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As complicações sociais, que caracterizamos, manifestaram-se com nitidez cada vez maior no fim do período republicano. Os verdadeiros e únicos vencedores das guerras em que as legiões se empenharam do Reno ao Eufrates, do Danúbio aos desertos do Saara, foram os grandes proprietários de terras e os capitalistas, que acumularam grandes fortunas com os fornecimentos de guerra.
Júlio César, que estivera secretamente ligado a Catilina e que, mais tarde, se tornou um grande capitão, ambicionando os lauréis da monarquia social, procurou levantar as massas populares da Itália, reorganizar as províncias e curar as feridas abertas pelos grandes proprietários de terras e grandes capitalistas. Desgraçadamente, sua tentativa era de caráter ditatorial. Acabou sendo assassinado no dia 15 de Março do ano 14. Treze anos mais tarde, Roma já era uma monarquia. Esta época notabilizou-se por um extraordinário desenvolvimento intelectual, pelo aparecimento de poetas como Virgílio, Ovídio, Horácio ou de historiadores como Salústio e Tito-Lívio. É também nesta época que surgem, no povo e nos meios cultos da Palestina e de Alexandria, os elementos de uma nova religião: o Cristianismo.
As relações sociais não haviam sido, em nada, modificadas. A Itália encerrava ainda grandes domínios, formidáveis propriedades, cultivadas pelo trabalho de escravos ou colonos. A instalação de colônias de camponeses e de veteranos, as expulsões, assim como as apropriações de terras públicas, eram os meios utilizados de preferência pelos grandes proprietários rurais. Nas províncias, o poder era exercido pelos arrecadadores de impostos, que exploravam os agricultores de maneira desumana. A população diminuía. O serviço militar obrigatório foi substituído pelo sistema de alistamento voluntário. E, como as guerras se tornavam raras, o número de escravos declinava progressivamente. A força vital do povo italiano começou a decrescer. A célebre frase de Plínio, o Antigo:
"Os latifundia arruínam a Itália e já começam também a arruinar as províncias”,
caracteriza perfeitamente a situação Império romano, a partir do século I, A. C. Plínio escreveu esta frase em meados do século I. Mas havia bastante tempo que já se dizia, em Roma, que a importância de um homem se avaliava pelas suas posses.
O poeta latino Horácio, que foi simplesmente um demagogo vulgar, numa ode lamenta-se:
"Homem ávido: és visto todos os dias derrubando as cercas dos campos vizinhos e saltando por cima das divisas de teus clientes. Expulsos por ti, mulher e marido carregam ao colo seus deuses familiares e seus filhos seminus”.
Sêneca, o Antigo (pai do filósofo) reproduz a queixa de um agricultor, vítima de um vizinho rico, que lhe devastara as plantações e lhe incendiara a casa:
"Vós, oh! rico, vós possuis todas as terras e ocupais as cidades e arredores com vossos suntuosos palácios. Para que as vossas vilas tenham, no inverno, o calor do verão e, no verão, o frescor do inverno, as vossas casas se estendem em todos os sentidos, e não sofrem as intempéries das estações, ao passo que os agricultores são obrigados a viver em regiões outrora habitadas por um povo inteiro, e o poder de vossos administradores se torna maior que o dos reis”.
Um camponês pobre assim descreve seus padecimentos
"Antigamente, não havia nas vizinhanças nenhum homem rico. Perto de mim moravam numerosos proprietários que cultivavam seus modestos bens e viviam em perfeita harmonia com a vizinhança. Como tudo mudou! A região, que antigamente dava de comer a tantos cidadãos, é hoje uma única plantação enorme que pertence a um só homem, a um só proprietário! Descortina-se, a perder de vista, em todas as direções. Arrasou todas as fazendas que englobou, destruiu as casas que herdamos de nossos antepassados. Os antigos proprietários foram obrigados a abandonar suas casas e partir para longe, com as mulheres e os filhos.
A região é agora um imenso ermo. De todos os lados vejo-me cercado pela riqueza, como uma muralha intransponível; aqui, é o jardim dos ricos; ali, seus campos; acolá, seus vinhedos; mais além, suas florestas e suas pastagens... E esta extensão imensa amplia-se a perder de vista, e só se interrompe nos limites do domínio de um outro grande proprietário”.
Estas queixas são os gritos de agonia do camponês romano moribundo. E, nas cidades, a situação do proletariado não era melhor...
Na Grécia, nos períodos de violentos conflitos sociais e de insurreições populares, os poetas e filósofos voltaram o pensamento para o tempo do comunismo primitivo, quando os homens viviam uma vida simples, livre e harmoniosa. Nesses momentos, enaltecia-se a Idade de Ouro, isto é, condenava-se o regime da propriedade privada, da violência, da especulação, das guerras internas e externas.
É o que também acontece em Roma.
Já Salústio, no Catilina, recorda melancolicamente os ditosos tempos passados, a era em que os homens não conheciam ainda a ambição e se contentavam com o que possuíam. Esta ideia aparece ainda mais nitidamente em Virgílio. Nas Geórgicas, por exemplo, relembra os tempos em que o mundo vivia ainda sob o reinado de Saturno (antes de Júpiter, o deus da Idade do Ferro, que tornou os homens tão desgraçados):
"Antes de Júpiter, nenhum lavrador exercia qualquer domínio nos campos. Ninguém podia estabelecer limites, nem regulamentar a divisão. Tudo era comum. E a Terra, sem que ninguém o solicitasse, prodigalizava mais livremente os seus benefícios”.
Virgílio quer dizer com isso que, na época do comunismo primitivo, a terra era muito fértil e distribuía dádivas com liberalidade, sem que os homens se esforçassem muito. Esta ideia corresponde à lenda bíblica do Paraíso Terrestre. Segundo a Bíblia, só depois do pecado original é que na Terra nasceram plantas espinhosas como os cardos. Virgílio espera para breve o ressurgimento da Idade de Ouro que novamente tornará os homens felizes como durante o reinado de Saturno.
"Eu vejo o desabrochar de uma série de séculos que renascem. A virgem Astréia volta à Terra, e com Saturno restaura o seu reino. Descem dos céus novas legiões de heróis. Sorri, oh! crianças, porque com ele termina a Idade do Ferro e se reinicia, no mundo, a idade de Ouro” (Virgílio — Bucólicas).
Horácio, por sua vez, entoa hinos à simplicidade dos bárbaros. Louva-lhes o sistema de vida comunista e maldiz a riqueza:
"Mais feliz é Sito que, no deserto, arrasta num carro o lar ambulante. Mais felizes são os animais selvagens. Seus campos, sem limites, produzem uma colheita livre e comum... Levemos ao Capitólio, ou melhor, atiremos ao mar mais próximo todas essas pérolas, esses diamantes, esse ouro inútil, causa de todos os males!” (Horácio — Odes).
Nos meios cultos da época, não eram poucos os indivíduos que aspiravam à vida simples, natural, sem luxo, sem preocupações, sem as lutas da civilizarão. Aqui se manifesta nitidamente a influência estoica. É em Sêneca, o Filósofo, (filho de Sêneca, o Retórico) que ela se exterioriza com maior clareza. Nas Epístolas, Sêneca, o Filósofo, descreve longamente todos os encantos da vida simples e natural do comunismo primitivo.
"Haverá felicidade maior que a dessa raça de homens? Desfrutavam em comum todos os bens da natureza, que, mãe extremosa, os defendia e os cercava de cuidados durante toda a existência. Gozavam em comum as riquezas comuns. Não eram esses homens verdadeiramente ricos, já que nenhum deles era pobre? Mas quando surgiu a cobiça, esses homens que possuíam tudo, tudo perderam, porque tiveram a necessidade de reservar alguma coisa, de acumular bens para criar propriedade individual. Mesmo que o homem corrigir o seu erro e reconquistar o que perdeu, expulsando o vizinho pela violência ou comprando-lhe as terras, até estender seus domínios pela superfície de províncias inteiras, que, para serem atravessadas, demandam vários dias de viagem, mesmo assim, voltará ao ponto de partida... Porque no princípio não se conhecia nem a abundância, nem a falta de coisa alguma. O mais forte não esmagara ainda o mais fraco. Tudo se dividia pacificamente. E cada qual tratava o vizinho como a si próprio."
Sêneca foi, certamente, um dos mais notáveis filósofos romanos. Via a hora da morte como aquela em que iniciaria uma nova existência eterna. Por isso, exaltava a felicidade de além-túmulo. Dizia que os inimigos e os escravos deviam ser tratados com humanidade, porque
"o homem é sempre sagrado para o próprio homem”.
Suas ideias são tão análogas às cristãs, que muitos sacerdotes da Igreja o consideram — embora nada o prove — como um amigo de São Paulo. Em Sêneca, podemos verificar como a moral estoica se encaminhava no sentido já trilhado, antes, pela moral judaica na Palestina e pela moral greco-judaica em Alexandria. Esta metamorfose da moral estoica é a consequência natural de todo o desenvolvimento intelectual, político e social de Roma no período que vai do primeiro século da República ao primeiro século do Império.
O desejo de uma ordem social harmônica é seguido de várias tentativas de criar uma moral mais nobre, mais humana, mais pura. E, como sempre, quando o mundo crente procura um sistema religioso e moral toais elevado, a ideia de Deus se espiritualiza. Observamos o mesmo fenômeno quando estudamos os profetas judeus: no momento em que os judeus querem criar um sistema moral mais elevado, Jahvé perde seu caráter local e se eleva à categoria de um Deus da Justiça. De então por diante, a ideia de Deus começa a fazer-se abstrata. Também, entre os romanos, os velhos deuses perdem suas características e adquirem novas fisionomias em circunstâncias idênticas. Os setores mais cultos da sociedade começam, a partir daqui, a sofrer a influência dos mistérios egípcios e a adotar os cultos do Oriente.
A moral estoica progride e o judaísmo conquista grande número de adeptos.
Idêntico fenômeno observa-se na Grécia, onde o Pentateuco já fora traduzido para o idioma nacional, sob o título de Sepluagina, desde o século III, A. C. Quando as catastróficas comoções — provocadas, de um lado pelas guerras de Pompeu e César, e, de outro pelos conflitos e lutas sociais cada vez mais violentos — abalam os espíritos, os homens do Império romano- helênico ou adotam as novas ideias das massas populares agitadas, ou se inclinam para as doutrinas que surgem com a fusão do pensamento grego com o pensamento oriental. O advento de uma nova era, a era do Cristianismo, aproxima-se.
É evidente que as novas ideias não podiam exercer influências semelhantes em todos os setores da população do Império romano. Cada setor social possuía diferentes condições de vida material. Haviam sido educados de maneira diversa e estavam sujeitos a diferentes influências tradicionais, políticas e geográficas. Não podiam, portanto, ser influenciados da mesma forma pelas novas ideias de origem oriental.
Mas, de um modo geral, é possível distinguir na população do Império duas categorias de influências. Os pobres e os oprimidos desejavam uma justa divisão dos bens da Terra. Desejavam, também, a supressão de todas as restrições, de toda a pressão e de todas às formas de dependência material. Suas principais reivindicações eram a justiça social, o rebaixamento dos ricos e a elevação de todos os pobres e oprimidos. Numa palavra: desejavam uma transformação comunista da sociedade. As camadas cultas, ao contrário, eram impelidas por motivos de ordem puramente ideológica. Não desejavam modificar a estrutura social do Império. Procuravam, apenas, nas novas ideias, um consolo religioso. Buscavam uma nova fé e novas verdades metafísicas mais sólidas, capazes de insuflar-lhes novo alento nos corações desiludidos e descrentes das antigas ideias religiosas.
Eis-nos perante duas tendências bem distintas: o comunismo e a fé. O comunismo fez progressos rápidos entre as massas. A fé conquistou principalmente os meios cultos. A primeira tendência deu origem às diversas correntes comunistas. A segunda originou a teologia cristã, os conflitos religiosos e a ortodoxia.
Ambas essas tendências gerais do pensamento da época encontram-se, simultaneamente, como que fundidas em certos sacerdotes da Igreja.
Não nos cabe descrever aqui e estudar os dogmas religiosos ou éticos, porque o nosso objetivo não é escrever uma História das religiões, mas uma História do socialismo. Apenas desejamos frisar o papel da corrente comunista no seio do Cristianismo. É ela, justamente, que leva as massas populares de Roma para o Cristianismo. Podemos, agora, responder à pergunta que fizemos no fim do capitulo precedente, isto é, podemos agora dizer porque o proletariado romano não elaborou nenhuma doutrina comunista.
A resposta é o corolário lógico do que acima dissemos: o proletariado romano não criou nenhuma doutrina comunista precisamente porque o Cristianismo foi o comunismo do proletariado romano.
Assim como as classes dominantes do Império romano não foram capazes de elaborar uma filosofia e uma religião independente e assimilaram a filosofia e a religião dos gregos a eles submetidos, da mesma forma as massas populares de Roma e da Itália não conseguiram elaborar uma ideologia própria. Limitaram-se a receber a ideologia, já elaborada, que lhes foi transmitida pelos representantes da cultura greco-judaica.
Inclusão | 31/05/2015 |