Rumos do futuro: Socialismo x Neoliberalismo

Vania Bambirra

11 de março de 1992


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Datilog. 1992 (degravação de debate realizado na Câmara Legislativa do Distrito Federal em 11 de março de 1992. Revisão da transcrição é da autora

HTML: Fernando Araújo.


CARLOS MICHILLES – Boa noite. Estamos com um atraso de cinco minutos. Teríamos que começar às 18 horas e 30 minutos. De início, eu gostaria de justificar as ausências dos Deputados da bancada do PDT na Câmara Legislativa. Líder da bancada, que teve que se retirar da Casa, em função de uma questão urgente de saúde e então autorizou-se a coordenar o debate desta noite. Nesse sentido, eu gostaria de pedir as devidas desculpas aos presentes, congratulando-nos com aqueles que se deslocaram até a Câmara Legislativa para participar, se informar e debater sobre este importante tema, dando prosseguimento ao ciclo de Debates da Liderança do PDT. Nesta noite teremos a professor Vania Bambirra, cujo tema versará sobre “Rumos do Futuro”, a polêmica entre o socialismo e o neoliberalismo. Também está programada a presença do professor Marcel Bursim, que ficará encarregado de dispor sobre tema “Falácia do neoliberalismo e o desmonte do Estado brasileiro”, temas que se complementam e que certamente vão contribuir para que todos possamos absorver e assimilar informações úteis para uma adequada compreensão do momento que todos vivemos, a nível nacional, e também os problemas decorrentes do plano político, no que acontece com o chamado socialismo real e o advento da moda neoliberal nos países, principalmente os subdesenvolvidos. Esse tema é importante porque traz subsídios para uma compreensão crítica desse momento, possibilitando que todos possamos tirar um pouco a cabeça da antiguidade que está rondando todos esses fenômenos que estão acontecendo no mundo atual. Neste sentido, eu gostaria de chamar a companheira professora Vania Bambirra para compor a Mesa, a fim de que possamos começar o debate desta noite.

Gostaria, antes de passar a palavra à professora Vania Bambirra, de chamar a atenção para a importância desse ciclo de debates. Por menos pessoas que compareçam a este ciclo, acho importante que cada um que aqui compareça se transforme numa espécie de multiplicadora das presenças neste debate. A Câmara Legislativa e, em especial os Deputados Salviano Guimarães, Cláudio Monteiro, Edimar Pirineus e Benício Tavares, da bancada do PDT, têm colocado, com maior motivação e entusiasmo, as dependências desta Casa à disposição desse encontro, que é muito importante para todos nós.

Neste sentido, quero chamar a atenção de que é importante que nos esforcemos para aumentar o número de pessoas que frequentam este ciclo de debates. Estamos gravando, sempre insisto nesse sentido, esses debates e queremos transformar a participação desses pesquisadores professores, militantes, num documento, que será transformado em uma pequena publicação, num livro, que vamos ter o prazer de mandar a todos os companheiros, sejam militantes, filiados ou apenas simpatizantes das ideias trabalhistas, das ideias de transformação do País. Por isso, chamo a atenção para que as pessoas coloquem seus respectivos nomes, telefones e endereços no livro, que está na entrada do auditório.

É com honra, então, que passo a palavra à professora Vania Bambirra, para falar sobre os Rumos do Futuro: Socialismo versus Neoliberalismo.

VANIA BAMBIRRA – Boa noite. Vou tratar de ser o mais objetiva e sintética possível. O tema é enorme e, realmente, não poderei entrar em maiores detalhes ou fazer uma análise mais profunda.

Começo dizendo o seguinte, parodiando a época da nobreza, quando se dizia: o Rei morreu! Viva o Rei! Isto significava, por certo, Viva o Rei e a continuidade da monarquia e, ao mesmo tempo, a continuidade dos atrasos, dos valores feudais, dos valores pré-capitalistas.

Hoje, pensando no que ocorreu no Leste Europeu e na ex-URSS, acho que podemos dizer: o socialismo morreu! Viva o socialismo!

Mas, o que queremos resgatar, com isso, não é a continuidade de um capítulo da História, que, apesar de momentos heroicos e de fantásticos resultados concretos, como a derrota do nazismo, da conquista do cosmos, a transformação da União Soviética na segunda potência mundial em um período recordo, apesar destas grandes conquistas, enveredou-se por caminhos tortuosos, entrou em desvios, perdeu-se em labirintos da burocracia, da ineficácia e da corrupção.

O que queremos resgatar é mais do que a continuidade de um ideal de vida mais digno, queremos resgatar a proposta de uma organização social superior, que é a única capaz de fazer com que a humanidade esteja apta a enfrentar os desafios do futuro.

Estou segura de que novas experiências socialistas vão surgir e vão cometer erros, mas vão ser erros diferentes porque vão ser de novo tipo: já aprendemos muito com as experiências acumuladas do passado. As novas não serão, meramente, uma reprise do passado, pois se aprendeu com elas como não se deve construir o socialismo.

Creio que se quisermos contemplar os rumos do futuro, como é o título da nossa palestra hoje, temos que fazer uma análise ampla das razões do fracasso no Leste Europeu e na União Soviética, essas experiências do socialismo real.

Pensar sobre o ressurgimento do nacionalismo, pensar um pouco, também, nas dificuldades que enfrentam os países socialistas existentes, China, Vietnã, Coréia do Norte e Cuba, enfim, mais do que isso, creio que temos que pensar nas crises atuais do capitalismo desenvolvido e na crise atual do capitalismo independente; ademais, na falácia do liberalismo, a questão da social-democracia. Será a social-democracia uma alternativa? Ademais, só a partir daí é interessante entrar, mas não vou entrar, porque não vai dar tempo, a partir de todo esse balanço, tentar vislumbrar os rumos, as perspectivas e as tendências do movimento popular e revolucionário, a nível mundial na América Latina e no Brasil.

É óbvio que tudo isso não dá para abordar com profundidade em uma palestra de meia hora. Cada um desses temas daria uma palestra, inclusive, até um curso, se quisermos entrar, realmente, com as raízes mais profundas dessa problemática, que nos fornece elementos e é crucial para se entender o que se passa no mundo de hoje.

Podemos entender o que se passa no mundo, hoje, sem tomar toda ordem de problemas que se apresentam e sem responder a tudo isso?

O que vamos fazer, aqui, hoje, é destacar alguns pontos que pensamos devem ser objeto de uma reflexão mais profunda por parte dos companheiros. Vou colocar questões para que vocês meditem.

Vejamos, em relação às causas do fracasso do socialismo nessas experiências, que acho absurdo dizer que o socialismo fracassou no mundo.

Em primeiro lugar, devemos destacar o que isso tem a ver com o desenvolvimento das forças produtivas.

Marx, Engels, especialmente Lenin, contemplaram com uma visão muito lúcida a possibilidade de fracasso de uma experiência socialista. Marx viveu o fracasso da primeira, que foi a Comuna de Paris. O Lenin viveu o período da primeira revolução socialista vitoriosa no mundo, com a criação do primeiro Estado socialista e que esteve várias vezes à beira do fim, durante a guerra civil, diante das agressões do exército dos brancos, diante das agressões de 14 países capitalistas do território da União Soviética, aquilo que esteve por um fim, nesse primeiro momento, e depois esteve por um fio em vários outros, devido à crise econômica, porque aquilo ali ficou tudo arrasado. Então, ele contemplou isso; triunfa-se uma revolução, mas enquanto não se consolida, enquanto ela não mostra a que veio, ela pode ser derrotada, não? Quem disse que uma revolução vitoriosa, que dura uma década, o sandinista também fracassou territorialmente, que dure duas décadas, ou dure sete décadas está garantida ad eternum! Ninguém, nunca, nenhum teórico sério, marxista, colocou isso. O Lenin se agoniava muito com a questão da cultura dos vencidos. Nós derrotamos os invasores, derrotamos a contra-revolução e derrotamos os brancos, mas no fundo eles foram vencedores, porque tinham uma cultura superior à nossa: nós não tínhamos desenvolvido na Rússia sequer uma cultura capitalista, nossa cultura era mujique-feudal. Ele dizia, exclamava: “faz-nos falta a cultura capitalista, que é uma cultura superior à feudal”. Os vencidos venceram os vencedores, porque os vencedores não tiveram – isso está bem claro no Lenin – a capacidade de mostrar para que veio o socialismo, de demonstrar que realmente o socialismo é uma formação econômico-social superior. Num país arrasado e totalmente bloqueado pelo imperialismo, o socialismo era nivelado por baixo. Isso foi uma forma de derrota terrível. Em cima dessa derrota objetiva, a destruição objetiva das forças produtivas, teve-se que construir a primeira experiência de construção do socialismo.

Aquilo sobreviveu um pouco, pelos crentes, por milagre.

O Lenin era muito realista, inclusive chegou a prever a Segunda Guerra Mundial: “Vamos perder um milhão de homens; vamos perder dez milhões de homens”. Tem um texto dele que diz isto: “vamos perder vinte milhões de homens. Esse país vai se completamente destruído de novo”. Ao final, perderam vinte milhões de homens, o país foi todo arrasado e logo depois já estava lançando o primeiro Sputnik.

Para os marxistas, a crise não é surpresa.

Nenhum marxista sério ficou perplexo com o que aconteceu.

Ademais, nunca se pode perder de vista o marco teórico clássico, elaborado pelo Marx, no seu famosíssimo texto “A Crítica ao Programa de Gotha”. Socialismo é um mero progresso desde a perspectiva do capitalismo desenvolvido e, sobretudo, desde a perspectiva da sociedade superior que vai superar [superar o capitalismo], que é a comunista. Não chega nem a ser um modo de produção, é uma formação econômico-social, porque nesse longo período de transição sobreviveu a luta de classes. A classes, ao Estado, coexistem vários modos de produção, enfim, e, sobretudo, porque o socialismo só triunfou até hoje em países atrasados e arrasados antes, durante ou depois pela intervenção imperialista. Não há nenhuma exceção. Ademais de ser pobre, atrasado e ainda arrasado pelo imperialismo.

A segunda ordem dos fatores, que teremos que considerar, falando-se ainda do socialismo, é a questão do isolamento internacional.

Teve-se que fazer o socialismo em um só país. Isso foi a grande força do stalinismo e, ao mesmo tempo, a sua grande debilidade. Força, porque conseguiu coesionar a nação, enfrentar aquilo; e a debilidade, porque ficou isolado. Aquilo levou a uma série de deformações. Agora, nenhum bolchevique havia previsto isso, todos eles apostavam na revolução na Europa. A revolução não saiu, o que fazer? Manter isso do jeito que for possível. A classe operária chegou a desaparecer fisicamente.

O comércio internacional da União Soviética ficou reduzido a zero. Só com a Alemanha começou-se a comerciar, porque a Alemanha era vítima do Tratado de Versalhes e era conveniente para a União Soviética comerciar com a Alemanha. Tem-se de se fazer a NEP, o retrocesso, voltar às relações mercantis, fazer um plano de concessões ao capital estrangeiro, não era nenhuma novidade o que Gorbachev colocava, estava no leme na época da NEP. Eu sempre considerei a Perestroika como “a NEP II” absolutamente correta, tinha de se fazer, não era nenhuma surpresa, Gorbachev não era nenhum liberal por propor isso. Fui muito mal entendida a Perestroika.

Os bolcheviques, na época de Lenin, propuseram pagar a dívida externa, com uma condição: que as potências capitalistas comerciassem com a União Soviética. E não quiseram, porque queriam arrasar com aquilo. É quando Lenin exclama: “o imperialismo é pior que o diabo”.

Colocou-se em torno da União Soviética; depois da II Guerra Mundial, vem a guerra fria, uma cortina de ferro, se isolou a União Soviética, e dizem que foi Stalin que pôs. Ela é que foi isolada. Ademais, não se dispôs de nenhuma solidariedade internacional. Não existiam outros países socialistas. Cuba sobreviveu por quê? Pela ajuda do campo socialista, porque Cuba não era União Soviética, não era um continente que pôde manter-se sozinha. Ela teria sido arrasada sem a ajuda soviética, sem a ajuda do campo socialista. A União Soviética dos anos 20, dos anos 30, não dispunha disso.

Além dessas duas ordens de fatores que já contei, para explicar o fracasso, há a questão do sistema burocrático. Ora, não foram os socialistas que inventaram a burocracia. A burocracia foi herdada do czarismo. A burocracia se herda e se recria. E a pior é a burocracia comunista. Mas o fato é que ela foi herdada. Lembro-me de num debate com Che Guevara coloquei para ele essa questão e ele me respondeu: “o Estado socialista está tomando uma série de iniciativas, está criando instituições novas, e junto com essas instituições novas vem a burocracia”. Isso é inevitável. Lenin tinha uma visão muito clara da questão da burocracia. Ele sabia que, em definitivo, a burocracia só desaparece numa etapa muito desenvolvida do desenvolvimento das forças produtivas, com o processamento, em lato nível, da revolução científico-tecnológica, porque a burocracia vai subsistir enquanto existir a divisão entre as tarefas manuais e as intelectuais. Essa divisão entre as tarefas produtivas e as tarefas administrativas só vai desaparecer quando o sistema produtivo for automatizado, quando a ciência se transformar na principal força produtiva, quando a automação generalizada puder liberar a intervenção do homem no trabalho manual do processo produtivo.

Só assim se criarão as condições para o desaparecimento da burocracia, porque só assim vai-se superar a escassez na sociedade da abundância, que só pode ser franqueada pelo processamento de um fantástico desenvolvimento científico e tecnológico.

O investimento principal, portanto, trata-se de se fazer na ciência.

A União Soviética chegou a um estágio em que ela dominava a conquista do Cosmo; estava pelo menos dez anos à frente dos Estados Unidos na conquista do Cosmo.

Ela tinha a Mir, a plataforma especial, onde os astronautas sobrevivem por meses, funcionando normalmente no espaço.

Aos Estados Unidos faltavam dez anos para lançar a plataforma deles. E hoje o nível do progresso científico se mede pela conquista do Cosmo. A União Soviética nisso era a primeira potência.

No atendimento das necessidades cotidianas, como o uso corrente do consumo da população, entrava-se num supermercado soviético e ainda havia o velho ábaco para fazer as contas. Era um descompasso.

Chega-se ao momento em que havia de se passar da etapa da industrialização extensiva, que é baseada em investimentos massivos de mão de obra, matéria-prima, para a industrialização intensiva, que é típica da revolução científico-tecnológica. E a isso veio a Perestroika.

Os idealizadores da Perestroika… porque num país em que funciona o Partido Comunista, e funcionava naquela época muito bem, a Perestroika não foi “bolada” na cabeça de Gorbachev. É um trabalho de equipe, é uma proposta de equipe que foi aprovada pelo Partido Comunista da União Soviética. Gorbachev escreveu um livro expondo as principais teses – e as teses dele foram divulgadas pelo mundo -, mas surgiram uma série de trabalhos fundamentais sobre a Perestroika dissolutistas, dos quais muitos trabalhos sérios em que [se] deixou de comentar a possibilidade de fracaso da Perestroika. Só que se sabia de então, se chamava a Perestroika, por exemplo, como Kiva Maidanic, de “revolução das esperanças”. Se a Perestroika fracassasse, era o socialismo soviético que estava fracassando. E resulta que a Perestroika fracassou, porque foi uma proposta de cima para baixo, ela supunha como condição do seu desenvolvimento o engajamento das massas, mas ao mesmo tempo, ao motivar as massas, ela tinha que apresentar resultados concretos. E isso não foi conseguido. Ao mesmo tempo, veio a glasnost que era outra cara da mesma moeda, e a glasnost sim triunfou, e glasnost sem Perestroika deu no que deu. Ela foi empolgada pelos liberais. Encheu seu país de valores liberais, dos valores ocidentais, da propaganda massiva do sistema burguês, sem que, objetivamente, do ponto de vista de elevar as condições de vida material do povo, representassem resultados. E deu no que deu. E os cientistas sociais, os teóricos, e eu estou convencida de que o próprio Gorbachev tinha consciência de que era um risco, que tinha que ser corrigido, que tinha que ser assumido. Era a maneira de ou preparar o socialismo para enfrentar o Primeiro Milênio e transformar-se de vez na potência mais desenvolvida do mundo, ou retroceder. Para mim foi uma surpresa o que aconteceu, e foi triste, muito triste a surpresa minha. Agora, isso é que eu acho uma explicação muito fácil, colocar a culpa toda no Gorbachev. Um acontecimento histórico como esse o indivíduo não é responsável pessoalmente. Ele tem responsabilidades sim, cometeu erros. O Partido Comunista cometeu erros, sim, e eles mesmos têm que reconhecer e estão reconhecendo, inclusive a mal fadada tentativa daquele golpe, que nem do ponto de vista técnico era respeitável. Como? Não sabem fazer um golpe de estado bem feito? Mas, a culpa não era do Gorbachev como se atribui facilmente. É uma explicação fácil que hoje muitos teóricos, muitos militantes políticos, muitos líderes políticos resolvem dessa maneira fácil. Culpa do Gorbachev. Eu acho que o fenômeno é muito mais complexo para ser explicado com uma explicação tão fácil. É claro que o indivíduo tem um papel na história. Claro que tem. Não não é um papel definitivo. Um líder sempre expressa uma tendência e o fracasso é sempre dependência que ele expressa. Pode ser uma tendência de massa ou não, mas ele está expressando um pensamento que não é único. Agora, claro, em um momento de estancamento, como o que colocou a necessidade clara da Perestroika no mundo hoje em dia, claro que se acentua o câncer burocrático, se acentua o câncer da corrupção. Surgem os açambarcadores, e tudo isso. E era isso que a União Soviética estava vivendo, e era isso que a Perestroika tentou combater, fracassou e hoje efetivamente os que governam a eles na União Soviética foram as sobras de tudo isso. Eu não penso que o Partido Comunista da União Soviética seja um cachorro morto. São gerações formadas sob o socialismo. Eu acho que muita coisa está se movendo por aí. E quanto ao Leste Europeu obviamente não dá para entrar e fazer uma análise mais profunda. Eu fiz uma série de palestras sobre o Leste, na época, mas o que eu vou dizer é muito pouco. O Leste Europeu para mim nunca foi uma surpresa quando caiu nulo. Foram revoluções biônicas levadas pelo Exército Vermelho, na época do Estado. Se foi um erro do Estado fazer aquilo? Eu acho que não. O Exército Vermelho não tinha outra alternativa. Ou entrava o Exército Vermelho ou entrava o Exército Americano. Que bom que entrou o Exército Vermelho. Eu acho que o grande problema não foi esse. Tinha que entrar. O grande problema, o grande erro foi a imposição da mesma política que se aplicava na União Soviética dos anos 20/30 mas que não era uma política universal. Era a política de prioridade da indústria pesada e todos os esquemas. Eu estou mencionando a política econômica porque ela é muito importante, mas todos os esquemas do stalinismo com a União Soviética foram transportados para ali, e obviamente não poderia dar certo. Mas ainda tem outros fatores. Não é só o Stalin o culpado, de nenhuma maneira. Eu não acho que aquele homem foi um diabo. Eu não sou stalinista e nunca fui. Nunca fui de nenhum PC, falo muito à vontade. Sempre fui crítica do PC, sempre fui crítica do Stalin. Me sinto muito à vontade para falar dessas coisas, e exatamente porque nunca adorei que, hoje, não preciso abjurar ninguém. Agora, posso fazer uma análise fria. Não sou cria do stalinismo. Há outros problemas mais complexos do que esse, os problemas dos partidos comunistas do Leste Europeu. A classe operária foi virtualmente liquidada durante a resistência contra o fascismo. Quando as tropas soviéticas entraram ali não houve resistência, foram evoluções, foi o socialismo sem revoluções. Os oportunistas, todos, subiram no carro do triunfo: liberais, todo o tipo de oportunistas e empolgaram os governos desses partidos. Foram os piores partidos do mundo.

Eu, que venho estudando o socialismo há anos, praticamente a minha vida inteira, nunca me motivei para pesquisar o Leste Europeu e sempre que fazia alguma menção, a fazia com ressalvas. Aí estão todas as coisas que escrevi no curso da minha vida, sem nenhuma novidade.

Quanto à questão do ressurgimento dos nacionalismos, esse é um problema importante. Os nacionalismos são defensivos, onde não se vê saída imediata. Eles estão ressurgindo, hoje, no mundo inteiro, não é só na União Soviética nem no Leste Europeu, nem na Iugoslávia, é na Europa toda. E por quê? Na Europa Ocidental, naturalmente, esse nacionalismo se manifesta de maneira mais acirrada, porque é um continente em crise, veja o problema na Alemanha, por exemplo, em que os nacionais têm de defender seu emprego da competição dos estrangeiros, certo?

Então, ele tende a se desenvolver para as suas formas extremas, inclusive para suas formas chauvinistas. É típico. Nos Estados Unidos, agora, onde começar a surgir o movimento anti-nipônico, a indústria automotriz japonesa está vencendo a americana, que está decadente. Tem-se que fazer uma revolução total, na indústria automobilística, a nível mundial: o carro americano não presta; o americano não gosta de tê-lo, surgindo o nacionalismo. São fábricas e fábricas fechadas, devido a os carros importados do Japão serem mais baratos e melhores.

Lenin via com muita clareza a questão do nacionalismo, da autodeterminação e toda essa questão. Ele teve um longo debate com a Rosa Luxemburgo sobre o ponto. Inclusive, o único livro de Stalin que presta é sobre a questão das nacionalidades, escrito sob orientação de Lenin e revisto pelo próprio Lenin. A Rosa Luxemburgo era contra a autodeterminação. Não vamos entrar aqui nessa discussão que nos levaria a outros rumos. Mas o fato é que se Lenin tivesse seguido a política que a Rosa Luxemburgo preconizava para a União Soviética, aí sim que eles teriam perdido a guerra civil. Porque o fator fundamental foi a neutralidade. Por exemplo, na Finlândia, a neutralidade fez com que ela não ajudasse os invasores estrangeiros, os exércitos brancos e os bolchevistas para que o exército vermelho pudesse triunfar sobre essa mesma contra-revolução.

Por que a Finlândia ficou neutra? Porque a Finlândia recebeu o direito de autodeterminação das mãos dos bolchevistas e essa sim é uma política leninistas, porque foi Lenin que, realmente, defendeu e ganhou, no interior do partido, essa política que era uma proposta dele, uma proposta que ele vinha fazendo há anos. Ele dizia: “um povo que oprime outro povo não pode ser livre”. Inclusive, Lenin ficou furioso com Stalin, quando este mandou invadir a Geórgia e instalar o Governo soviético pela força. Lenin se encolerizou – isso já foi no final da vida dele – com Stalin por essa brutalidade.

Agora, costumo dizer que, quando Lenin quis prestar homenagem póstuma à Rosa Luxemburgo, as informações que ele tinha do PC eram que, na Polônia, os soviets de operários estavam prontos para tomar o poder e os bolchevistas deveriam mandar o Exército Vermelho para apoiar os comunistas. Isso foi em 1920, a guerra civil já havia terminado no interior da União Soviética do ponto de vista militar, foi uma epopeia histórica, porque o exército deslocou-se até as portas de Varsóvia num tempo recorde. Chegando às portas de Varsóvia, o Exército Vermelho bolchevista foi escurraçado pelos próprios operários que queriam, sim, o comunismo, mas não a intervenção da Rússia.

Lenin via de maneira muito clara dois tipos de nacionalismo, certo? O nacionalismo da nação opressora, que é a afirmação da superioridade dela, que defende a autodeterminação só de palavras, só formalmente; e o nacionalismo da nação oprimida. São dois nacionalismos qualitativamente diferentes. O nacionalismo da nação oprimida é defensivo, é a busca da liberdade do opressor e, portanto, tende inclusive a se irmanar com outras nações oprimidas e tende, portanto, a um internacionalismo muito maior. Isso, inclusive, é o que vai explicar a política internacional cubana.

Cuba – falando em um segundo –, é um país profundamente nacionalista e isso é um dos elementos cruciais para explicar porque sobrevive a revolução cubana. José Martí é figura nacional e é cultuada. A bandeira cubana é a mesma de sempre. Não tem bandeira comunista lá. É um povo muito nacionalista, está grudado nos Estados Unidos. E agora, mais do nunca, porque há mais de trinta anos o imperialismo está lá, azucrinando todo o dia, boicotando a economia. Ao mesmo tempo, é o país mais internacionalista que existe no mundo, porque é um país pobre que faz um esforço sobre-humano com a solidariedade internacional, na América Latina, na África. Enfim, não podemos entrar em detalhes.

Quanto ao último ponto que diz respeito à questão do socialismo, as dificuldades das nações socialistas, que sobrevivem e estão aí, acho que todas correm o risco do isolamento. Mas na Ásia o problema se contorna. O Deng Xiaoping dizia, na semana passada, “que valia a pena abrir uma janela para entrar ar fresco, embra algumas moscas também pudessem entrar. Claro, só espero que estas moscas não sejam um enxame”. Porque aí acontece como na glasnost.

Acho que, falando em duas palavras – porque não dá para nos determos mais nesse ponto – as experiências asiáticas vão todas em frente, tranquilamente. Agora, e Cuba? Cuba está tendo de manter o Socialismo em um só país latino-americano, isolado do socialismo mundial, porque o que sobrou do socialismo não tem como ajudá-la. E, ademais, é bloqueada e agredida. Então, será realmente um milagre da história se essa experiência perdurar. Depois não venham dizer que o socialismo está fracassando por todos os lados. Ela é uma ilha, não é um continente como era a União Soviética, nos anos de 20 e 30, quando era o socialismo num só País.

Agora, ainda quanto ao problema das nacionalidades, gostaria de fazer uma colocação para vocês pensarem: o que penso é o seguinte: estou pensando, sobretudo, no caso da União Soviética, da ex-União Soviética, na fragmentação dela e na fragmentação da Iugoslávia, estou convencida de que ela advém, em primeira instância, da crise, do fracasso do socialismo, nesses países, e não propriamente devido a um nacionalismo “à outrance”. No exemplo que dou, ficou pensando: na época de glória do stalinismo e mesmo na época do Kruschev, quando a economia ia bem, isso não ocorria. É a mesma coisa que na Iugoslávia, do Tito. Pode-ser dizer, na época do Stalin foi a coesão contra a agressão nazista. Já na época do Kruschev não tinha esse risco, tinha a guerra fria, certo, mas o Kruschev começou a acabar com ela. Então, acho que esses nacionalistas se manifestam pela crise, no caso específico do socialismo.

Agora, e quanto ao capitalismo contemporâneo? A situação atual do capitalismo contemporâneo é de crise. No capitalismo desenvolvido essa crise tem uma característica nova, estou vendo essa crise como uma característica nova, não sou só eu, os teóricos marxistas em geral estão apontando para isso.

Os ciclos são cada vez mais curtos, as crises mais intensas e a recuperação mais precária, curta e medíocre. Por exemplo, os Estados Unidos: essa crise atual que vem de lá, a crise econômica – estou falando da crise econômica – ela vem desde o segundo semestre de 1990, e a recuperação só é previsível para o final de 1992, pelos otimistas, os bons analistas estão dizendo que o Bush não vai ganhar, não emplaca, porque não se recupera antes da eleição. Agora, só é previsível para o final de 1992, por quê? Por caus do “The New Deal” do Bush, na nova política econômica do Bush – que não dá para detalhar aqui, vocês devem ter acompanhado pelo jornal – que é uma política tipicamente baseada em uma intervenção estatal. Quer dizer, as guerras, hoje, já não surtem os efeitos como na Segunda Guerra Mundial. A Segunda Guerra Mundial foi a glória para a economia americana, ela se transformou, os Estados Unidos se afirmaram definitivamente como a primeira potência hegemônica do sistema capitalista mundial. Aí começa a se processar a revolução científico-técnica, graças à Primeira Guerra Mundial. Paradoxalmente, ela foi muito boa para o sistema. A guerra do Golfo não teve esses efeitos, não recuperou em nada a economia americana, inclusive porque os estoques armamentistas não foram gastos – eram estoques gigantescos que eles faziam – e não gerou a necessidade de renovação de equipamentos. As invenções, nesse terreno, foram muito curtas. Não criou empregos, enfim, exonerou, teve efeitos contrários. Foi negativo.

Acho que essa recuperação virá sim. Mas, logo vem outra crise – isso todos os analistas burgueses estão dizendo – ainda muito mais profunda que a atual. Porque a pregação dessa política vai levar a um endividamento maior ainda, gigantesco do Estado americano, a uma inflação muito maior, você verá a inflação. Ademais do empobrecimento da população norte-americana que já é dramática, não estou me referindo aos pobres não, é a classe média que está virando pobre mesmo nos Estados Unidos. A violência, tudo, o tipo do produto disso é que vão explodir naquele caldeirão.

Quer dizer, é uma política oportunista, bolada para o Bush ganhar a eleição.

Agora, a situação da Alemanha e Japão, o Japão é importante mencionar, porque, ademais o Japão arrasta os tigres, os tigres dependem do Japão.

Na Alemanha já se configura uma situação de crise, um desemprego acentuado. E o Japão, bem como os tigres, é uma economia muito permeável ao comércio internacional. Então, a crise americana afeta muito a economia japonesa. E a economia japonesa arrasta as outras potências asiáticas.

Eu costumo dizer para os meus alunos em sala de aula, e eles morrem de rir, que, de repente, esses tigres vão se transformar em gatinhos. Que dizer, já têm sintomas claros de queda da taxa de crescimento, o começo da crise já se configura de maneira muito clara, no Japão, e nos tigres em geral.

Não vou nem mencionar a Inglaterra, porque a Inglaterra do jeito que vai, vai se transformar em país capitalista dependente.(1) Quer dizer, já uma decadência. Aquilo não tem saída e não dá para entrar numa análise casuística aqui.

Agora, num transfundo de todas essas crises, o que tem? E a grande estrutura do capitalismo a nível mundial? Essa crise foi muito analisada por autores clássicos, vários deles, e por marxistas contemporâneos, como Mandel; e o nosso companheiro Theotonio dos Santos, do PDT, tem vários trabalhos sobre isso, a maior parte não publicados no Brasil, o Brasil não tem nada sobre a crise.

Quer dizer, essa crise é a crise estrutural, ela se explica pela impossibilidade – acho que essa é a colocação mais importante que eu queria fazer, hoje, para vocês – pela impossibilidade desse sistema levar adiante a revolução científico-tecnológica. A vôo de pássaro, já expusemos aqui no que consiste a revolução científico-tecnológica: liquidar, terminar com a intervenção direta do trabalho humano no processo produtivo.

Isso gera a contradição absoluta do sistema – não dá para detalhar aqui, porque isso daria um curso – ela liquida mais ali, e o capitalismo não funciona sem mais ali. Essa é a contradição absoluta.

Agora, isso leva ao desemprego absoluto, porque se não há mais como trabalhar, porque são as máquinas que fazem tudo, está todo mundo desempregado, então, tem que se transferir esses recursos para outras esferas. O socialismo pode fazer isso, supõe uma economia planificada. A planificação é o rumo do futuro. É por isso que Radovan Richta, que tem um livro traduzido para o português, sobre revolução científico-tecnológica, é um livro interdisciplinar, feito na Tchecoslováquia, lançado em 68, na primavera de Praga, do qual participaram quase 50 cientistas, economistas, filósofos, físicos, químicos, sociólogos, etc. É uma obra fantástica, que deu o marco de toda a linha sobre pesquisa de revolução científica e tecnológica em todo o campo socialista, que foi esse livro, onde disse que a revolução científica e tecnológica é típica do socialismo muito desenvolvido, já se endereçando para entrar no comunismo.

Isso não é nenhuma utopia. Vocês estão vendo que no fundo da crise do socialismo está isso: não soubemos como resolver isso. O fundo da crise do sistema capitalista mundial é isso. Então, como estamos vendo, a crise estrutural do capitalismo é gravíssima, ela não tem saída.

Eu não estou querendo ser catastrófica, não, catastrófico é o sistema. A catástrofe é o sistema.

Então, vivemos numa época cheia de paradoxos. Em primeiro lugar, os ideólogos do sistema, seus meios de comunicação, ao lado da esquerda, outrora extremista e hoje perplexa, divulgam pelo mundo a ideia de que o socialismo morreu, levam de roldão Marx, Engels e o Lenin juntos.

Agora, as condições objetivas do desenvolvimento do capitalismo, mais do que nunca, colocam o socialismo como uma necessidade histórica. Por que? É uma necessidade histórica para que a humanidade possa prosseguir o seu desenvolvimento. Então, é uma questão crucial que o Marx assinalava. Agudiza-se a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção que o emperram.

Mais do que nunca, o pensamento de Marx é novíssimo, novinho em folha. Eu, sem esse Marx teórico, não entenderia nada do que está se passando no mundo hoje. Eu digo, honestamente, como cientista – já o nem estou pensando neste momento no ideal de justiça, de não ter menino de rua, de não ter nenhum desses cinquenta milhões de miseráveis, de não ter nenhuma dessas barbaridades, não estou pensando, neste momento, nisso não – estou pensando no ponto de vista do progresso. Há essa contradição absoluta que foi gerada pelo próprio desenvolvimento do capitalismo. Ou se superam essas relações ou essa revolução vai gerar isso, que ela vai liquidar com o trabalho assalariado. Ela acaba com o trabalho assalariado. Como terá capital sem trabalho assalariado, como vai ter acumulação de capital? Não somos socialistas [o sistema mundial], mas acumulação não tem. O sistema não tem como, a não ser que o sistema comece a entravar – e para isso que estamos indo – o progresso, e transformar-se num fator objetivamente reacionário, contrário ao progresso da humanidade, contrário ao desenvolvimento das forças produtivas. E ele está emperrando muito sim. Existe uma série de invenções que já estão patenteadas há anos e que não foram ainda produzidas em série.

O mundo, na realidade, carece de socialismo, do ponto de vista do desenvolvimento, do progresso, do ponto de vista da revolução científica e tecnológica. Essa é a primeira ordem de questões.

A segunda ordem de questões é a intervenção estatal. Nunca o intervencionismo estatal foi tão abjurado na América Latina e no mundo. Acabou-se a planificação, acabou-se tudo. Na América Latina são os próprios ideólogos do FMI, os neoliberais que abjuram, pega-se tudo, o status sai de tudo, vende-se a preço de banana tudo que têm, “não se meta mais em nada!”. Mas sempre foi praticado normalmente no Japão, em vários países da Comunidade Econômica Européia e, agora, volta com o “New Deal” do Bush, nos Estados Unidos. Mais do que nunca, se precisa, para planificar, ter um órgão central até que a autogestão seja aprendida pelas massas. Isso tudo num processo. As massas não aprenderam a autogestão depois de 70 anos na União Soviética! A autogestão era o que queria a Perestroika, democrática e eficiente; não aprenderam, não são burros, com uma grande experiência histórica acumulada e não conseguiram. Não podemos ter nenhuma pretensão de que vamos fazer um sistema lindíssimo de um dia para outro. Vamos cometer muitos erros, talvez até mais graves que os cometidos, claro que vão ser diferentes, não serão os mesmos, pois já se tem essa experiência acumulada. Mais do que nunca, necessita-se de uma intervenção estatal.

E, finalmente, mais do nunca – que é outro fenômeno abjurado – mais do que nunca necessita-se da planificação, que é muito diferente de planejamento; planejamento o capitalismo pode fazer, porque eles preconizavam o planejamento. O New Deal foi uma intervenção do Estado, não foi planejado, mas é um planejamento setorial, pontual(2), limitado, só isso os Deputados podem fazer. As empresas de capitalismo moderno elas têm um planejamento fantástico a nível de emprego, mas a nível de mercado é anarquia.

Então, planificação nunca foi tão necessária devido ao processamento da revolução tecnológica que é incompatível com o capitalismo.

Sobre o capitalismo dependente, vamos pensar na América Latina. Aplica-se a nível de quase todos os países do continente. Deixamos de lado Cuba, naturalmente, isto não está o [palavra incompreensível na transcrição](3) enfim tem as suas exceções. Então, praticamente em todo o continente com algumas exceções. É a política monetarista preconizada pelo FMI que foi concebida, todo mundo sabe, pelo Milton Friedman, figura mundial de Chicago [que] fez toda uma escola. No que consiste isto? Basicamente na contenção do gasto fiscal, vale dizer, paralisação das obras e investimentos públicos, na rescisão de créditos em pequenas e médias empresas exceto os latifundiários, porque no Brasil está se aplicando a político do Friedman, mas os latifundiários estão sendo subsidiados a cada dia com o nosso dinheiro.

Em terceiro lugar, um arrocho salarial violentíssimo, a abertura para o capital estrangeiro escancarada. Essas são as bases da política do FMI e com um elemento novo que é um outro componente mais novo que é a privatização, a desnacionalização. Claro que a desnacionalização vem se fazendo na América Latina desde o após guerra. Mas agora é a desnacionalização, a privatização do patrimônio do Estado, que entrega a preço de banana com papel podre, divulgou-se em toda a imprensa, o Brizola mencionou isso muito nos pacotes dele, o que se apurou em dinheiro vivo no leilão das três primeiras, a Usiminas e… não chegou a arrecadar mais do que 8 milhões e pouco. É uma coisa ridícula e tudo isto feito para quê? Para pagar dívidas, entrega do patrimônio nacional. Esse é um elemento novo porque antes o capital estrangeiro vinha, fazia-se um investimento no maquinário velho obsoleto, traziam para cá, quebravam as empresas locais, faziam que elas se associassem na condição de sócias menores. Instalavam empresas novas aqui, quebravam as velhas e se associavam e dominavam tudo. As nossas burguesias transformaram-se em em classes dominantes-dominadas por isso. Mas esse elemento de entrega ao capital estrangeiro então podem dizer… As pessoas não entendem muito essas coisas que a imprensa brasileira apresenta: “mas não é o capital estrangeiro que está ficando com essas empresas…”. Claro que é. Vai me dizer que a empresa Vale do Rio Doce, uma empresa nacional, ela tem quarenta e tantos por cento de capital estrangeiro ali… pena que os funcionários não [ilegível].(4) E ele comprou 16% das ações da Usiminas e ela agora está por baixo. É o capital estrangeiro que está entrando aí. Compraram a preço de banana os 10% de ações que tocaram aos empregados da empresa que queriam garantir a casinha própria. Pensava-se que até era uma casa própria, mas, quando vemos, as notícias são estarrecedoras, porque não é nem uma casa, é um barraco, de último nível, estão dando aí dois milhões e meio e três milhões e meio por um lote de ação que cada um tem. Eu vi uma reportagem há poucos dias sobre isso, elas estão entrando camufladas.

Eu não tenho pesquisa sobre isso, mas sou capaz de jurar que hoje em dia quem detem o controle sobre a Usiminas é o capital estrangeiro.

Inclusive me pareceu muito estranho a felicidade da esquerda. O Brizola não, o Brizola é um lúcido, um homem de uma intuição genial, mas a felicidade de todos os setores da esquerda saiu nos jornais no dia seguinte que Usiminas tinha ficado em casa. Que em casa?

Agora, essa política do FMI ela é eficiente: para conter a inflação e abrir uma nova etapa de desenvolvimento, ela é eficiente sem nenhuma dúvida, ela é competente essa política. Ademais, eu vou mais longe: eu acho que ela é a única viável no capitalismo dependente para conter a inflação e para trazer a estabilidade com o investidor estrangeiro. Porque a outra alternativa – reforma agrária, reforma urbana, reforma do sistema bancário estrangeiro, controle da saída do capital para o estrangeiro, nacionalização de uma série de empresas das grandes empresas… isso não é possível fazer a não ser com um Governo como o que nós aspiramos, mas que sem nenhuma dúvida vai acirrar as contradições e vai colocar no laudo do dia um processo revolucionário e um [ilegível no original]…(5) não temos dúvida, eu nunca tive dúvida com relação a isso. Colocará na ordem do dia um processo revolucionário ou contrarrevolucionário, é um processo já em direção ao socialismo e isso, por exemplo, fica de maneira meridiana claro no programa do PDT.

Então, o FMI é eficiente sim, resolve a médio prazo o problema da inflação, abre-se uma nova etapa do desenvolvimento. Foi o que Robert Campos, que é o pai de todos os economistas que estão aí, o pai, o grande guru do Delfim, do Mário Henrique Simonsen, de todos esses é o Roberto Campos, cabeça dura que é, friedmaniano, ortodóxico. Foi o que ele dez na época do golpe e criou as condições para o “milagre”. É claro que a situação naquela época não era tão dramática como agora. Quer dizer… mas ele resolve o problema a médio prazo? Resolve. Agora, aprofunda a crise estrutural do sistema e aumenta em enorme proporção a dívida social, a miséria social, quer dizer, o custo humano nisto é enorme, desemprego, fome, doenças, analfabetismo, fim do sistema escolar, fim do sistema hospitalar, ademais há uma desarticulação generalizada do movimento de massa, porque o movimento de massa, no momento de crise, ele perde sua capacidade reivindicativa. Vocês estão vendo surgir no Brasil a Força Sindical do Sr. Medeiros, que está querendo negociar com os patrões até redução dos salários para obter garantias [de] que não vai ser desempregado durante seis meses. A situação é muito trágica.

Este momento, também, é um caldo de cultivo para o renascimento dos movimentos sociais, que só podem ocorrer na recuperação do sistema. No momento de crise, estão todos de cabeça baixa. E quando renascem, já podem renascer num nível superior. O renascimento da luta revolucionária vai se dar num nível superior, já expurgada daquelas figuras inócuas do passado: a esquerda vacilante, os reformistas, os oportunistas, os pelegos, etc. O surgimento do ex-Ministro Rogério Magri é um fenômeno típico. Uma figura como aquela é típica de uma época de profunda crise. O que é Medeiros? É um ex-stalinista. Neste momento é que vai surgir o renascimento dos ideais socialistas como alternativa. E, sem nenhuma dúvida, as lutas pelas reformas de base voltarão a ser postas na ordem do dia, pois elas estão enterradas desde os anos 60. Não se falou mais nisso.

Finalmente, vamos falar, em dois minutos, da falácia do neoliberalismo. Eu só quero perguntar o seguinte: o que oferece para o mundo de hoje o neoliberalismo? Acho que não oferece nada. Absolutamente nada. É uma ideologia absolutamente reacionária, do ponto de vista de que entrava o desenvolvimento das forças produtivas, de que entrava o progresso. E, portanto, é reacionária porque é incompatível com a revolução científico-tecnológica, que é o progresso, é a direção do progresso. Agora, o neoliberalismo foi superado pelo próprio desenvolvimento do capitalismo monopólico. Foi o próprio capitalismo que superou aquela etapa arcaica. O que os liberais oferecem de novo? A única coisa que têm para oferecer é a política do FMI. Mais nada. Para encerrar, deveria falar duas palavras sobre a democracia. Historicamente, desde o aparecimento do bernsteinismo – que foi o teórico mais sério, mais sistemático do revisioniso, e era herdeiro entre aspas do Marx – e a ruptura dos marxistas com o começo da Primeira Guerra Mundial, com a guerra européia, porque a primeira guerra não foi mundial…; a social-democracia de lá só serviu, até hoje, para estabilizar o sistema capitalista. Para isto ela serviu. E, dependendo da ótica, já é muito. Agora, os partidos social-democratas – não podemos perder de vista isto – foram partidos que se formaram com apoio de massas, com a incorporação das massas nas suas fileiras e, portanto, com forte apoio da classe operária. Então, era natural que estes partidos pressionassem para o alargamento do atendimento das reivindicações sociais desses movimentos de massas e da classe trabalhadora em particular. Mas isto não aconteceu só com os partidos social-democratas. O Partido Trabalhista Inglês, que nunca foi social-democrata, um caso único no mundo, também fez isto. Era um partido de massa. Agora, no caso da social-democracia, como chegou muitas vezes no governo, no poder, pôde atender uma série de reivindicações de seus próprios militantes, operários, das suas massas, e a classe obteve conquistas corporativistas muito importantes no sistema. Só. Conquistas muito importantes dentro do sistema. Então, é um partido muito bom para quem não quer mudar o sistema, para quem acha que o capitalismo é bom, que o capitalismo está maduro, tem futuro. Para quem faz uma análise diferente da que eu fiz, está boa a social-democracia. Ela quer melhorar o capitalismo, quer cortar as arestas, embelezar a sala, fazer uma operação plástica na parte mais feia, mais asquerosa do capitalismo, concedendo algumas coisas. A classe operária conseguiu. Conseguiu, primeiro, a jornada de dez horas, oito horas. Isso foi conseguido, primeiro, los trabalhistas na Inglaterra. Depois generalizou-se. Entrou a social-democracia. O Partido Trabalhista Inglês tem uma história muito antiga, surgiu no começo do século passado. A social-democracia surgiu no fim do século passado. Isto é a História que fala.

Jamais se avançou um passo na direção do socialismo quando os social-democratas tiveram o governo em suas mãos. Não se deu nenhum passo nessa direção. Por quê? É lógico dentro da concepção social-democrata. O socialismo é apenas um ideal ético e, não, uma necessidade histórica. O Bernstein termina o livro dele dizendo: “o movimento é tudo. O objetivo, nada”. Esta é a última frase do livro dele, que se chama “O socialismo teórico e o socialismo prático”. Se alguém quiser entender a social-democracia tem que ler isto. E se alguém quiser entender o eurocomunismo, que depois acabou, quando surgiu aquela história que morreu, tinha que ler o Bernstein mesmo. E se alguém quiser entender, hoje, a posição dos partidos comunistas, ex-partidos comunistas, tem que ler o Bernstein.

É a social-democracia. Eles pularam do Stalin, nunca passaram pelo Marx nem Lenin – a versão que conheciam do Marx e do Lenin era a versão stalinista, [e daí][efn_noteColchetes do Memorial-Arquivo.[/efn_note] diretamente para o Bernstein, não tem nenhuma ponte intermediária. Então, na prática histórica, o social-democrata sempre confundiu-se com o liberal. Como diz o Brizola, com toda razão: não existe melhor conservador como o liberal quando chega ao governo. Pois bem, acho que os Partidos social-democratas devem fortalecer-se a nível mundial, sobretudo no Leste Europeu, porque eles representam a solução de centro. Mas como não oferecem nenhuma alternativa de fundo, vão logo se desgastar. O logo que eu falo é que eles devem chegar ao poder a médio prazo, podem ficar no poder uns dez anos, uma década e meia, podem ficar menos (ninguém tem bola de cristal). Vejo uma tendência ao fortalecimento a médio prazo, sim, mas não creio que isso dure. Além do mais, esse fortalecimento está muito favorecido no momento, porque aparentemente não existe nenhuma outra alternativa senão a social-democrata, para a crise do socialismo. Estão dizendo que o socialismo morreu, então o que sobra? A social-democracia?

O caminho é muito fácil para eles trilharem até onde puderem. Agora, a social-democracia enquanto pensamento e, sobretudo, enquanto prática não é nenhum modelo. Não estamos de nenhuma maneira [falta uma palavra na degravação, no original.](6) a importância relativa da Internacional Socialista. Sim, não se pode negar isso: a Nicarágua foi apoiada por ela, vários governos social-democratas apoiaram a Nicarágua. Foi uma ajuda muito importante. Se bem que esse apoio não neutralizou a agressão imperialista em nenhum momento sobre a Nicarágua. Apoiar justamente estabilizar e não deixar avançar para o socialismo. Quando viram que estava avançando, abandonaram. Mas pelo menos não hostilizaram, como fizeram com a Nicarágua e com Cuba, que foi terrível. Ela tem uma importância relativa. Agora, na Guerra do Golfo, qual foi o papel da social-democracia? Nenhum, como organização internacional. Como governo, apoiou a guerra, o genocídio desde o primeiro momento, apoiando o massacre do povo iraniano e do iraquiano, mandando tropas, tudo isso. Então, não teve nenhuma diferença dos Estados Unidos, da política imperialista. É muito significativo, o próprio Brizola tem citado muito isso. Ele tem razão, porque conhece, participou de várias reuniões em que ia ao Congresso da Internacional Socialista. O Carlos Andrés Pérez, presidente da Venezuela… De muito boas intenções o inferno está cheio e o povo venezuelano mais ainda. [Carlos Andrés Pérez](7) Levou o país a essa crise e aquele homem não dura muito no governo, porque quando o povo não quer, não tem jeito. O líder lá é o coronel de boina vermelha.

Acho que já falei demais e, para concluir, quero falar sobre o rumo do futuro, que é o socialismo. Tenho um pensamento corrente, estou estudando isso há muitos anos, militando há tempo por isso e nada ocorreu no mundo que me fez ficar perplexa. É um sistema que está engatinhando. Apesar de todos os pesares, não tinha menino de rua, analfabeto, drogas, não tinha gente morrendo de fome, os sistemas hospitalares eram generalizados. Leio isso nas crônicas de jornais que são em geral insuspeitas, da imprensa burguesa na Alemanha, no Leste Europeu, “eu era feliz e não sabia”. Não é a primeira vez que o socialismo entra em crise, que o marxismo entra em crise. Entrou em crise quando surgiu Bernstein, por exemplo. Entrou em crise várias vezes. Deu a volta por cima e se afirmou mais forte. O que nos preocupa é Cuba, porque realmente é milagre sobreviver. E pode sobreviver, eu estou torcendo para que sobreviva, creio em que todos nós queremos. É uma posição do nosso partido. Não foi como o PT, que teve uma grande discussão para ver se era um apoio incondicional ou condicional. O PDT foi um apoio incondicional desde o primeiro momento. Fizemos no Rio de Janeiro e em Niterói uma semana de solidariedade a Cuba, foi uma maravilha. Enfim, acho que o socialismo vai renascer. Não tem sentido, e coloquei isso nos congressos do partido, coloquei na comissão da qual participei, ficamos discutindo o caráter que vai assumir o socialismo no Brasil. A prática é que vai nos mostrar isso, a experiência do nosso povo. Cada experiência socialista teve historicamente as suas características muito próprias. Pega-se o exemplo cubano, é claro que aqui não está inspirado na Comuna de Paris, mas é o poder popular em Cuba; funciona lá daquela forma específica. A forma que vamos chegar aqui no Brasil não temos que definir os contornos dela agora. Temos que saber que queremos essa direção, que queremos o progresso, que queremos que o Brasil possa ingressar na etapa da revolução científica e tecnológica, se preparar para o terceiro milênio como um país digno. E a conquista da dignidade, para nós, significa a conquista da tradição socialista.

*

[Respostas às questões do debate]

VANIA BAMBIRRA – Sr. Presidente, responderei sobre esses conjuntos de considerações que foram feitas.

Primeiro começo fazendo uma observação: sou ortodoxa, sim, mas ortodoxa entendida no sentido marxista clássico, porque não ortodoxa dos dogmas. Acho que o marxismo é um método científico e que avançou para o método de ação, sobretudo com o leninismo, mas, para mim, entendo que esse método é ser ortodoxo, é ser criador. E, naturalmente, a realidade muda. O nosso método de análise tem que nos permitir sempre fazer análise concreta de uma situação concreta. Fenômenos que não foram analisados pelos clássicos, fenômenos novos têm que ser enfocados, inclusive temos que recriar novas categorias analíticas. Por exemplo, foram poucas as reflexões dos clássicos sobre o fenômeno do capitalismo dependente. E surgiu, nos anos 60, eu mesma participei dessa corrente, frutificou em toda a América Latina uma teoria marxista da dependência e que teve de criar categorias de análise novas, que naturalmente não estavam contempladas nas análises do Marx, do Engels e do Lenin.

O Marx, por exemplo, chegou a ter várias intuições, mas eram intuições sobre a Revolução Científico-Tecnológica, que ele não desenvolveu na época dele, nem podia, pois não existia o fenômeno como tal. Quer dizer, o marxismo é um método histórico, não inventam as coisas, assim como a História dá para revisar conceitos.

A primeira intuição do que seria o socialismo o Marx tem quando ele escreve um Manifesto Comunista, com as revoluções burguesas de 1848.

Quando surge a experiência da Comuna de Paris, ele revisa o conceito de ditadura do proletariado, em função da primeira tentativa prática de socialismo. Lenin fez isso muitas vezes também.

Nesse sentido, sou ortodoxa, no sentido criativo.

O companheiro José Omar praticamente não fez perguntas, fez uma intervenção. Tenho impressão que na parte em que ele entra em desacordo, em grau, comigo, é extamente na análise do Gorbachev, porque, pelo pouco que pude falar, não quis entrar numa análise da Perestroika, não tinha tempo, era um conjunto de temas. Fui mais enumerando os elementos que nós temos, os marcos teóricos que temos que ter em vista para delinear os rumos futuros. A minha intervenção , inclusive, estava concebida por meia hora, fui esticando mais um pouco porque o Marcelo não veio. Mais interessante é o debate, já falei demais… Até já falei demais, falei uma hora. Pois bem, eu já cheguei a escrever uma série de coisas que, por certo, não foram publicadas no Brasil, época do auge da Perestroika, em que eu tratava de comparar a política de Lenin, da NEP, com a Perestroika. Ea por isso que eu considerava a Perestroika uma NEP-2. Agora, ela fracassou e a NEP, ao contrário, deu as condições para que, realmente, o socialismo pudesse entrar numa etapa superior para retomar o crescimento. Naturalmente, atuou sobre ela uma série de desvios da época stalinista, mas que, do ponto de vista do progresso, do desenvolvimento das forças produtivas, é induvidável, mas na política de concessões ao capital estrangeiro, de retomada do mercado como único fator de ligação entre o campo e a cidade… Na política internacional, eu via, realmente, o Gorbachev, ortodoxamente, como leninista. E essa minha visão foi muito fundamentada em análises de uma história que acompanhei muito. Eu não revi como fracasso de Gorbachev. Tanto que eu fiz a colocação de que não se pode atribuir – e isso estou discordando, tive algumas discordância, não oculto… Respeito muito a posição do companheiro Brizola, ele também respeita a minha, mas a minha posição, a minha visão em relação ao fenômeno Gorbachev vocês viram que varia, é diferente da dele. A imagem que ele usou várias vezes na televisão, foi que jogou a água suja, que lavou a criança fora e a criança foi junto. Aí tenho uma visão mais complexa do fenômeno. Acho que é muito positivo que o Brizola coloque isso. E não foi nessa última, mas na cadeia nacional anterior, aquela em que o Carlos Chagas fez uma série de perguntas para ele, e ele começa falando que esse país está numa situação bem melhor do que a nossa. Lá não faltava nada de fundamental para a população. Uma população bem nutrida, educada etc. Então, aconteceu tudo aquilo? Quer dizer, só o Brizola, mesmo, no resgate daquilo, no momento em que todo mundo está abjurando! É um resgate muito intuitivo, porque ele não é um conhecedor prático das experiências do socialismo, nunca viveu num país socialista e nunca teve tempo para realmente se aprofundar nos temas teóricos do socialismo. Como ele foi a Cuba, eu sei, ele falou isso no jornal; ele se apaixonou por Cuba. Mas ele foi a Cuba há pouco tempo, e Cuba já estava vivendo um período de crise muito forte; foi logo depois das eleições presidenciais. Ele ficou realmente apaixonado pelas experiências cubanas. Eu não conversei com ele depois disso, mas as declarações que ele deu nos jornais foram muito contundentes: ele, hoje, apóia de maneira irrestrita e entusiasta a revolução cubana. Temos algumas diferenças com relação ao Gorbachev, mas eu, com todo o respeito, acho que a gente expõe posições diferentes. Estou até marcando a minha diferença com o meu líder nisso, especificamente, e também o meu companheiro tem diferenças. Tenho absoluto respeito; não quer dizer que eu sou a dona da verdade, de maneira alguma; defendo meus pensamentos e respeito muito outros.

Em relação, Edvaldo, à questão da China, a China, para mim, sempre um desafio. E foi um desafio porque não fiz um estudo. Tenho muito escrúpulo de falar sobre coisas das quais não fiz um estudo profundo. Então, falo muito à vontade sobre a revolução russa, porque passei anos e anos analisando aquilo, foram anos da minha vida analisando aquilo, a minha vida inteira. Falo muito à vontade sobre a teoria do socialismo, porque fiquei seis anos fazendo uma pesquisa só em cima disso. Depois que já tinha feito uma pesquisa anterior sobre a estratégia e tática socialista de Marx, Engels a Lenin, eu me debrucei novamente nos meus autores, na teoria do socialismo, nos clássicos marxistas. Daí esse outro filão, a teoria do socialismo, o livro que a Universidade de Brasília vai publicar, deve estar saindo, é um livro importante, porque realmente expõe os fundamentos de autores que relamente não são conhecidos. De Lenin, as pessoas não conhecem muito a contribuição para a teoria do socialismo porque não estão nas obras escolhidas; as obras completas não existem no Brasil e, quando existem, são edições estrangeiras, uma quantidade enorme de 51 volumes. Então, só uma maluca exilada, como eu, que tive tempo, para fazer isso. Fiquei seis anos lendo isso duas vezes, fazendo uma leitura e uma releitura de tudo: li as obras todas de Marx, enfim. Então, eu falo isso muito à vontade. Falo à vontade, também, sobre cuba, porque sou filha política, como toda minha geração, do triunfo da revolução cubana no continente. Eu me apaixonei pela revolução cubana em 59 e continuo apaixonada até hoje. Quando a gente apaixona à primeira vista, tem de conhecer para consolidar a paixão. Acontece que a minha paixão foi se aprofundando, e eu cada vez não consigo deixar de estudar Cuba. Claro que, de repente, no Brasil, me senti desatualizada, porque em outros países que vivi dispunha de todos os materiais de que necessitava, e aqui é muito difícil, aqui não chega. Aqui, você não encontra material cubano como encontrava nas livrarias chilenas, nas livrarias mexicanas – material do último dia, da última hora, os jornais, as revistas, as pessoas, fisicamente. Inclusive, até ir lá, agora, se pode ir. Se tem dinheiro para pagar a passagem, vai. Antes, não se podia. Sob este ponto de vista, foi muito bom ter vivido fora, porque foi uma abertura de horizontes!

Mas, a China… Não leio chinês, mas também não leio russo. Sobre a União Soviética, muita gente escreveu, muita coisa foi traduzida, teóricos bolcheviques, estudiosos da União Soviética ocidentais… Enfim, você pode ter uma visão assim de conjunto. A obra mais monumental sobre a história da União Soviética é de um inglês, que foi diplomata na União Soviética na época. São vários volumes. É do E.H. Carr, que é uma maravilha, mas não está traduzida para o português.

Enfim, sobre a China, ficávamos com informação do jornal, que era muito pobre, sem ter acesso à informação “quente”, tínhamos acesso só ao que o Governo Chinês mandava publicar fora para traduzir e divulgar no mundo, em inglês e em espanhol, se divulgava… As mesmas coisas que se divulgam em inglês, essa é a verdade. Ou então, análises de estudiosos chineses que foram lá, viram e escreveram, e que em geral não são boas, porque ficaram no superficial, talvez por todas essas limitações. A China é um país fechado até hoje. Você não pode visitar determinadas províncias, como se diz, determinadas regiões, estados, sem uma autorização especial. Sem isso, você não pode percorrer o país livremente. É uma situação de defesa que a China sempre teve.

Enfim, em alguns momentos, fiquei muito perplexa com a política exterior chinesa, sim. Por que não? A revolução cultural eu apoiei com muito entusiasmo. Depois, vi que quem tinha razão era o Isaac Deutscher, que escreveu, pouco antes de morrer, um artigo em que mostrava que aquilo era uma luta interna no interior do partido. Eu falei: não é, de nenhuma maneira. Escrevi um artigo sobre a China e sobre a revolução cultural, a revolução cultural e o marxismo, que saiu publicado pela América Latina. Apaixonei-me pela revolução cultural e, depois, até fiz minha autocrítica, porque acho que foi um entusiasmo muito idealista. Mas não pude ir até o fundo porque não tinha as informações.

Quando a China começou uma política internacional muito reacionária, eu me assustei. Pensei: a China apoiou a contra-revolução na África. Isso é um fato. A China não rompeu com Pinochet. Isso é outro fato. Eu estava no Chile. Vi como era aquilo, está certo? O jornal Granma chegou até a publicar um editorial, uma vez, que diziam que tinha sido escrito pelo Fidel. Não foi assinado por ninguém; foi editorial do jornal, do principal jornal. Ele fazia duras críticas à China, à política internacional da China, e dizia que a política internacional está sempre ligada à política interna. Então, existe alguma coisa degringolando lá dentro.

Agora, ao mesmo tempo, Edivaldo, eu fico pensando o que seria a China – um país muito grande, com uma população de um bilhão de habitantes – o que seria a China; vamos pensar comigo, sem o socialismo! Porque lá não existe gente passando fome. Nenhuma pessoa, desses um bilhão, um bilhão e tanto, não sei exatamente, passa fome. A gente lê a história da revolução e vê os exércitos de um milhão de homens, dois milhões de homens. Nós, aqui, somos pequenos para eles. São outras proporções. Mas, o que seria a China com a política do FMI, meu Deus? A gente vê a Índia, hoje: é aquele casos. Imaginem que a China, o que seria! Não existe ninguém [esperando](8) na assistência médica hospitalar; não há ninguém dormindo na rua; não há mendigos, não existe nenhum menino pobre! De repente, exclamo, mesmo: eu prefiro o pior socialismo ao melhor capitalismo! Não é só o meu lado emocional: é coisa muito objetiva. Então, fico pensando nisso.

Agora, a China, acho que ela realmente está querendo se transformar no Quinto Dragão. Men-Chao-Pin estava afirmando isso. Saiu na Gazeta Mercantil uma nota, um artigo muito grande sobre isso; que a posição de modernização está ganhando agora, firmando a posição. E já tem mais de oitenta anos! Então, eu fico pensando o que seria a China com a política do FMI!

Acho, inclusive, que a revolução cultural – daí eu fiz a minha autocrítica – teve laivos muito reacionários, do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas. A China estava isolada? Bloqueada? Então, aquilo era uma volta à apologia do atraso. Ela teve esses laivos, sem dúvida, que percebemos naquele momento de euforia.

Lembro-me de que fui a Cuba em 63, e eles faziam uma pesquisa nas escolas – de secundário para cima é tudo internato, aqueles enormes internatos cubanos – e a China ganhava de mil a zero da União Soviética.

O conflito… No conflito sino-soviético, era a China que ganhava, a China que empolgava os corações dos cubanos.

Pois bem, a China entra em conflito com a União Soviética em 61. A União Soviética retira todos os técnicos da China, que fica na pior, e aí aplaina o caminho para a revolução cultural, resultado do isolamento. Ocorre que a China, os chineses foram os maiores inventores da história. Os grandes inventos partiram da China. Só que eles inventavam mas não industrializavam aquilo, não faziam produção em série. Os ingleses pegavam os inventos e faziam uma produção em série e dominavam o mundo. Depois, iam vender as manufaturas de péssimo nível para os chineses. Os imperadores chineses – existe um livro que vai narrando isso, a reação dos imperadores chineses diante do império britânico… – está certo, os ingleses chegavam com aquelas manufaturas… Como dizia o Pablo Neruda, tudo o que os chineses e mexicanos fazem com as mãos é lindo, é uma maravilha.

Então, eles viam aqueles produtos da indústria inicial, que eram horrorosos e sentiam uma verdadeira repulsa àquilo. Mas tiverem de reconhecer que aquela indústria de produtos manufaturados horrorosos era o que estava dominando o mundo e os estava dominando também.

A China rompe com a União Soviética por quê? Ela queria transformar-se numa grande potência. A China sempre resgatou Stalin. Se bem que Stalin não queria que Mao-Tsé-Tung tomasse o poder, Golke na Itália… Mas, na Itália, o Partido Comunista estava pronto para tomar o poder. O problema da Itália eram as tropas americanas que estavam lá, e os Estados Unidos queriam aquilo, a União Soviética arrasada. Era o pretexto para o exército americano entrar na União Soviética – e já tinham uma bomba atômica – e arrasar com o primeiro país socialista. Aí, o Togliatti, em todos os seus discursos políticos, que conheço – acho que já li tudo o que ele escreveu – só tem uma frase sobre isso: que não foi possível tomar o poder por razões políticas internacionais. E ponto. O Stalin tem essa mesma colocação do Mao Tsé-Tung, em 49. Mao disse: “vire-se: nós estamos fazendo a nossa revolução. Nós vamos tomar o poder, sim”. A União Soviética começa essa ruptura de relações em 1961 porque a China queria se transformar em potência de qualquer maneira, e a União Soviética não estava a fim de patrocinar a China como potência, porque era um perigo, ela ia dominar a Ásia. Então, ela fica sozinha, e vem o momento de voltar atrás, vai franquear o caminho da Revolução Cultural, que é a apologia do atraso, inclusive endeusamento, aquelas coisas de Mao-Tsé-Tung, o Livro Vermelho. O fato é que a China superou tudo aquilo, deu a volta por cima, fizeram uma autocrítica muito profunda. O próprio PC foi passando por vários expurgos e chegou numa fase que não está propriamente fazendo uma Perestroika nem a glasnost a la Gorbachev, eles não vão copiar isso nem têm porque copiar, aquilo foi uma experiência que surgiu na União Soviética em função dos problemas, das carências e das necessidades da União Soviética. Eles fizeram uma grande abertura para o mundo. Nixon vai à China, Kissinger vai à China, enfim, começam a comerciar com o capitalismo, eles têm de comerciar, sim, era a política que Lenin preconizava desde sua época e não se pode fazer um socialismo isolado do resto do mundo, por isso que enfatizava. Foi o socialismo em um só país que o imperialismo não quis. Foi o imperialismo que colocou a cortina de ferro ali. A China começa a se desenvolver calada, abrindo para a Ásia, colocando seus produtos lá fora, abrindo suas portas para os investimentos asiáticos, para as potências capitalistas asiáticas. Realmente a China tem um grande futuro. Inclusive o socialismo não está questionado de nenhuma maneira. Muito pelo contrário. Os incidentes da Praça da Paz Celestial, de acordo com as informações que eu obtive – eu fui em uma conferência de imprensa que Fidel Castro deu aqui em Brasília, e ele colocava isso, as informações que ele recebia da liderança chinesa eram muito diferentes das ocidentais e ele não tinha porque acreditar na imprensa ocidental, que sempre mentiu sobre Cuba, sempre mentiu sistematicamente sobre o socialismo – estavam se aproveitando daquilo. A versão que ele tinha e que nela acreditava e, para mim Fidel tem todo credenciamento, ele fala coisas sérias, não inventa, ele é sério, se tiver que fazer críticos ele faz, nunca gostou do Gorbachev desde o começo… Os soldados ficaram dias sem disparar uma bala e começaram a ser provocados, as mortes foram trinta, porque ao final tinham que tirar aquilo da praça, ia dar até doença, o que foi muito lamentável. Foram trinta. Fala-se em mill.. Comemora-se até hoje, inclusive a própria esquerda. No Panamá, em que se matou cinco mil pessoas com uma invasão americana para depois Noriega, destruíram bairros inteiros e ninguém está fazendo luto quando se comemora um ano da intervenção norte-americana no Panamá, como não se comemora Granada, como não se está protestando com tanta fúria contra a intervenção que é cotidiana do boicote a Cuba, por isso estão fuzilando os contra-revolucionários, porque vão para fazer ações terroristas, isso não é novidade para eles, e num momento de fraqueza vem a repressão, o socialismo se deixam aquilo já perdem o controle. “O socialismo lá está fraquinho”, colocam uma bomba num arsenal, explodem aquilo e falam: “o povo cubano está começando a incendiar os arsenais de Fidel Castro”. Então, eles estão usando a lei, que é pena de morte, que existe nos Estados Unidos também. Mas em Cuba se critica, coitadinho do contra-revolucionário, que vem financiado pelo americano, pela CIA, foi pego cheio de armas para explodir pontos da economia cubana e foi julgado, condenado ao pelotão de fuzilamento, que pelo [menos] é mais digno que a câmara de gás. A lei do país é essa.

Então, não posso adiantar muito sobre a China a ser intuições, porque não sou especialista em China. Peço mil desculpas. A China vai se afirmar como uma grande potência mundial, por aí ela segura o Vietnã e a Coréia. Agora, ela não tem disposição, nem condições de ajudar Cuba. Por isso ressaltei no começo: o problema é Cuba.

Quando se fala que o socialismo morreu, é até uma falta de respeito pelo que existe no mundo. A sua pergunta é muito oportuna: e a China, a China está aí, mais de um bilhão de pessoas, questionada por quem? Pelos meninos da Praça da Paz Celestial? Ou pelo outro exilado que está em Paris, financiado por todos os agentes de propaganda do sistema burguês? Sinceramente, peço escusas, não tenho elementos, não tenho capacidade, não tenho condições. E o pior, o que me deixa agoniada, não tenho uma pesquisa sobre a China. A China nem divulga estatística. Uma pesquisa sobre a China, se não há estatística… Eles têm, mas não divulgam.

CARLOS MICHILLES – Agradeço a Professora Vania Bambirra pela sua inteligência e agudeza na sua interpretação desses fatos. Agradeço a presença de José Oscar Pelúcio, nosso comapnheiro, e um agradecimento carinhoso a todos os companheiros que estiveram hoje aqui nesta palestra, num ato de interesse e solidariedade a esse esforço de socialização da informação, das ideias de que nosso partido tanto carece. Muito obrigado. Não quero deixar de lembrar a todos para que divulguemos com a realização da próxima palestra, da professora Lia Faria, Secretária-Adjunta de Educação do Estado do Rio de Janeiro, que vem falar sobre “CIEPs: a utopia possível”. Na ocasião será lançado o seu livro sobre este tema, além da projeção de um filme com depoimentos de Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e Paulo Freire, sobre a experiência de ensino integral. Muito obrigado.


Notas de rodapé:

(1) Nota do Memorial-Arquivo Vania Bambirra: nesta frase, a autora lançou mão de figura de linguagem, não devendo-se interpretar literalmente a colocação, mas em sentido de ironia e tom hiperbólico. (retornar ao texto)

(2) Nota do Memorial-Arquivo: na degravação, consta a palavra “cultural”, que provavelmente foi erro de transcrição que passou inadvertido na revisão da autora. (retornar ao texto)

(3) Colchetes do Memorial-Arquivo Vania Bambirra. (retornar ao texto)

(4) Colchetes do Memorial-Arquivo Vania Bambirra. (retornar ao texto)

(5) Colchetes do Memorial-Arquivo Vania Bambirra. (retornar ao texto)

(6) Colchetes do Memorial-Arquivo Vania Bambirra. (retornar ao texto)

(7) Colchetes do Memorial-Arquivo Vania Bambirra. (retornar ao texto)

(8) Colchetes do Memorial-Arquivo Vania Bambirra. (retornar ao texto)

Inclusão: 16/11/2021