram nesses territórios até o ano 987. Mas o seu poder foi de tal modo reduzido e enfraquecido pelos vassalos, os duques e os condes, que fora difícil falar num reinado francês, no começo da Idade Média. Os barões feudais eram os verdadeiros reis. Depois da extinção da dinastia carlovíngia, em 987, o poder passou às mãos dos Capetos, que, com o tempo, aprenderam a utilizar-se da força crescente das cidades contra os senhores feudais e a Igreja. E foi assim que conseguiram fundar um Estado francês mais ou menos sólido. A atividade industrial do sul da França, as feiras anuais de Campanha e o desenvolvimento das cidades e dos portos da costa mediterrânea, criaram vínculos sólidos, unindo de maneira cada vez mais íntima as regiões do norte às do centro e do sul da França. Constituiu-se, assim, uma unidade geográfica, unida, formando a base econômica sobre a qual os Capetos ergueram o edifício da sua política nacional centralizadora.

Como em todos os demais povos, a supremacia adquirida pelos interesses econômicos dentro do Estado e da Igreja fez surgir uma corrente de viva oposição nas camadas mais pobres da população. Esta corrente, apoiada no Evangelho, incorporou-se ao conjunto do movimento herético. Como já vimos, as influências cataras manifestaram-se em França desde o começo do século XI. A essas influências é preciso ainda acrescentar a propaganda de Arnold de Brescia, que fez grande número de espíritos compreenderem a necessidade de uma vasta reforma moral e social. Mas o movimento herético independente só surge em França quando Pierre Valdes (1170-1173), negociante de Lyon, entra em cena. Daí por diante, adquire logo grandes proporções. Suas ramificações vão até a Itália, Boêmia e Alemanha. É o movimento valdense, em virtude do nome de seu fundador, Pierre Valdes. Valdes era um rico negociante de Lyon que, apesar de não possuir grande instrução, procurava estudar as verdades do Evangelho nas fontes originais. Para isso, encarregou vários sábios de traduzirem a Bíblia para a língua romana. Fez também traduzir trechos das obras de vários doutores da Igreja. E começou a estudar acuradamente. Mas não ficou só na teoria. Resolveu pôr as suas ideias em prática. Começou renunciando a todos os bens terrestres. Deu parte da fortuna que possuía à sua mulher e dividiu o restante com os pobres. Em seguida, passou a pregar os ensinamentos dos apóstolos e o Cristianismo primitivo. Dentro de pouco tempo, tinha a seu lado numerosos adeptos. Surgiu, assim, a seita chamada dos Pobres de Lyon. Os membros da nova seita usavam vestimentas especiais e acompanhavam o chefe. Como se vê, o movimento valdense é bastante semelhante ao movimento que, na Itália, determinou o aparecimento da ordem dos Franciscanos. Mas, enquanto o movimento Franciscano teve o apoio do papa, tornando-se mais tarde parte integrante da Igreja oficial, a Cúria não quis reconhecer os valdenses, que, por isso, foram obrigados a trilhar o caminho da heresia. É possível também que a atitude mais diplomática da Cúria, em face do movimento criado por Francisco de Assis, fosse motivado justamente pela evolução do movimento valdense para a heresia.

Em 1179, os valdenses enviaram uma delegação ao concilio de Latrão. Desejavam que o papa lhes autorizasse a propaganda. Recebidos pelo prelado inglês, Walter Map, os delegados foram submetidos a interrogatório. Por fim, Map censurou a ignorância dos valdenses e declarou aos delegados que o papa não poderia conceder a autorização pleiteada. Maltratados pela Igreja, os valdenses entraram em contacto com os cátaros, tornando-se uma secção especial desse movimento. No concilio de Verona, assistido por Frederico Barbaroxa, os valdenses foram condenados como hereges. Na Prática da Inquisição... (1331), uma das melhores fontes para o estudo do movimento cátaro, o Dominicano Bernardo Guidonis expõe detalhadamente a doutrina dos valdenses. Estes dividiam-se em dois grupos: os puros e os amigos ou crentes. Os primeiros desempenhavam funções de professores e chefes. Quando aderiam ao movimento, entregavam todos os seus bens à caixa da associação, que fornecia aos aderentes os meios de subsistência necessários. Se os recursos da caixa central não cobriam as despesas, a seita apelava para as cotizações dos simples aderentes, que prontamente forneciam os donativos solicitados. Isto acontecia porque os valdenses eram homens de notável elevação moral. Interrogado pela Inquisição sobre a sua doutrina, um valdense de Tolosa respondeu:

"Minha seita manda não fazer o mal a ninguém, não desejar aos outros o que não queremos que nos aconteça, não mentir nem jurar. — Eis nossa lei”.

Um valdense da Pomerânia respondeu da mesma forma à Inquisição em 1394. Os mais encarniçados adversários dos valdenses nunca lhes puderam apontar um só deslise de conduta. Um inquisidor, que os conhecia bastante, assim os descreve:

"É possível identificar os hereges somente pelos seus costumes e a sua linguagem. Porque eles são modestos e vivem na mais completa ordem. Vestem-se com simplicidade e limpeza. Não se dedicam a nenhuma forma de comércio, porque não desejam mentir, jurar e enganar. Vivem exclusivamente do trabalho de suas próprias mãos. Não procuram acumular riquezas. Contentam-se com o estritamente necessário. São castos e sóbrios. Não frequentam estalagens, bailes, nem qualquer centro de divertimentos e prazeres. Nunca se encolerizam. Trabalham constantemente, aprendendo e ensinando. Por isso, só raramente oram. É possível identificá-los apenas pela modéstia e pelo cuidado com que falam. Evitam cuidadosamente toda a grosseria, toda a calúnia, todos os propósitos frívolos”.

Os valdenses possuíam grande número de traduções da Bíblia. Conheciam, de cor, capítulos inteiros das Santas Escrituras. O inquisidor de Passau conheceu um camponês valdense que havia decorado todo o livro de Job. Os membros da seita, depois do trabalho, reuniam-se para consagrar as noites ao estudo. Quando um deles encontrava dificuldade e custava a aprender, os mestres habitualmente diziam:

"Se tu aprenderes uma só palavra por dia, no fim do ano saberás 365. E assim venceremos!”

Profundamente fieis às suas convicções, os valdenses subiam à fogueira alegre e corajosamente. Suportavam com estoicismo os horrores das prisões inquisitoriais e das câmaras das torturas, para poderem espalhar a sua fé.

No século XIII, a seita valdense, na França, era a mais numerosa de todas, particularmente no Languedoc.

Durante os séculos XI e XII, o Languedoc foi a mais livre e a mais próspera região da Europa. As indústrias e o comércio, as artes e as ciências, ali floresciam. Narbona, Tolosa, Albi, Beziers, Carcassona, eram centros da ciência e da filosofia. Os tesouros da filosofia árabe tinham sido divulgados pelos tradutores judeus. Todas as correntes religiosas eram aí asiladas e protegidas. As cidades gozavam de grandes liberdades municipais. Os duques de Aquitânia, os condes de Tolosa e de Provença defendiam zelosamente seus direitos contra a Igreja e o Império.

Os cátaros conquistaram logo grande número de adeptos entre a população dessa comarca. Esses adeptos eram conhecidos como homens bons. Os valdenses podiam também propagar livremente suas ideias. Por isso, seus ensinamentos estenderam-se rapidamente até a Lombardia, o Tyrol, a região de Salzburgo e a Alemanha do sul.

Parece, aliás, que essa doutrina tinha caráter mais religioso do que social. Na atmosfera de liberdade e colaboração de classes em que viviam — a nobreza de Languedoc em grande parte se havia convertido às ideias valdenses, e, em muitos lugares, estava em luta contra o clero — a sua propaganda ocupava-se mais de questões religiosas do que de questões sociais. A cidade Albi era o centro principal do movimento. Por este motivo, os adeptos do movimento valdense foram também chamados albigenses.

Os progressos constantes do movimento valdense no Languedoc inquietaram as autoridades eclesiásticas. Nesse momento, porém, o clero não podia ainda pensar numa repressão de grande vulto, porque quase toda a população se opunha à intromissão dos bispos e perseguia os inquisidores mais rigorosos. A Igreja não teve outro remédio senão valer-se da arma habitual: as cruzadas. Com a promessa da remissão de seus pecados, ela reuniu os crentes para a guerra santa contra os hereges.

A primeira cruzada partiu em 1180. Mas não surtiu efeito: os condes de Languedoc repeliram vitoriosamente o ataque. Em 1195, o papa Raimundo XI excomungou o conde de Tolosa. Mas nada lucrou com isso. A Igreja resolveu então enviar missionários ao Languedoc para converter os hereges. O mais célebre desses missionários foi o famoso Dominico de Gusmão, o fundador da ordem dos Dominicanos. Mas todos esses esforços não surtiram os esperados efeitos. O papa resolveu novamente recorrer à arma da cruzada e deu aos cruzados a seguinte palavra de ordem: "Dividir para reinar”. A guerra não devia começar por um ataque contra os domínios do poderoso conde de Tolosa, mas pela invasão das regiões mais fracas. Esta guerra santa iniciou-se em 1209 sob a direção do conde Simão de Montfort, que demonstrou logo grande energia, tomando de assalto Beziers e Carcassona. Muitos milhares de habitantes, valdenses e católicos, sucumbiram na luta. Os cruzados, diante do morticínio de seus correligionários, hesitavam, adiando o momento do ataque, para não massacrar indiferentemente hereges e católicos. Mas o delegado do papa, o abade Arnoldo de Citeaux, gritou-lhes

"Matai a todos! Deus reconhecerá quais são os seus!”

Nem assim a guerra terminou. O movimento valdense reergueu-se. Novas cruzadas se organizaram contra os hereges. Em 1224, o rei da França resolveu entrar na luta. Desejava aniquilar o poderio dos condes de Tolosa, que viviam quase independentemente, e submeter toda a região à autoridade da Corôa. Do ano 1232 em diante foi possível manter no país uma Inquisição regular, sob a direção dos Dominicanos. Os esforços harmônicos dos cruzados e dos Dominicanos acabaram destroçando o movimento herético. Mas todo o sul da França estava completamente devastado.

Na realidade, a herança dos condes de Languedoc não coube à Igreja, mas à casa dos Capetos, reis de França, e, que, meio século mais tarde, aprisionaram o papa e obrigaram os seus sucessores a fixar residência em Avignon.

Na sua História da Inquisição, Lea resume da maneira seguinte o resultado da cruzada contra os albigenses:

"No século XII, o sul da França era a região mais próspera de toda a Europa. Depois, as cruzadas entraram no país. E o que elas deixaram de pé, a Inquisição destruiu. A Inquisição deixou atrás de si um país arruinado, devastado, com a indústria e o comércio agonizantes. As confiscações transformaram os nobres em mendigos. Os estrangeiros ocuparam-lhes os lugares. Apoderaram-se do solo, e introduziram os costumes brutais do feudalismo nórdico, ou os princípios despóticos do direito romano, nos vastos domínios conquistados pela Corôa. Durante mais de um século, uni povo inteiro, dotado das melhores qualidades naturais, foi torturado, dizimado, humilhado e pilhado. A civilização, que marchava diante de toda a cultura europeia, desapareceu. A honra da Renascença estava reservada à Itália. Mas a unidade da fé fora salva".

A obra da Inquisição foi tão completa que a heresia nunca mais conseguiu tomar pé no país.

Mas, assim mesmo, os valdenses exerceram considerável influência sobre a Igreja e os povos. As ordens mendicantes surgiram em consequência de sua propaganda, da mesma forma que, nos nossos dias, o movimento social-cristão está surgindo como um resultado do movimento operário-socialista. A influência dos valdenses fez-se sentir também na Boêmia. A sua doutrina forneceu aos elementos intelectuais do país as armas ideológicas de que se serviram durante as guerras hussitas.

4. — O Movimento Herético em Flandres

De acordo com os documentos que hoje possuímos, o movimento herético só surge em Flandres no século XII, isto é, muito tempo depois do seu aparecimento na Lombardia e no sul da França.

Na realidade, o movimento em Flandres também começou muitos antes do século XII. Mas somente no século XII o movimento foi perseguido.

Eis porque só então aparecem os primeiros documentos sobre a heresia flamenga.

Antes do século XII, os hereges flamengos não haviam ainda sofrido nenhum processo. Devemos, concluir, então, que o movimento já existia antes do século XII, e que, se somente nesse século começam a aparecer os documentos sobre ele, isto acontece justamente porque nesse momento termina a tolerância e se iniciam as perseguições.

Já citamos uma carta de Wazo, bispo de Liége, mostrando-nos que, nessa época, em Flandres, as perseguições contra os hereges ainda não eram admitidas.

As doutrinas heréticas desenvolveram-se rapidamente nas cidades flamengas. A população dessas cidades de florescente indústria e próspero comércio, tornou-se herética. O nome de Tecelões, dado aos cátaros, origina-se justamente de Flandres. Os cátaros flamengos faziam uma distinção bem nítida entre o Deus do Antigo e o Deus do Novo Testamento. Nada queriam com o primeiro, o Deus da Lei. Para eles, só o Deus do Novo Testamento era o verdadeiro Deus. Mas só o adoravam no seu aspecto espiritual, e não nos sacramentos, nas cerimônias e nas casas construídas pelos homens. Em compensação, preocupavam-se, sobretudo, com a prática de boas ações.

Dedicavam-se assiduamente às suas ocupações. De acordo com as prescrições do Sermão da Montanha, não admitiam nem os juramentos nem a pena de morte. Uma das suas principais virtudes era a castidade. O Cristianismo primitivo era o seu ideal.

A verdadeira criação original flamenga, no domínio da heresia, foi o movimento das beguinas e dos beguardos.

As controvérsias e os escritos sobre a origem e o verdadeiro nome desta seita são muito numerosos. Certos autores apresentam como seu fundador um tal Lambert de Begue, padre de Liége, que mais ou menos no ano 1180 realizou violenta campanha contra a corrupção da Igreja e a venalidade dos padres. Para se livrarem de Lambert, os padres mandaram assassiná-lo. Há também quem diga que, alguns anos antes, Lambert de Begue havia criado uma associação cenobítica de mulheres celibatárias.

Mas a explicação mais plausível das palavras beguinas e beguardos é a que lhe atribui a origem à palavra saxônia, beg, que significa rezar ou mendigar.

As beguinas eram uma ordem leiga feminina. Todos os seus membros viviam na pobreza evangélica. O fato dessas organizações serem formadas por mulheres celibatárias autoriza uma das duas seguintes hipóteses: ou os homens evitavam o casamento sob a influência da doutrina catara, ou no país havia grande falta de homens, em virtude das perdas sofridas durante as cruzadas.

É também possível que a ação simultânea desses dois fatores contribuísse para a formação de tais organizações que, na época, não poderiam tomar senão essa feição religiosa. O sistema das cenóbias serviu-lhes de modelo.

As mulheres aderentes às organizações faziam voto de castidade, e obediência. Comprometiam-se, ainda, a contribuir para o sustento de todos, por meio do trabalho ou da mendicidade, e a praticar sempre os deveres de hospitalidade e da assistência aos enfermos, durante a permanência da vida cenobítica.

Com o tempo, os homens seguiram o exemplo das mulheres, e também instalaram casas de beguardos. Os celibatários, que desejavam viver piedosa e fraternalmente, reuniam-se para trabalhar e viver em comum, para estudar a Bíblia e meditar sobre Deus e o mundo. Do mesmo modo que os valdenses, distinguiam-se pela assiduidade ao trabalho, pela sobriedade e pelo espírito meditativo. Eram estimados por todos. Mas gozavam particularmente da estima das camadas mais pobres da população das cidades.

Alguns beguardos não ficavam satisfeitos com a vida sedentária, baseada mais ou menos no princípio da cooperação. Achavam essa vida insuficientemente perfeita. Para eles, como a economia cooperativa sempre supõe uma economia comum e, consequentemente, uma propriedade comum, a vida que levavam estava diante dos ensinamentos de Cristo e da pobreza apostólica.

Assistimos aqui ao mesmo conflito que lambem surgiu na ordem dos Franciscanos. As beguinas e os beguardos que pensavam desse modo, preferiam a vida errante, fazendo a propaganda das suas ideias e mendigando.

As autoridades eclesiásticas trataram as duas categorias de beguinas e beguardos de maneira diferente. Consideraram os beguardos e as beguinas errantes, como hereges, e desencadearam contra eles uma repressão terrível; entretanto, favoreceram, em geral, os beguardos e as beguinas sedentários, concedendo-lhes até subsídios, com a condição apenas de se subordinarem a uma disciplina severa.

Mas as beguinas e os beguardos, logo depois, entraram em contacto com as diferentes seitas cátaras e aderiram ao movimento antipapista, adotando os ensinamentos de Amalrico e o quiliastismo da ala esquerda franciscana.

Os beguardos e beguinas espalharam-se rapidamente por toda a bacia do Reno. Em meados do século XIII, eram numerosos sobretudo em Colônia, Mogúncia, Estrasburgo e Metz. Nessas cidades, sofreram as primeiras perseguições. O resto da sua história passa-se na Alemanha. Iremos estudá-la no capítulo seguinte.

Os lolardos formavam uma seita aparentada com os beguardos e beguinas. Surgiram mais ou menos em 1300, em Antuérpia. Consagravam-se à assistência aos doentes e aos alienados, mas dedicavam-se principalmente ao enterro dos mortos. Conseguiam os recursos necessários à existência, ora por meio do trabalho manual, ora graças à mendicância. No final do século XIV, os lolardos desempenharam importante papel no movimento herético e social da Inglaterra.

5. — O Movimento Herético na Alemanha

Não houve, na Alemanha, movimento herético e social independente. Todas as correntes heréticas que apareceram nesse país eram de origem estrangeira. É verdade que, passando para o espírito alemão, essas correntes heréticas não só se aprofundaram, como também se enriqueceram.

A principio, as autoridades eclesiásticas e leigas da Alemanha não se mostraram dispostas a instaurar tribunais de Inquisição. É possível que a disputa das Investiduras, assim como, de um modo geral, a luta entre o papa e o imperador, determinassem uma certa tolerância, no que diz respeito a opiniões divergentes, em matéria de fé. Mas o certo é que, salvo raras exceções, os padres e os monges alemães nunca mostraram possuir um fanatismo anti-herético tão feroz como o dos padres e dos monges franceses ou espanhóis. Os Códigos alemães dessa época nem sequer mencionam a existência de uma jurisdição especial, dirigida pela Inquisição. O Espelho Saxão (1270, mais ou menos), coletânea de leis dos países do norte da Alemanha, embora declare que os hereges estão sujeitos à jurisdição eclesiástica, protege os acusados para que não sejam vítimas de denúncias motivadas pelo espírito de vingança. Declara, ainda, que os delatores, que não provarem a veracidade de suas acusações, morrerão na fogueira.

Até os séculos XI e XII, bem poucos partidários do catarismo búlgaro-lombardo, em Goslar, foram condenados à morte por causa de suas convicções.

Entretanto, os valdenses, as beguinas e os beguinos, os Irmãos do Livre-Espírito, nessa época já exerciam profunda influência na população do país.

Já em 1199, o papa Inocêncio III condenava os valdenses porque publicavam os seus escritos em linguagem popular. Como os valdenses não respondessem a essa condenação, o papa enviou três delegados a Metz, que conseguiram apoderar-se dos escritos em questão e queimá-los. Alguns anos mais tarde, o bispo Bertrand, de Metz, em seus sermões, atacou os valdenses. Mas a população não lhe deu ouvidos e continuou a proteger os acusados de heresia.

As coisas já não se passam do mesmo modo em 1213. Nesse ano, os valdenses de Estrasburgo são acusados, entre outras coisas, de terem instituído entre si a comunidade de bens e o amor livre. Alguns valdenses foram condenados e morreram na fogueira. Em 1292, encontramos também em Estrasburgo um novo processo Contra os valdenses, logo acompanhado de encarniçadas perseguições. Os hereges que não quiseram abjurar o credo, foram queimados. Outros receberam castigos mais ou menos violentos.

É quando Conrado de Marburgo começa a desempenhar as funções de inquisidor. Conrado era conhecido há muito como terrível adversário dos hereges. Em 1227, o papa Gregório IX confiara-lhe a missão de reprimir o movimento herético na Alemanha e expurgar a Igreja de todos os elementos suspeitos. Na caria que escreve a Conrado, nessa ocasião, o papa se queixa da corrupção e da depravação do clero germânico e encarrega-o de realizar uma reforma capaz de eliminar esse estado de coisas.

Não sabemos ao certo se Conrado conseguiu reformar a Igreja; tudo indica, porém, que nada fez nesse sentido, porque empregou as suas melhores energias na luta contra os hereges. De fato, grande número de pessoas foram logo apontadas como heréticas. Conrado desencadeou a repressão contra populações inteiras. O papa enviou ordens severas aos bispos alemães, recomendando-lhes a aplicação implacável das suas ordens para reprimir a heresia. Conrado, investido de plenos poderes, começou a agir. As vítimas caíam de todos os lados. Toda a população tremia, apavorada com as perseguições. Nenhuma camada social podia considerar-se garantida. Simples denúncia era o suficiente para atirar uma família à desgraça. Conrado acreditava, ou fingia acreditar, nas histórias mais estúpidas, aproveitando-se dos menores pretextos para conduzir os acusados à fogueira ou ao banco das torturas. Era tão bárbaro, tão brutal, cometia tantos excessos que os próprios arcebispos de Treves e de Colônia o aconselharam a agir com mais prudência e moderação no exercício de uma função tão importante para a Igreja. Mas Conrado não lhes deu ouvidos e continuou a praticar toda a sorte de violências.

Em 1232, baseado numa simples denúncia, acusou de heresia os condes de Arnsberg, de Looz e de Sayu, da diocese de Treves.

Certamente, desejava imitar e superar os inquisidores de Languedoc, que haviam conseguido humilhar os poderosos condes de Tolosa. Mas Conrado não compreendeu que tinha diante de si, na Alemanha, situação bem diferente da que existia em França, no momento em que os inquisidores de Languedoc humilharam os condes. Na França, naquele momento, a centralização do poder político e a dependência dos senhores feudais progredia sem cessar. Na Alemanha, processava-se fenômeno inverso: os privilégios dos príncipes e dos condes aumentavam continuamente. A força do rei, pelo contrário, era cada vez menor. O rei não podia, portanto, agir contra os senhores feudais, como o rei da França agira contra os condes de Tolosa.

Em lugar de se deixarem intimidar pela acusação levantada contra eles por Conrado, os condes de Arnsberg exigiram que o arcebispo de Mogúncia convocasse um concílio para resolver o caso. Como os condes de Arnsberg eram senhores poderosos, o rei Heinrich e grande número de príncipes e arcebispos atenderam ao convite. Desse modo, a Assembleia reunida em Julho de 1233 assemelhava-se mais a um Reichstag do que a um concilio eclesiástico. O conde de Sayn declarou-se inocente e disposto a demonstrar a falsidade da acusação levantada contra ele. O inquisidor Conrado compreendeu imediatamente que havia terminado a sua missão. As testemunhas que apresentou, ou nada declararam, ou disseram que haviam sustentado a acusação unicamente porque temiam as perseguições do inquisidor. O concilio transformou-se então num tribunal contra Conrado. A solução definitiva do caso foi adiada e o concilio resolveu enviar um relatório ao papa.

Desesperado com o seu fracasso, Conrado retirou se do concilio e saiu pelas ruas de Mogúncia pregando uma cruzada contra os hereges. Em seguida, pôs-se a caminho de Marburgo, onde residia. Mas não chegou a essa cidade. No dia 30 de Julho de 1233, um grupo de nobres, que se haviam postado na estrada à sua espera, precipitaram-se sobre ele e o assassinaram. Toda a Alemanha respirou, aliviada, como respira o povo depois da morte de um monstruoso tirano.

Em 1248, os hereges realizaram em Schwabisch Hall uma grande manifestação, sem que fossem importunados. O movimento valdense havia conquistado numerosos adeptos na diocese de Passau, que englobava toda a Baviera oriental e o norte da Áustria (A Boêmia e a Stíria). Os valdenses possuíam nessa diocese quarenta e uma escolas, ou comunidades, situadas, em sua maioria, nas cidades. Quase todos os valdenses eram camponeses ou artesãos. Nessa região, no final do século XIII, o movimento sofreu terríveis represálias do Tribunal inquisitorial. Depois, durante um século, a História não fala mais nos valdenses. A Igreja estava, nesse momento, ocupada com a guerra de extermínio desencadeada contra as beguinas e os beguardos, cujo número havia aumentado consideravelmente.

Em 1390, mais ou menos, muitos valdenses da Mogúncia encarcerados na prisão episcopal, sofreram terríveis torturas, confessando o nome de alguns companheiros, que, em seguida, foram perseguidos pelo braço secular. Em 1392, trinta e seis valdenses morreram queimados em Bingen. Na mesma época, muitos valdenses foram descobertos e presos na Áustria, na Boêmia, na Morávia, na Polônia, na Hungria, na Baviera, na Suávia,, na Stíria, em Saxe e na Pomerânia. Os valdenses, em 1315, só na Áustria possuíam para mais de 80.000 adeptos. Um dos inquisidores, o Dominicano Arnold, foi assassinado em 1318, em Krenis. Vinte anos depois, isto é, em 1338, os parentes dos valdenses perseguidos mataram grande número de inquisidores, juntamente com seus esbirros e comparsas. Em Stir, no ano de 1397, foram presos mil valdenses. Destes, cem morreram na fogueira.

No início do século XIV, as beguinas e os beguardos começaram a ser perseguidos. Em 1310, reuniram-se dois concílios provinciais, um em Treves, outro na Mogúncia, que adotaram violentas medidas de repressão contra eles. Nessa época, os beguinos e beguinas eram particularmente numerosos na bacia do Reno. Seus alaques visavam principalmente as ordens mendicantes reconhecidas (Dominicanos e Franciscanos). Os beguinos e beguinas discutiam publicamente com eles. Tudo indica que levavam a melhor nessas polêmicas, tanto assim que o geral da ordem dos Franciscanos foi obrigado a enviar para Colônia, no ano de 1308, a melhor cabeça da ordem, o Franciscano Jean Duns Scott, afim de organizar a contrapropaganda. Mas Scott morreu logo. Os beguinos puderam, assim, continuar a agitação sem serem incomodados.

Em Paris, as coisas tomaram rumo diferente. Nessa cidade, em 1301, a beguina Margarida Poreta de Hennegau foi queimada em praça pública, suportando heroicamente o suplício. O papa Clemente V redigiu muitas bulas contra essa seita, mas tais bulas só foram aplicadas em 1317, pelo seu sucessor, João XXII. O clero fechou as casas das beguinas e confiscou-lhes todos os bens. Atiradas à rua, pobres e abandonadas, as beguinas, na sua maioria, entregaram-se à prostituição. Alguns anos mais tarde, os beguinos começaram a ser perseguidos na diocese de Mogúncia. Em 1317, o papa João XXII lamentava-se em Estrasburgo porque as ordens de seus antecessores não tinham sido cumpridas. Em 1321, esse mesmo papa chamou a atenção do clero, mostrando-lhe que "certas regiões da Alemanha são habitadas por grande número de beguinas, que vivem em comum e vestem um hábito especial”. Afirmava, nessa ocasião, que a conduta piedosa de tal gente era fingida, hipócrita. Por isso, o papa João XXII reclamava a dissolução da seita.

A partir do ano 1320, os beguinos de Colônia começaram, por sua vez, a sofrer violentas perseguições. Seu principal adversário era o arcebispo Heinrich de Colônia, o mesmo que denunciou Eckhart. Em 1325, muitos deles foram julgados pelo tribunal eclesiástico dessa cidade, porque, segundo constava da ata de acusação, difundiam ensinamentos heréticos e pregavam e amor livre. Entre os acusados, uns cinquenta sustentaram corajosamente suas opiniões, e, por isso, foram condenados e entregues ao braço secular, para serem, uns queimados, outros atirados ao Reno.

Mas, de todos os processos, o mais sensacional foi o do lolardo holandês Walter, homem de grande talento, que, nos seus discursos e escritos, redigidos em linguagem popular, demonstrou, além de vasta cultura, grande talento de persuasão. Em 1327, ano da morte de Eckhart, Walter foi preso e submetido às mais terríveis torturas. Mas não vacilou um só momento. Com um heroísmo notável, suportou os mais dolorosos suplícios, sem dizer uma só palavra, sem indicar um só nome. Condenado, esperou a morte com imperturbável serenidade.

Não vacilou, nem mesmo quando subiu à fogueira para ser queimado vivo. Segundo parece, todos esses processos instaurados em Colônia tinham por fim fornecer o material de que o arcebispo necessitava para acusar Eckhart e fazê-lo também morrer na fogueira.

Com o correr dos tempos, apesar de desconhecerem completamente as ideias de Amalrico, as beguinas e os beguinos adotaram doutrinas bem semelhantes aos seus ensinamentos.

Outro fato digno de nota: certos hereges, condenados como beguardos, pertenciam à seita dos Irmãos co Livre-Espírito. Esta seita era panteísta e inimiga de todas as legislações e de qualquer regulamentação social. Seus membros consideravam-se acima do Bem e do Mal e pretendiam viver em liberdade, sem sofrer nenhuma forma de opressão.

Pode-se dizer que seus adeptos, quanto ao movimento herético, guardavam a mesma distância que, nos dias presentes, separa o anarquismo do socialismo.

A corrente herética desse tempo, que mais forte influência exerceu na mística alemã, foi, segundo todas as aparências, a corrente panteísta anarquista que, como já vimos, surgiu pela primeira vez em Paris, no começo do século XIII. Um tal Orthlieb, ao que afirmam alguns autores, foi quem transportou essa doutrina para a Alemanha. Os meios cultos adotaram as novas ideias. Já vimos que, na doutrina de Amalrico, Deus se integra em toda a natureza e atua como força criadora, cuja influência se exerce sobre todos os seres do Universo. A alma do homem seria, assim, uma centelha divina. Eis porque, segundo Amalrico, ela é uma parte da força criadora que anima o mundo, e não a pobre criatura indefesa e má, conforme a Igreja ensina. O homem não precisa, portanto, nem de sacramentos, nem de intermediários especiais entre ele e a divindade, nem de cerimônias ou dogmas religiosos, nem de outros meios inventados para atemorizar os crentes. Sendo, como é, uma partícula da divindade, a alma volta à divindade depois da morte do corpo, mas sem passar por essas fantásticas regiões de suplício, o purgatório e o inferno. O homem precisa ter consciência desse fato para se sentir parte integrante do Santo Espírito. Depois que adquirir a consciência da sua unidade com Deus, não poderá mais pecar, porque a natureza divina que nele existe impede o pecado. Para quem é puro, tudo é puro. Quem é puro tem o direito de fazer tudo que quiser, porque todas as suas intenções nascem de uma inspiração pura, divina. Um homem puro está acima das leis.

Os partidários de Orthlieb apoiavam-se no apóstolo Paulo, invocando a passagem em que este, quando luta para se libertar da lei do Antigo Testamento, declara:

"Nada existe de condenável naqueles que vivem em Jesus Cristo e não procuram a Matéria, mas o Espírito. Porque a lei do Espírito que me faz viver em Jesus Cristo libertou-me da lei do pecado e da morte”.

E, mais adiante:

"Se o Espírito te governa, não estás mais submetido à lei”.

E, finalmente:

"Todos precisam saber que as leis não foram feitas para os justos e sim para aqueles que não são justos”.

Uma tal concepção da essência da lei poderia não ser perigosa para homens como Eckhart. Mas poderia levar os homens de nível inferior ao mais desenfreado individualismo. É possível que os ensinamentos dos Irmãos do Livre-Espírito, ou dos partidários de Orthlieb fizessem muitas pobres beguinas e muitos pobres beguinos perder a cabeça e praticar excessos. É então possível que a acusação de excessos sexuais, levantada pelos tribunais da Inquisição contra alguns heréticos, tivesse certo fundo de verdade. Mas os erros que eles porventura cometeram neste domínio devem ser atribuídos principalmente à influência dos amalricianos e aos discípulos de Ortlieb.

A doutrina destes últimos e dos Irmãos do Livre-Espírito nada tinha de comunista. Eles eram adversários da propriedade privada, mas não eram partidários da propriedade coletiva. Reclamavam pura e simplesmente para eles a liberdade de usufruir todo os bens da terra, sem a obrigação de nenhum trabalho.

Há pontos de contacto entre os ensinamentos de Eckhart e a doutrina dos Irmãos do Livre-Espírito. Mas as conclusões do primeiro são diferentes.

Eckhart sempre viveu na pobreza apostólica, alegrando-se imensamente porque havia conseguido vencer em si mesmo todos os desejos de natureza material. Seus maiores discípulos, os místicos alemães Heinrich Suss e Johann Tauler, viveram também na mais rigorosa simplicidade.

Estavam convencidos de que o homem só poderia unir-se a Deus depois de renunciar a todas as coisas transitórias. Seu correligionário holandês, João de Ruysbrock (1294-1381), propagou doutrina semelhante.

Enquanto os Irmãos do Livre-Espírito, inspirados na doutrina panteísta-amalriciana, chegaram a conclusões anarco-individualistas, os místicos da escola de Eckhart preconizaram, ora a pobreza apostólica, ora a vida cenobítica.

Geraldo Groot de Deventer (1340-1348), discípulo de Ruysbrock, fundou a seita comunista dos Irmãos da Vida Comum, com a intenção manifesta de lutar contra as ideias e práticas dos Irmãos do Livre-Espírito. Mas Groot era completamente intolerante. Quando a Inquisição estendeu as garras sobre o movimento herético da Alemanha, muitos Irmãos do Livre-Espírito refugiaram-se na Holanda, onde esperavam encontrar asilo e poder viver livres de qualquer perseguição, pregando as suas ideias. Não defendera sempre Ruysbrock concepções iguais às suas? Mas Groot acusou-os publicamente de heresia e perseguiu-os com violência fanática. Por felicidade, sua morte prematura salvou a Alemanha dos horrores da Inquisição. A seita que havia fundado desenvolveu-se sob a direção de seus sucessores. Os Irmãos da Vida Comum não estavam ligados por nenhum voto, mas viviam em comunidade de bens e assim trabalhavam. Dedicavam-se ao estudo da teologia, copiavam os velhos manuscritos, ou preparavam-se para desempenhar funções eclesiásticas.

Essas comunidades espalharam-se principalmente por todo o território dos Países Baixos e pela Alemanha do Norte. Numa delas, em Windesheim, é que estudaram Tomaz de Kempis, o célebre autor da Imitação de Cristo, e Erasmo de Roterdam, o grande humanista.

A comunidade de Magdeburgo abrigou o jovem Lutero durante um ano.


Inclusão 30/08/2015