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O período, no decorrer do qual os padres da Igreja se esforçam para desempenhar o papel de intermediários entre o comunismo e a propriedade privada, repousava essencialmente na economia natural. A propriedade do solo já existia. Mas o comércio ainda se encontrava relativamente pouco desenvolvido. A economia monetária apenas surgia. As cidades que datavam da época romana estavam despovoadas. Não fora fundada ainda nenhuma nova cidade. A população germânica da Europa central e ocidental olhava os negociantes com desconfiança, ou mesmo com hostilidade, quando eles lhes vendiam as mercadorias por preços excessivamente elevados. Muito mais vigorosa ainda foi a condenação do comércio pelo sínodo romano realizado em 107, sob a presidência do papa Gregório XII e com a participação dos bispos romanos e franceses. Esse sínodo declarou que era impossível exercer as profissões de soldado e de negociante sem pecar e que aqueles que escolhiam essas profissões só podiam receber a absolvição depois de mudarem de ofício.
A partir do século X, entretanto, assiste-se a uma notável transformação. As trocas de mercadorias interna intensificam-se, tanto nas regiões situadas entre o Sena e o Reno, como entre Flandres e o sul da Inglaterra, na Lombardia e nas costas do Mediterrâneo, e, principalmente, nas cidades da Itália e do sul da França, onde aparecem numerosos centros de indústria e de comércio. Ressuscitam então as velhas cidades e edificam-se novas. Mas não existiam ainda metais preciosos em quantidade suficiente para a cunhagem da moeda e para que a economia monetária substituísse a economia natural.
A maior parte das moedas de prata em circulação tinham sido importadas do Oriente, da Índia e do Império dos Califas. Não satisfaziam, porém, às necessidades da nova economia urbana, que começa a desenvolver-se no decorrer do século X.
Nessa época, são descobertas as minas de prata de Bammelsberg, nas proximidades de Goslar (920), que logo se revelaram as mais ricas minas da Europa. As formidáveis quantidades de prata extraídas dessas minas proporcionaram aos reis de Saxe, Henrique I (919-936) e Oto o Grande (936-973), meios para superar as perturbações do período carlovíngio, para vencer os húngaros e repelir os eslavos, para edificar cidades e reerguer o Império alemão. A vida artesã da Alemanha, da França, de Flandres e da Itália desenvolveu-se consideravelmente. A circulação monetária aumentou. Em 991, Veneza, um dos principais centros do comércio europeu e, particularmente, da Alemanha com o Oriente, firmou tratados com os sarracenos. Nove anos mais tarde, venceu os piratas croatas. No ano 1000, a cidade de Colônia já possuía em Londres um depósito de artefatos de ferro. Em 1016, os comerciantes alemães foram colocados em pé de igualdade com os nacionais, peles tribunais ingleses. Em meados do século XI, Bruges já se tornara um centro do comércio de lã. Os tecidos de Flandres eram célebres no mundo inteiro. As oficinas têxteis multiplicavam-se no norte da França. Foi também nessa época que se inauguraram as famosas feiras de Campanha. O comércio entre o Oriente e o Ocidente animava toda a vida econômica. Os pontos de vista se dilatavam. Surge então a necessidade de uma expansão geral.
Nesse momento, as circunstâncias eram mais favoráveis para a Europa que na época do Império romano. Graças às minas de prata de Saxe e à crescente atividade industrial das cidades, a Europa já podia libertar-se um pouco da dependência em que estivera dos metais preciosos do Oriente e obter, sobre novas bases, uma balança comercial ativa.
Mas um novo perigo ameaçou a Europa. Os turcos invadiram a Ásia Menor.
Em 1071, apoderaram-se de Jerusalém, e, em de Damasco. Bizâncio, entreposto comercial e cultural da Europa, estava ameaçada, e, inutilmente, apela para o papa, que não pode socorrê-la porque se encontra seriamente atarefado com a guerra de investiduras, contra o imperador. Bizâncio, afinal, conclui um tratado com Veneza e obtêm-lhe o apoio: Veneza, boa negociante que era, aproveitou-se desse tratado para obter o monopólio do comércio com o Oriente (1081).
Estes três fatores econômicos e políticos fornecem em grande parte a força necessária para as expedições militares de expansão europeia na Ásia, que se celebrizaram na História com o nome de "cruzadas”. Tais campanhas revestem-se de uma forma religiosa, porque o Papado se voltava, agora, para a política europeia, e porque formam as ideias e os sentimentos religiosos que criaram a psicose da massa, necessária às expedições. A religião, com efeito, era a ideologia dominante, na Idade Média. E as profundas causas econômicas que exercem ação transformadora na base da sociedade não poderiam pôr as massas em movimento se não se expressassem na linguagem da ideologia dominante. Nas cruzadas, os interesses econômicos estão harmonizados com os da religião.
As finalizar o período das cruzadas, que vai de 1096 a 1270, a Itália acha-se na situação de primeira potência comercial da Europa, e as cidades comerciais da Lombardia se haviam tornado os principais centros do comércio e das finanças europeias; as cidades da Catalunha e da França meridional progrediram imensamente. Em todos os centros culturais da Europa ocidental central, a atividade material e intelectual aumenta. A escolástica, vasta tentativa no sentido de demonstrar a veracidade do Cristianismo com o auxílio da lógica e da ciência, atinge o apogeu. Celebrizaram-se as universidades de Paris, Colônia e Oxford. Nas cidades, a economia monetária triunfou. Com ela, a propriedade privada se impôs. Os próprios agricultores independentes foram atraídos para a órbita da economia urbana, tornando-se os fornecedores de matérias primas e dos produtos alimentares necessários à vida material das cidades.
Finalmente, a luta pela hegemonia mundial entre o poder temporal e o Papado, exerceu, também, uma ação transformadora e revolucionária. Numa encíclica dirigida aos bispos, no ano 1081, o papa Gregório VII escrevia:
"Os reis e os príncipes descendem de homens que ignoravam Deus, mas que não ignoravam nem a arrogância, nem o roubo, nem os ardis, nem o assassínio; de homens, em suma, que, através de crimes de toda a natureza, conseguiram reinar sobre os seus semelhantes”.
Nenhum republicano ou democrata exprimir-se-ia de forma tão violenta, a respeito da monarquia.
Por outro lado, as massas populares viam como os Papas eram nomeados e depostos pelo poder temporal, e como, no curso de todas essas lutas, os papas, o clero e os mosteiros se afastavam cada vez mais do ideal cristão da pobreza, da doçura e da humildade.
Preparou-se, assim, o terreno para a heresia comunista. Todos aqueles que se haviam conservado fiéis às tradições comunistas do Cristianismo primitivo, afastaram-se de uma Igreja cujos dirigentes se comprometiam cada vez mais em contatos e alianças com as potências temporais, e que rebaixavam a religião ao ponto de torná-la um simples instrumento da sua política. A partir do século XII, no momento em que o Papado se encontrava no apogeu do poder, irrompem numerosos movimentos armados dos cristãos comunistas, que se recrutavam principalmente entre os artesãos das cidades.
Nessa época, surgem elementos que procuram restaurar o Cristianismo e a pobreza apostólica, sem, entretanto, romper com a Igreja. Foram essas tentativas que fizeram surgir, no começo do século XIII, a ordem dos Franciscanos. Embora acabasse também caindo no monasterismo, das fileiras dessa ordem de mendicantes saíram homens notáveis, que apoiaram todos os movimentos reformadores dirigidos contra o Papado.
Além da ordem dos Franciscanos, foi fundada, contemporaneamente, a ordem dos Dominicanos, ordem também mendicante, que, desde que surge, se mostra sempre disposta a servir as autoridades dominantes e a condenar os hereges. De fato: os Dominicanos sempre desempenharam o papel de policiais e de inquisidores. Houve algumas exceções honrosas, é verdade principalmente entre os Dominicanos alemães e italianos, que tiveram entre si homens como Alberto o Grande, Eckhart, Campanela e Giordano Bruno. Mas esses homens, do ponto de vista intelectual, pertenciam mais à ordem dos Franciscanos que à dos Dominicanos. Um Dominicano, Thomaz de Aquino, apoiando-se na Política de Aristóteles, deturpou completamente o direito natural, despojando-o de todo elemento democrático e comunista, para assim criar uma justificação teórica da ordem econômica burguesa que surgira na Europa, durante as cruzadas.
Pode-se dizer, sem receio de contestação, que, do século X em diante, o desenvolvimento das cidades e da economia urbana começa a exercer uma influência cada vez maior, não só no pensamento e na política, como em todos os conflitos sociais, religiosos e morais de então. Em outras palavras, isto quer dizer que as ideias gerais da época adquirem um caráter cada vez mais burguês.
Após esse estudo geral do período que medeia entre o século X e o século XIV, vamos, agora, estudar as controvérsias teóricas, pró e contra o comunismo, bem como os movimentos heréticos que irromperam.
Nos aspectos em que se manifesta, a partir do século XII até a época da Reforma, o comunismo teve o seu principal apoio teórico não só no maniqueísmo como também nos escritos de Joaquim de Flora.
Joaquim nasceu na Itália, segundo uns, em 1130, mais ou menos, segundo outros, aproximadamente em 1145, e morreu no ano 1202. Francisco de Assis foi, portanto, seu contemporâneo, e certamente lhe sofreu a influência. Os escritos de Joaquim foram, aliás, divulgados pelos Franciscanos.
Joaquim recebeu educação esmerada. Foi em peregrinação à Palestina — convém lembrar que isto se passou na época das cruzadas — onde esboçou o esquema geral da sua doutrina. De volta à pátria, entrou para um convento. Aí, primeiro como monge, mais tarde como abade, Joaquim entregou-se de corpo e alma ao estudo das santas escrituras. Sua atividade foi estimulada pelos papas, e o imperador Henrique VI louvou-lhe os trabalhos. Finalmente, Joaquim fundou uma ordem religiosa em Cosenza, na Calábria, onde viveu no mais rigoroso ascetismo, dedicando-se a trabalhos manuais. Ele próprio fez os leitos do hospital do mosteiro. Cuidou dos doentes, atendeu os pobres com humildade, e assim granjeou rapidamente fama de Santo e Profeta.
Deixou várias obras, entre as quais são dignas de menção a Concordia, em que procura harmonizar o Antigo e o Novo Testamento, um Comentário sobre a Revelação de São João e um Salmo em que estuda a "Trindade”.
Em síntese, as ideias fundamentais de Joaquim eram estas: o mundo está podre. Os poderosos oprimem violentamente os fracos. Os homens vivem viciosamente. O clero perdeu a consciência da verdade e procura esmagar todos aqueles que reclamam uma reforma. A Igreja corrompeu-se e não tem mais fé na sua missão. Os monges depravaram-se. Em consequência desse estado de coisas, surgem os conflitos entre o papa e o imperador, dá-se grande importância aos legisladores, as controvérsias teóricas e os movimentos heréticos se desenvolvem, e os sarracenos avançam, ameaçando toda a cristandade. Para remover tantos perigos só há um meio: uma reforma radical da Igreja. As ordens devem realizar essa reforma, voltando à pobreza apostólica, renunciando a todas as formas de propriedade e a todas as modalidades de poder temporal. Em seguida, poderão enviar missionários para todos os cantos da terra, afim de castigar, não só os súditos, como também os próprios príncipes e senhores.
Esta missão é necessária porque vai começar uma nova era, a do Espírito Santo.
Deus dividiu a História em três períodos. No primeiro, reinou o Pai, que governou seus filhos pelo temor. O segundo foi o reinado do Filho, que governou o mundo pela sabedoria e pela disciplina. Mas este reinado dentro em breve vai findar. Surgirá, por último, uma nova era, a era do Espírito Santo, o reinado do amor e da liberdade, da felicidade interior e exterior. Os dois primeiros períodos, que foram os reinados do temor e da submissão, do trabalho e da disciplina, vão desaparecer definitivamente. Surgirá a era da liberdade, da paz, do comunismo, a era dos pobres e dos oprimidos, na qual desaparecerão para sempre todas as desigualdades sociais, na qual a propriedade privada será também definitivamente abolida.
Os escritos de Joaquim de Flora foram divulgados sob o titulo de Evangelho Eterno. Fato digno de nota: a Igreja considerou Joaquim como um filho fiel, e, ele próprio, sempre combateu impiedosamente as tendências heréticas, mesmo porque a sua doutrina da terceira era não passava de uma forma particular da doutrina quiliástica (o reinado milenar), amplamente difundida nos primeiros tempos do Cristianismo. Apesar disso, os escritos de Joaquim foram mais tarde condenados como heresias.
A doutrina de Amalrico foi, na verdade, muito mais herética.
Amalrico nasceu em Béne, diocese de Chartres e, durante muitos anos, lecionou lógica e exegese na Universidade de Paris. Afinal, foi expulso da Universidade por sustentar uma nova doutrina sobre a divindade. Quando o papa lhe condenou a doutrina, Amalrico morreu de desgosto. Não deixou nenhum escrito. As suas ideias foram divulgadas por seus discípulos, sobre os quais, por isso, a Igreja lançou a excomunhão.
Não conhecemos a doutrina de Amalrico senão através das atas de acusação, fontes bem pouco dignas de fé. Entretanto, essas fontes fornecem uma ideia aproximada dos ensinamentos de Amalrico e de seus discípulos. Inspiravam-se na doutrina de Scott Erigeno (teólogo inglês do século IX), que foi ao mesmo tempo místico e panteísta e que acreditava no ressurgimento da Idade de Ouro. Na obra Da divisão da Natureza, escreve o seguinte:
"A expulsão dos homens do Paraíso não foi mais que a perda da felicidade natural...ES. João diz no Apocalipse: "Eu vi um novo Céu e uma nova Terra, porque o primeiro Céu e a primeira Terra desapareceram”. O novo Céu e a nova Terra significam, como afirmou o bem-aventurado Gregório de Naziancio, o restabelecimento da natureza humana, que deverá voltar ao primitivo estado”.
Erígeno era também panteísta. Ele cita a passagem de Dionísio e o Areopagita, que diz:
"Deus criou tudo e em tudo Ele está”.
Ou, para falar na linguagem dos hegelianos: Deus é um futuro perpétuo e é no processo da criação do futuro que ele se criou a si mesmo e ao mundo. Eis a essência de toda a mística.
Amalrico e os seus discípulos retomaram essas ideias de Scott Erigeno, e ensinaram que Deus está em todas as coisas.
"Ele está tanto em Jesus como no pensamento dos poetas pagãos. Ele fala pela boca de Ovídio e pela de Santo Agostinho”.
Ao mesmo tempo místicos e panteístas, Amalrico e os seus discípulos opunham-se aos ritos, às cerimônias e aos dogmas religiosos. Insurgiam-se contra a adoração dos santos e dos ídolos. Diziam que todo aquele que vive no Espirito Santo está acima das leis. Os discípulos de Amalrico conheciam a doutrina das três eras ensinada por Joaquim de Flora, e julgavam-se precursores da era do Espírito Santo. Lutavam abertamente contra a Igreja. Consideravam o papa como o anticristo e Roma Babilônia.
Tais ideias foram difundidas com um zelo todo especial pelos mais avançados elementos da ordem dos Franciscanos.
O fundador da ordem dos Franciscanos nasceu om 1181 ou 1182 na cidade de Assis, na Itália. Seu pai era um abastado comerciante, que viajava com frequência. Francisco não recebeu nenhuma educação regular. Viveu a vida dos moços ricos, praticando toda a sorte de excessos, entregando-se às praticas mais devassas e corruptas, até que contraiu grave moléstia. Demorou a restabelecer-se. Teve, assim, bastante tempo para pensar. Foi durante a convalescença dessa enfermidade que Francisco de Assis, refletindo sobre o passado, sofreu profunda crise moral que o transformou por completo. Resolveu, então, viver solitário, orando e cuidando dos pobres e dos doentes. Certo dia, uma "voz interior” recordou-lhe a seguinte passagem do Evangelho de São Mateus:
"Ide e pregai que o reinado de Deus se aproxima! Cuidai dos enfermos, lavai os leprosos, despertai os mortos, afugentai o diabo. Dai gratuitamente o que tiverdes recebido gratuitamente. Não deveis possuir ouro nem prata. Contentai-vos apenas com a camisa que vos cobre o corpo”.
Francisco obedece. Reúne a volta de si uma dezena de discípulos. Não desejava de modo algum criar uma ordem monástica. Desejava tão somente agrupar certo número de missionários que vivessem na pobreza e obedecessem aos mandamentos de Cristo, isto é, que ganhassem a própria subsistência com trabalhos manuais, ou, se possível, mendigando, mas sem nunca tocar, em hipótese alguma, no dinheiro.
Francisco não lhes exige rigoroso ascetismo. Seu objetivo era fundar uma missão de cristãos puros, capazes de reformar o mundo em virtude do seu zelo, do seu devotamento e do seu exemplo.
Francisco de Assis não amava a natureza apenas como poeta. Sentia-se parte integrante da criação. Estendia o seu amor fraternal a todas as coisas e a todos os seres vivos.
Era, sem o saber, "místico”. Desprezava a filosofia, a ciência e a teologia. Para ele, o alfa e o ômega do Cristianismo era auxiliar os fracos, socorrer os doentes e os oprimidos e reformar a Humanidade, moral e religiosamente. Não lutava contra ninguém, a não ser contra si mesmo. Eis porque se conservou sempre fiel à igreja.
O número de seus adeptos cresceu com rapidez extraordinária. Durante a sua ausência da Itália (1219- 1220), seu representante Elias transformou os Franciscanos numa ordem monástica e dulcificou a regra.
Francisco, ao voltar à Itália, desgostou-se com essas modificações. Mas, a conselho do papa, acabou aprovando a fundação da ordem.
Francisco compreendia, entretanto, que os seus partidários erraram quando se transformaram numa ordem monástica e aliaram-se à Igreja. Tanto assim, que, num dos seus escritos, diz:
"Trabalho com as minhas próprias mãos e continuarei a trabalhar. Na minha opinião, todos os irmãos devem fazer o mesmo. Acho que não devem aceitar as igrejas, os alojamentos e outros edifícios que não correspondem à pobreza apostólica a que todos nós nos dedicamos. Devemo-nos considerar neste mundo, como hóspedes, peregrinos e estrangeiros. Eis porque ordeno a todos os meus irmãos que não reclamem nenhum privilégio da Igreja, direta ou indiretamente”.
Pouco tempo depois, foi criada por sua iniciativa a ordem dos Clarissas, e, em seguida, a dos Terciários. Ambas estas ordens compunham-se de leigos aderentes à ordem dos Franciscanos — na maior parte operários e artesãos — que viviam fora dos mosteiros e se consagravam ao trabalho social da ordem. Os Terciários constituíam o traço de união entre a ordem dos Franciscanos e os movimentos heréticos comunistas. Foram logo considerados como elementos perigosos, tanto que as autoridades civis resolveram interditar-lhes a adesão à ordem dos Franciscanos.
Após a morte de Francisco de Assis (1226) a ordem por ele fundada cindiu-se. Uma das frações desejava conservar rigorosamente a regra da pobreza evangélica, do trabalho manual e da mendicidade. Os partidários desse ponto de vista foram chamados os "Zelosos”. Mas a outra fração combateu tenazmente esse ponto de vista. Não aceitou o princípio da pobreza evangélica e procurou transformar a ordem numa ordem monástica. Entre estas duas correntes extremas havia uma outra intermediaria, compreendendo a maioria dos membros da ordem que propunha a organização de uma ordem monástica com uma regulamentação moderada, bens coletivos, que deveria trabalhar para conquistar uma certa influência no seio da Igreja e consagrar-se à teologia e às demais ciências universitárias. Esta tendência, a principio, venceu. Mas, em 1247, o líder da ala esquerda franciscana, João de Parma, foi eleito geral da ordem, e imprimiu-lhe uma outra orientação. João estudara teologia em Paris e aderira às ideias do Evangelho Eterno de Joaquim. Era partidário extremado da observação rigorosa da regulamentação da ordem. Geraldo de São Donino, seu amigo íntimo, havia escrito uma Introdução à Doutrina de Joaquim. Nesta obra, Geraldo criticava a Igreja e o Papado mais energicamente que Joaquim, considerava de grande importância o papel das ordens mendicantes e apresentava Joaquim como o Profeta da terceira era. A ala esquerda dos Franciscanos e os discípulos de Amalrico mostraram-se dispostos a colocar o Evangelho Eterno e a Introdução de Geraldo acima do Novo Testamento.
Em 1254, o bispo de Paris enviou a Introduçã0 ao Papa Inocêncio IV. Uma comissão de exame nomeada por Inocêncio IV condenou-a como herética. Geraldo foi preso e João de Parma deposto. Mas isto não impediu que a esquerda franciscana continuasse a considerar o Evangelho Eterno como a verdadeira doutrina e a condenar a Igreja e o papa pela sua desenfreada caça à riqueza. Esta tendência deu origem à seita dos "Espirituais”, que combateu a avidez e a cobiça do Papado Mais de cem membros desta seita morreram na fogueira, no século XIV, pelo fato de defenderem a pobreza apostólica e denunciarem a corrupção da Igreja — contrariando assim as decisões do papa João XXII. A esquerda franciscana originou uma outra seita — a dos Irmãos Apóstolos — que desempenhou papel de relevo nos movimentos heréticos que então se desencadeavam impetuosamente na Lombardia e no Languedoc. Finalmente, foi também a ala esquerda franciscana que fez surgir, durante a luta entre o papa João XXII e Luis da Baviera, os homens que forneceram a este último as armas ideológicas para a luta contra o Papado. O mais notável dentre esses homens foi o franciscano inglês Guilherme de Ocam, um dos discípulos do célebre Duns Scott.
João Duns Scott pertencia à fração moderada da ordem dos Franciscanos. Considerava a pobreza apostólica como o ideal da vida cristã. Para ele, a propriedade privada não se originava do direito divino nem do direito natural, mas do direito civil. Era, portanto, consequência do pecado original. Os homens haviam sido subjugados pelo desejo de dominar e de acumular riquezas. Dai, a luta de todos contra todos; cada qual, daí por diante, luta para apoderar-se da maior parte possível da propriedade comum. É justamente o que faz necessário o Estado e a propriedade privada. A propriedade coletiva foi dividida na base do direito civil, que regula a circulação dos bens. O comércio é útil à sociedade e, portanto, é legítimo. Mas os lucros do comércio não devem destinar-se ao benefício dos indivíduos, à acumulação de riquezas em poucas mãos. Aqueles que açambarcam as mercadorias e provocam a alta dos preços são elementos nocivos à sociedade.
Seu discípulo, Guilherme de Ocam, foi ao mesmo tempo um filósofo e um militante. Defendia ardentemente a regra da pobreza apostólica, e por isso lutava contra as pretensões temporais do Papado. No decorrer desta luta, Guilherme desenvolveu uma interessante teoria sobre a origem da propriedade e do Estado. O papa João XXII encarcerou-o numa prisão de Avignon, da qual Guilherme só conseguiu sair graças à intervenção de Luis da Baviera, em cuja corte se reuniam, naquela época, todos os adversários do Papado. Em Munich, encontrava-se um amigo de Guilherme, Marcílio de Padua, que com ele estudara em Paris. Juntos, aí desenvolveram a teoria da soberania do povo, extremamente audaciosa para aquela época. Marcílio sustenta essa teoria em O Defensor da Paz, por ele escrito em 1324 e dedicado ao rei Luis da Baviera.
Na opinião de Marcílio, o povo deve ser a única fonte do poder legislativo. O povo deve eleger um rei ou um Chefe de governo, que terá de prestar contas de seus atos ao povo. Eis porque é preciso evitar que se eleve demasiadamente alto. O povo não deve nunca consentir que ele organize numeroso exército. O chefe d0 governo, na qualidade de representante do povo, está situado acima do papa, porque o poder papal se baseia não na vontade do povo, mas na usurpação. Marcílio invoca o regime democrático das primeiras comunidades cristãs, em que não existiam diferenças entre sacerdotes e leigos, nas quais os bispos não possuíam nem poder legislativo nem executivo. Conclui afirmando que o bispo de Roma não pode legitimamente possuir um tal poder.
Ocam aplicou a doutrina da soberania do povo à explicação da origem da propriedade privada. Segundo ele, a Humanidade, na sua evolução moral, passou por três fases sucessivas:
1.° — Antes do pecado original; 2.° — depois do pecado original; 3.° — a era da maldade. Na primeira fase, o homem vivia de acordo com o direito natural, sem Estado e sem nenhuma espécie de regulamentação exterior. Tudo era comum. Todos os homens nasciam livres e iguais. No decorrer da segunda fase, o homem foi dirigido pelo direito da razão, que estabeleceu as leis e ordenou aos homens que fossem sinceros, que dominassem as suas paixões e vivessem em harmonia com os interesses da comunidade. Na terceira fase, surgiu a necessidade de opressão exterior. Nasceu, assim, o Estado e a opressão econômica e política.
Como se conseguiu legitimar este estado de coisas contrário ao direito natural e ao direito racional? Não é este eterno? Como pode, então, transformar-se?
Ocam responde a essas perguntas da seguinte forma: O Estado e a propriedade são legítimos somente quando tiverem sido instituídos com a aprovação do povo. A soberania do povo é um direito natural. Se o povo se pronunciar a favor do Estado e da propriedade privada e se essas instituições forem criadas em benefício da coletividade, elas serão, de certo modo, a sanção do direito natural. Esta teoria de Ocam lembra bastante a teoria do contrato social, a qual diz que o Estado foi constituído na base de um contrato expresso ou tácito entre todos os membros da sociedade. Esta teoria é, em geral, atribuída a J. J. Rousseau. Mas, na verdade, pensadores que viveram muitos séculos antes de Rousseau já a haviam enunciado.
Domingos de Gusmão, o fundador da ordem dos Dominicanos, nasceu em 1770 na província de Castela, na Espanha, e morreu em 1221.
Depois de fazer o curso de teologia, Domingos foi enviado por Inocêncio III ao Languedoc para converter os hereges albigenses. Para cumprir esta missão, Domingos partiu para Languedoc, onde esteve dez anos, de 1205 a 1215, pregando e ameaçando, mas sem nenhum resultado. Conseguiu apenas agrupar um certo número de adeptos, com os quais fundou uma ordem. O bispo de Tolosa doou-lhe uma Igreja, na qual a ordem se estabeleceu. Durante toda a sua existência, a ordem fundada por Domingos nunca renegou a sua origem. Com efeito: os Dominicanos tornaram-se, a partir dessa época, os inquisidores da Igreja, os "cães de Deus” (em latim domini canes, expressão que se confunde com Dominicanos), que chacinaram um número enorme de hereges nas fogueiras da Inquisição.
Dentre os inquisidores Dominicanos, o mais célebre de todos foi Tomaz de Aquino (1227-1274). Nobre italiano, aparentado com a casa dos Hohenstaufen, desempenhou papel importantíssimo na história da escolástica e da teologia. Toda a sua ação foi orientada essencialmente contra a filosofia platônica e neoplatônica que comportavam, como já vimos, certos elementos místicos e comunistas. Tomaz de Aquino combateu as tradições comunistas do Cristianismo primitivo. Em compensação, voltou-se para a vida urbana, com o seu caráter de produção camponesa e artesã, apoiando-se nas concepções anticomunistas de Aristóteles. Contribuiu, assim, poderosamente, para a introdução da política e da ética de Aristóteles na teologia da Idade Média. Nele se inspiram os papas modernos que redigem encíclicas contra o socialismo.
Tomaz de Aquino foi iniciado na filosofia de Aristóteles pelo seu mestre Alberto o Grande (1193-1280), que lhe ensinou teologia, em Colônia e em Paris. Alberto o Grande, pertencia à ordem dos Dominicanos. Era o escolástico mais erudito e pela simplicidade de seus costumes ele, entretanto, estava mais próximo dos Franciscanos que dos Dominicanos. Sempre viveu na pobreza. Consagrou sua vida à ciência. Estudou os sábios árabes, tais como Aviceno, Averroes, Maiomonide, que criaram uma doutrina de tendências, preconizando o livre pensamento, porque esses sábios, embora discípulos de Aristóteles, haviam sido fortemente influenciados pela filosofia neoplatônica.
Tomaz de Aquino superou os ensinamentos do mestre. Orientado por um instinto todo especial, fez traduzir do latim e do grego todas as obras de Aristóteles, que daí por diante foram obrigatoriamente estudadas nas escolas. Até então, Aristóteles não era conhecido senão através da sua lógica, da sua física e da sua metafísica. Tomaz de Aquino divulgou também a Política e a Ética, escritas por Aristóteles com a intenção de combater as ideias de Platão, o comunismo e a teoria do direito natural. Como já vimos na primeira parte deste livro, Aristóteles, nessas obras, procura demonstrar que a propriedade privada está mais em harmonia com a natureza humana que o comunismo. Nelas, Aristóteles sustenta que a escravidão não é contrária às leis da natureza, porque — diz ele — certos homens são destinados pela natureza a ser escravos, isto é, nascem escravos. Por consequência, segundo Aristóteles, o comunismo, a liberdade e a igualdade estão em contradição com a natureza humana.
Aristóteles gozava de um prestígio tão considerável na Idade Média, que Tomaz de Aquino, apoiado nas suas ideias, pôde facilmente estabelecer um termo entre as tradições do Cristianismo primitivo e do direito natural, de um lado, e, de outro, entre a, concepções aristotélicas e as condições sociais da Idade Média. A autoridade dos doutores da Igreja era ainda muito forte. Eis porque Tomaz de Aquino foi obrigado a entrar num acordo, uma vez que não podia rejeitar completamente a teoria do direito natural defendida pelos doutores da Igreja.
Tomaz de Aquino submetia-se rigorosamente aos princípios, mas, na realidade, conformava-se com as condições da época. O comunismo, declarava ele, é um regime ideal, que supõe a existência de uma Humanidade ideal. Pôde existir quando a Humanidade ainda era inocente, quando dava os primeiros passos. Então, o comunismo não era ainda um perigo. Mas, atualmente, tornou-se um fator de conflitos e discórdias entre os homens. Se não perdermos de vista a realidade, isto é, os homens tal qual são atualmente, diz Tomaz de Aquino, seremos obrigados a reconhecer que o regime da propriedade privada é o único adaptável a natureza humana, o único regime verdadeiramente natural. Mas é necessário que os ricos deem esmolas aos pobres, porque o supérfluo de uns é o necessário de outros. Aliás, afirma ainda Tomaz de Aquino, não é verdade que a propriedade privada e a desigualdade social sejam necessariamente consequências do pecado original. Teriam surgido mesmo sem ele, porque as condições sociais lhe determinariam o aparecimento. A desigualdade social e econômica é consequência da diferente capacidade dos homens. Uns são mais capazes que outros. O Estado não é também uma consequência do pecado original. Não é, igualmente, um freio destinado a conter as paixões dos homens. É tão somente a melhor forma possível de organização da vida social. Esta doutrina de S. Thomaz de Aquino bem cedo a perfilhou oficialmente a Igreja. É onde se baseia a luta da Igreja contra o socialismo.
Com o desenvolvimento progressivo da propriedade privada e da vida urbana, a partir do fim da Idade Média, a teologia cristã foi abandonando gradativamente o velho direito natural dos doutores da Igreja. Afinal, só os hereges continuaram defendendo-o. Dentre estes, alguns elaboraram doutrinas sociais baseadas nos princípios do direito natural.
Inclusão | 25/07/2015 |