Dívida externa

Vania Bambirra

24 de setembro de 1987


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Palestra. Rio de Janeiro. 24 de setembro de 1987

HTML: Fernando Araújo.


Queria agradecer essa nova oportunidade de estar com vocês e tratar de um tema dos mais relevantes no nosso continente e no nosso país, nos dias de hoje. Eu creio que o problema da dívida começa a se colocar na América Latina a partir dos anos 1950. Até então, o problema da dívida era um problema insignificante. Isso não é aleatório, porque a partir dos anos 1950 começa a se desenvolver no nosso continente o que se chamou o novo caráter da dependência. Até então, pelo menos em alguns países como o Brasil, México, Argentina, Colômbia, Chile, Uruguai havia existido um processo de industrialização que vinha desde o fim do século passado. Que naturalmente criou classes sociais novas, desenvolveu sua burguesia industrial nacional com projeto próprio de desenvolvimento e um proletariado industrial significativo, com uma influência anarquista que deu várias demonstrações de força em 1905, 1909, 1919, em grandes greves gerais que paralisaram completamente a cidade do Rio de Janeiro e de São Paulo. Pois bem: ocorre na América Latina um processo de “revolução burguesa”, entre aspas porque não tem nada a ver com os modelos clássicos de revolução burguesa europeia. Mas o fato é que as burguesias industriais chegam ao poder e começam a desenvolver uma política moderna, progressista, industrialista, etc. Isso é muito claro porque essa política vai se expressar através das lideranças populistas clássicas: Perón, na Argentina; Vargas, no Brasil; e Cárdenas, no México. São as três grandes lideranças populistas que vão impulsionar o processo de industrialização nesses grandes países, três grandes países da América Latina.

Porém, a partir do pós-Guerra os EUA se afirmam como líder absoluto, como centro hegemônico do sistema capitalista mundial – e para os EUA é muito fácil que isto aconteça, porque é um país de dimensões continentais e que já havia conquistado seu mercado interno completamente. A Inglaterra começa a entrar em decadência desde o começo do século. Os EUA não sofrem a guerra em seu território, e a guerra estimula o desenvolvimento das forças produtivas e faz com que eles se afirmem como a grande potência mundial. Isso convinha ao sistema no seu conjunto, convinha para a Europa destruída, porque, ademais, o centro hegemônico punha ordem no sistema e poderia enfrentar a segunda grande potência que começava a emergir no mundo, que era a URSS. Apesar de que a URSS saiu-se da guerra (foi ela que derrotou o nazismo) havendo perdido 20 mihões de homens; teve mais de 100 cidades importantes completamente destruídas, mas começava a se firmar como a grande potência em potencial, sim, não é certo? Bem, esse grande desenvolvimento das forças produtivas vai levar ao aceleramento dos chamados fenômenos da revolução científico-técnica. Assim, a ciência passa a ser a principal força produtiva, a automação tende a superar a longo prazo o trabalho humano no processo produtivo direto; cria-se uma série de ramos produtivos, de setores produtivos novos; começam a se desenvolver a petroquímica, os plásticos, a cibernética etc. Os EUA se lançam na conquista do mundo e da América Latina, principalmente nos países que já tinham uma base industrial anterior, principalmente no México, Brasil e Argentina, que foram alvos então dos interesses fundamentais dos investimentos norte-americanos. Os investimentos norte-americanos começam a entrar, então, no setor moderno, no eixo da acumulação do processo de produção capitalista que é exatamente a indústria; e começam a entrar através de investimentos diretos de capital. Qual é a mudança fundamental da qualidade do processo de acumulação? Antes, as nossas burguesias exportavam matérias-primas e importavam máquinas, o que se convencionou chamar de “substituição de importações”. Se bem que, em geral, os teóricos que trataram da substituição de importações, por exemplo Maria da Conceição Tavares, escorregaram na conceituação, porque generalizavam isso para a América Latina no seu conjunto, o que não é verdade: a substituição de importações só existiu em alguns países, em seis países que eu mencionei. E isso se intensificou especialmente nos momentos de crise, 1a Guerra Mundial, crise de 1929, 2a Guerra Mundial. Então, esses países cresceram nesses períodos. Em todos os demais países da América Latina houve estagnação, nenhuma indústria vai começar a surgir a partir do pós-guerra, mas a partir da intervenção direta do capital estrangeiro. Nesses países, portanto, nunca chegou a existir nenhuma burguesia industrial ou nenhum projeto nacional de desenvolvimento. Pois bem: o capital estrangeiro começa a entrar aqui e as máquinas passam a vir não mais como importações de mercadoria, mas como investimento de capital e investimento de capital obsoleto. Porque, como o desenvolvimento tecnológico estava muito acelerado, eles tinham que exportar para a América Latina as máquinas obsoletas.

A tendência predominante é que o capital estrangeiro vai entrando e vai começando a controlar a economia. E quem controla a economia controla a política, controla a ideologia, controla a cultura, controla tudo. É a partir daí que, então, se começa a gerar a dívida, a partir dos anos 1950. No Brasil, especialmente no governo de Juscelino Kubitschek, através da Instrução 113 da SUMOC, em que se criam uma série de incentivos para penetração do capital, é que se começa a formar realmente a dívida. Mas, até o governo Goulart, que foi derrubado em 1964, a nossa dívida por exemplo era um pouco mais de três bilhões de dólares. A partir de 1964 o capital estrangeiro começa a entrar maciçamente no nosso país e na América Latina. Naturalmente, este continente se enche de golpes de Estado porque os líderes nacionalistas-populistas tinham que defender uma política de acordo com suas bases, com a classe operária. Por isso, se transformaram em figuras indesejáveis. O capital estrangeiro não podia permitir que líderes populistas que sempre faziam concessões aos setores populares e às classes trabalhadoras continuassem nos governos, porque necessitavam estabilidade, necessitavam para isso implementar a política econômica do FMI que é a única “realista”, que significa contenção de créditos, contenção de gasto fiscal e contenção dos salários. Contenção dos créditos à pequena e média empresa, porque realmente inflação gera instabilidade, inflação é um problema monetário, os monetaristas no fundo são os que têm razão… Ela tem que ser contida com medidas monetárias. Então, repressão econômica – que é o que significa a política do FMI – supõe repressão política, uma gera a outra. E, portanto, neste continente, 70% dos países na década de 1960 e 1970 viviam sob as ditaduras militares. Não era porque as classes dominantes preferiam isso, as classes dominantes sempre aceitam o processo de fascistização de narizes tapados, mas elas sempre atuam com instinto de sobrevivência de classe. O fato é que as nossas classes dominantes perderam a capacidade de exercer o ofício dos deuses, porque elas deixaram de ser capazes de controlar seu próprio destino. Todas as decisões de política, e política econômica em especial, passam pelo exterior e são referendadas pelo interior. A dívida vai se acumulando porquê? O capital estrangeiro vem com máquinas velhas, envia lucros, pagamentos de royalties, de patentes, fretes, serviços e vai descapitalizando. Então, vão se acentuando o que nós chamamos os mecanismos acumulativos da dependência. O capital estrangeiro é como o toxicômano: as drogas o estão matando, mas ele necessita das drogas para viver porque é viciado. O capital dependente precisa do capital estrangeiro, mas o capital estrangeiro está arrebentando com o capitalismo dependente. Então, o capital vai embora. Então, tem que se pedir empréstimo ou “ajuda” aos governos. E sobre estes empréstimos vamos pagando juros e juros e mais juros. E grande parte da dívida está constituída de juros. Então, é como uma bola de neve. São os mecanismos acumulativos da dependência, até chegar num ponto em que a dívida na América Latina chega por volta dos 400 bilhões de dólares. Pois bem: qual é a solução para isso? Não tem solução no capitalismo. Eu acho que, do ponto de vista teórico, estritamente marxista, quando o desenvolvimento das forças produtivas entra em contradição com as relações de produção estão dadas as condições objetivas para o socialismo. Porém, faltam as subjetivas, organização, consciência.

Fidel convocou uma série de reuniões – foram muitas, com mulheres, líderes sindicais, com analistas econômicos, políticos, etc., etc. para discutir o assunto da dívida. E deu uma série de entrevistas, porque ele não escreve, dá entrevistas, fala analisando. Ele analisou durante um período longo, com ajuda de técnicos, especialistas, estatísticos e economistas, e com vasto sistema de computação, a situação da dívida na América Latina. Levantou várias hipóteses e demonstrou que em nenhuma dessas hipóteses a dívida deve ser paga. A dívida “é impagável”. A gente, em Cuba, tinha dificuldade de traduzir, porque “impagável” no Brasil tem outra conotação. Mas agora o Bresser encontrou uma palavra mais adequada, não é certo? A dívida é incobrável. Só que cinicamente. Porque o governo brasileiro está pagando, nunca deixou de pagar. Essa moratória é “fajuta”. Porque o Delfim “gozou”, porque ele sempre fazia o mesmo, rolava isso com a barriga; ficava sem pagar os juros por vários meses sem fazer nenhum estardalhaço. Ademais, essa moratória foi só com os bancos privados.

Fidel dizia: a dívida é impagável por quatro razões. A primeira razão é histórica, porque foi o continente que financiou o desenvolvimento da Revolução Industrial, na Europa, particularmente na Inglaterra, na época. Celso Furtado diz no livro dele que o ouro que o Brasil mandou para a Inglaterra via Portugal dava para construir uma ponte de ouro daqui até lá. Sem contar o dos outros países, a prata mexicana, o estanho boliviano, etc. Quer dizer, nós financiamos a Revolução Industrial deles. Essa é a razão histórica. Há uma razão moral: enquanto você está pagando os juros dessa dívida, nosso povo está morrendo de fome. São dados do Jaguaribe, não sou eu que estou levantando isso. Ele já dá esse dado desde 1974, no livro dele, e agora voltou a reafirmar o dado na comissão dos estudos para a nova constituição: “64% dos brasileiros vivem em nível de miséria absoluta, basta pensar que 40% dos assalariados recebem ali um salário mínimo. Figueiredo tinha razão quando dizia: ‘eu dou um tiro na cabeça se eu ganhasse um salário mínimo’; mas é assim”. Então, aí está a razão social. A razão política para insistirem em pagar essa dívida e fazer o povo morrer de fome. E isso, sim, é atentado e é genocídio. Esse continente vai explodir, o caldeirão já está quente demais. E, por último, [a dívida é impagável] por razões econômicas, porque matematicamente não se pode pagar. Razões morais também, porque essa dívida, se for fazer uma auditoria, vão ver de onde ela foi contraída, não é certo? Estão aí as Angras, as usinas nucleares que não servem para nada, a não ser para colocar em risco e a possibilidade de um acidente nuclear, que matará e contaminará não só Angra dos Reis, por exemplo, mas isso vai se espalhar por grande parte do país inteiro. Investimento inútil, feito com acordo que o povo desconhece, um acordo secreto, o acordo nuclear brasileiro com a Alemanha. Os Estados Unidos, inclusive, ficaram contra, porque eles não gostam muito de militar no poder, eles prefiriam civil, com civil eles controlam melhor. Porque o militar, seja de direita, seja de esquerda, tem uma tendência nacionalista, então, eles preferem civil. Tem um artigo do [ilegível] sobre a Trilateral que coloca isso. Militar mais para a esquerda como um Velasco Alvarado, no Peru, que nacionalizou as empresas multinacionais tradicionais, mas mexeu com muita propriedade de terra, também de multinacional, incomodou bastante. E militar de direita faz Guerra das Malvinas, que também é um problema. Então, é muito mais fácil controlar um boneco como o Sarney ou o Bresser do que militar que tem arma na mão, que tem brinquedo perigoso na mão. Agora, o que nós vemos no Brasil é uma profunda impostura. Eu costumo dizer que não existe melhor monetarista que o estruturalista quando chega ao poder. Toda a equipe do Cruzado era toda estruturalista cepalina. Dizia que inflação e instabilidade se logra, se alcança [resolver] com reformas sociais. Que reforma eles fizeram? No fundo, o FMI nunca saiu daqui. Pode não estar vindo à mesa deles. Mas a política implementada é a do FMI e, agora mais do que nunca na história do país, nós estamos vivendo e eles têm o cinismo de dizer “o país está em véspera de uma recessão”. Mas já estamos na maior recessão da história. Nunca o achatamento salarial foi tão grande. O DIEESE publica aí o seu cálculo mostrando que a perda do poder aquisitivo do salário mínimo foi entre março do ano passado, e começo do Cruzado, até novembro desse ano, de 47%. E o pior é que a classe média também está sendo achatada. Ela está se proletarizando de maneira violenta e está se transformando, como diz Ruy Mauro Marini, em proletariado de serviços. Sem contar aquela enorme faixa da população brasileira que nunca entrou, nem tem possibilidade de entrar no processo produtivo direto. Vive de assalto… Estamos vendo o surgimento de exércitos paralelos, peitando a nossa PM porque estão mais bem armados que a PM. Os PMs ganham um salário igual ao da época da Revolução Industrial. Trabalham 80 a 90 horas por semana, inclusive a PM feminina; utilizam munições vencidas… Então ela não tem outra opção senão se corromper ou avisar para os bandidos, como fizeram no Santa Marta, “saiam, porque nós vamos entrar”, porque eles sabiam se entrassem iam morrer. Porque os bandidos estão mais bem armados. Os bandidos se transformam em protetores, porque substituem o aparato oficial de defesa da população e são mais queridos, porque eles não derrubam barracos, eles não desrespeitam o favelado. E, quando a PM vai lá e faz isso, eles reconstroem. Isso tende a se proliferar.

Mas voltando às colocações de Fidel – e vou voltar ao Brasil em seguida; em relação à questão da dívida, o que ele propõe? Ele fala [que] é impagável, então a solução seria, inclusive para fazer com que o sistema capitalista dure mais um pouco (de incendiário ele passou a bombeiro)… ele propõe o seguinte: vamos pegar 10% dos gastos militares dos países desenvolvidos e vamos pagar aos bancos a dívida, e vamos zerar a dívida. Então, isso aí vai fazer com que se reative o comércio internacional. Os bancos ficam numa boa, os países poderão então de novo começar o processo do zero, estimular o crescimento e o desenvolvimento da economia internacional capitalista. Para isso seria necessário colocar em prática o que já foi aprovado na ONU, a proposta do presidente [ilegível] do México, em 1974, de uma nova ordem econômica internacional, e uma reunião de chefes de Estado da América Latina para se unirem e todos decretarem o não pagamento da dívida. Não é nem moratória, é um não pagamento da dívida. O que os países capitalistas desenvolvidos poderão fazer? Confiscar os aviões, os barcos? Aí seria o fim do sistema, eles não teriam condições de fazer isso. Inclusive, Fidel dizia que o primeiro país que fizer isso não vai sofrer represálias, porque teria todo o apoio do Terceiro Mundo. Todo o apoio do campo socialista, todo apoio dos progressistas dos países capitalistas. Se não fizer isso vem a explosão. Agora, pensando um pouco na situação da América Latina e particularmente no Brasil, eu acho, de acordo com a definição clássica de Lênin de situação revolucionária – e eu sou uma leninista ortodoxa, mas devo insistir mais uma vez aqui: que a ortodoxia para mim é ser criadora, é fazer avançar a ciência, é fazer avançar, criando novas categorias de análise, fazendo a análise concreta de situação concreta, utilizar um método, mas entender que o mundo está mudando e mudando rapidamente… – a definição de situação revolucionária clássica é essa: quando os de cima não podem governar e os de baixo não podem mais, está criada uma situação revolucionária.

Qual é a situação do Brasil hoje, parando um pouco no Brasil? O próprio Delfim Neto diz: “eu não sou oposição porque já não existe governo”. Quando a classe média começa a ficar desesperada – porque é a classe média que lidera a fuzarca – isso vai explodindo. Não é aleatório que acontece um badernaço em Brasília, e lá ficou por isso, nunca apuraram quem liderou aquilo, tentaram colocar a culpa no PT, mas não comprovaram nada. Estava na cara que ali eram provocadores, porque estavam todos uniformizados. Mas o provocador atua sobre um terreno abonado e o fato é que incendiaram muitas viaturas de polícia ali. E foi o povo que entrou. Quando espontaneamente o povo quebra e queima uma quantidade de ônibus numa cidade como o Rio de Janeiro, como foi no dia do quebra-quebra, e que a gente viu na televisão a PM e os policiais civis correndo “feito barata tonta”, só conseguiram prender uma pessoa, foi reação espontânea mesmo. E eu acho que os PMs não estão nem aí porque os PMs também é gente do povo, quando não estão “loucos”. Porque se a gente vai analisar as baixas da PM – eu estive fazendo um curso de administração de segurança pública e tenho relatórios deles sobre isso, não estou falando no vazio – trezentos por mês [no] mês de março [de 1987] as baixas da PM: trezentos e tantos casos psiquiátricos, depois cardíacos, depois gastroenterestinais. Quer dizer, quando o cara não fica “louco” ele não trabalha. Assaltaram o Othon e renderam as viaturas da PM com a maior facilidade. É claro. Então, foi muito interessante isso: depois, quando o presidente da República é ameaçado… [ilegível] Pois todo mundo dizia ali, o Meneguelli da CUT… “se eu tivesse lá eu tinha gritado, mas não tinha jogado pedra”. Olha, se eu estivesse lá tinha jogado pedra mesmo, porque o mínimo que ele merece é pedra. Quando um presidente da república só puder sair à rua dentro de um Urutu, que é o que vai acontecer com o Sarney e o Moreira, só falta andar num Papamóvel… quando num dia de uma greve geral que fracassou 200 ônibus são apedrejados, quando todo dia tem assalto a supermercado e eles não noticiam, porque a imprensa agora está muito mais censurada do que no tempo de Figueiredo? Estamos ou não estamos entrando numa situação revolucionária? Agora, nem toda situação revolucionária conduz a uma revolução. Ela pode conduzir a uma contrarrevolução. E o nosso problema [se] está vivendo aqui no Brasil agora. Sem querer fazer paralelos, porém fazendo, eu acho que a história não se repete como comédia, mas como tragédia mesmo. Muitas vezes, nós vivemos uma situação igual a 1905 na Rússia [quando] não tinha uma liderança consolidada e ficaram dois anos de revolução, 1905 e 1906, e começa espontaneamente, e o começo, inclusive, é através de um provocador, que era o padre Gapon que, quando se fez a Revolução deveras em 1917, se descobriu que era um agente da polícia. Agora, claro, acho que iso aqui vive uma grande “anarquia”. Não só aqui, como em toda a América Latina. Na América Latina ainda existem regiões que estão em guerra. A América Central está em guerra. Peru está em guerra, a Colômbia está em guerra, e aqui no Brasil nós temos uma guerra civil no campo, que é muito pouco divulgada pela imprensa. De repente explode um avião, misteriosamente aí, de um ministro que era até um ministro muito moderado. De repente a UDR está se armando com um exército paralelo igual ao dos bandidos. Claro, os bandidos vão para a cadeia. Escadinha, o Gordo, estão todos na cadeia. Agora, o filho de Figueiredo; o Abi Ackel, os que fizeram grandes escândalos… não tem nenhum colarinho branco, nenhum desses caras na cadeia. E nós sabemos muito bem, favelados são testa-de-ferro: é óbvio que quem controla o grande tráfico de drogas no Brasil, como na Colômbia, a magia colombiana, são os senhores honoráveis e respeitáveis. A lógica é essa. Não são os favelados. Os favelados são os testas-de-ferro que fazem a distribuição. Então, eu acho que nós estamos marchando para uma grande “anarquia”, de sublevação. Não sei se isso vai resultar em revolução. Pode ser que na marcha surja uma liderança como a dos sandinistas, que eram um grupo pequeno. E por uma flexibilidade extrema, por uma sensibilidade extrema, [pode ser que] haja até um aprendizado com todos os erros anteriores que as tentativas insurrecionais na América Latina ensinaram e puderam conduzir e assumir a liderança do povo nicaraguense. E chegaram ao poder e estão avançando para o socialismo e [diante de] todas as dificuldades, avançando até o ponto, assim, de quando Tomás Borge inaugurou o CIEP Augusto Cesar Sandino, aqui, [e] ele falou que “na Nicarágua a gente não pode construir escolas, nós estamos construindo trincheiras, os meninos não estão estudando, os meninos estão com as armas na mão”. Mas é uma revolução imbatível, a não ser que eles queiram jogar uma bomba atômica lá dentro, morrer americano como gafanhoto. Enfim, é impossível um processo irreversível.

Estas são as linhas gerais que eu vejo da situação latino-americana, da situação brasileira. Eu acho que realmente as condições subjetivas para o socialismo não estão colocadas, que é a organização e a consciência. Ainda que, de repente, apareçam pesquisas que são publicadas nos grandes órgãos de imprensa que dizem que a maior parte da população brasileira preferia o socialismo, estou segura de que grande parte da população brasileira não sabe exatamente bem o que é o socialismo. E até me supreende isso, porque durante anos nós vivemos – e isso eu comentava com vocês da outra vez que estive aqui – [em que] as novas gerações tiveram uma lavagem cerebral, achando que socialismo é sinônimo de fascismo. Muita gente não sabe até hoje que em Cuba tem eleições democráticas, e que se pode revogar os deputados, 20% dos eleitores podem revogar os deputados. Isso é o máximo de democracia possível. Vá popor uma emenda na Constituinte de revogabilidade para ver o que acontece. Imagina se esses marajás vão querer ser revogados por 20% de seus eleitores. Impossível. E dizem que esses países são ditaduras. Claro, são ditaduras sim: mas toda ditadura – a gente já discutiu isso da outra vez – é democracia e toda democracia é ditadura, depende de na mão de quem. Socialismo é ditadura sobre um grupo pequenininho que quer resistir. Na medida em que vai desaparecendo esse grupo pequenininho, vai perdendo o espectro ditatorial. E no capialismo é uma ditadura de um grupo pequenininho sobre a maioria enorme. Não importa a forma de regime que seja, republicano…, qualquer dessas formas que existem.

Enfim, o que eu vejo é isso. Um continente conturbado, sem nenhuma possibilidade de enfrentar a situação da dívida, o que vai fazendo não só com que essa dívida, demonstrando não só que essa dívida é impagável como esses países são ingovernáveis enquanto existir capitalismo dependente. E, portanto, eu continuo de maneira porfiada insistindo na tese. A tendência é socialismo ou fascismo. Não há nenhuma perspectiva de se alcançar uma democratização substantiva nos marcos do capitalismo dependente. Basta olhar o que está fazendo essa constituinte que foi eleita pelo poder econômico. Só se elege quem tem dinheiro. Inclusive nos próprios partidos populares, os primeiros colocados são os que mais gastam dinheiro. Exceto exceções que confirmam a regra, como a Benedita da Silva, ou como o fenômeno de Leonel Brizola, casos isolados, lideranças muito comunitárias ou líderes que têm um passado histórico, etc. Mas em geral se elege… a eleição é investimento de capital, a UDR tem seus homens, os empresários têm seus homens, e eu queria mais uma vez reafirmar para vocês que a ciência social na América Latina, e no Brasil em particular, como perdeu a perspectiva de análise de classes, o marxismo foi banido das universidades… as ciências sociais escorregaram, resvalaram de maneira horrível na caracterização do Estado. Por exemplo, no Brasil, a caracterização de Mario Henrique Simonsen, do Fernando Henrique Cardoso, do Hélio Silva, quer dizer, pessoas de direita; do Roberto Campos… direita, centro-esquerda coincidiram em caracterizar o Estado no Brasil a partir de 1964 como controlado por uma tecnoburocracia civil-militar, Estado técnico-burocrático. Mentira. Basta ver a biografia de todos os ministros. As exceções confirmam a regra. Por exemplo, eu não creio que o Celso Furtado seja associado de uma multinacional. Mas em geral todos eles [os ministros] são diretores acionistas de grandes empresas multinacionais. Eu acho que já tinha colocado isso aqui para vocês antes. Mas eu gostaria muito de insistir, porque eu acho fundamental. O nosso Golbery que acaba de morrer, quem era ele? Era um general ou era diretor do Citybank, ou do [ilegível]? Era um empresário uniformizado. E o Geisel? Diretor da [ilegível]. Enfim, a burguesia nunca delegou poder a nenhum militar, a não ser quando o militar era também um empresário. Ela atuou, dirigiu pessoalmente, fisicamente a grande burguesia brasileira. Quem é Bresser? Sócio do [Grupo] Pão de Açúcar. E daí por diante. E é uma continuidade. Essa Nova República não tem nada nova. Agora vem essa história de abrir, e eles já estão abrindo há muito tempo e isso não é nenhuma novidade. Abrir, pagar a dívida através de inversões, capital de risco. E já vem acontecendo, tem a entrevista do Serra que saiu no JB de umas três semanas atrás, em que ele mostra isso. Inclusive calcula que esse ano seria um bilhão de conversão da dívida em capital de risco. Agora, eles estão interessados em converter os juros, não o principal, porque aí o país fica devendo da mesma maneira. E essa conversão vai ser feita através de inversões diretas ou, então, de associações com grandes empresas. Naturalmente, só vão querer associar ou comprar as empresas, aquelas que são lucrativas, porque eles não ver querer ser papagaios, eles são muito competentes nas coisas deles. Então, o que nós estamos vendo é a acentuação de um processo de desnacionalização das nossas economias como nunca houve antes na história. Eu costumo dizer que é preferível já o Brasil transformar-se numa estrelinha da bandeira [norte-]americana, a virar um Porto Rico da vida. Acabou. Acabou o país, acabou a nação. Anexar. É essa a tendência, é agravar a situação cada vez mais, é claro. O sistema econômico internacional está preocupado; é o próprio Kissinger que está propondo aí um fundo comum de 30 bilhões de dólares para ajudar os países, são essas moratoriazinhas fajutas, mas que incomodam os bancos particulares; e uma situação de desagregação social e de desespero que tende a se acentuar. A Revolução científico-técnica nos nossos países é muito mais impiedosa. Nós já entramos em banco e vimos as maquininhas eletrônicas. E, daqui a pouco, nós vamos entrar em banco e não vamos ver nenhuma figura humana. Estou citando banco como um exemplo. Quer dizer, a tendência do sistema nos países capitalistas desenvolvidos e, aqui, de uma maneira ainda mais grave é o desemprego estrutural. Então, eu estou prevendo o fim desse sistema como mil vezes pior do que a tragédia do fim do Império Romano. Hordas de famintos e de desempregados vagando pelas ruas. E quando você não tem mais nada a perder, você está disposto a tudo, a morrer para conseguir algo. A violência nas grandes cidades vai tender a aumentar, porque o desempregado rouba; o cara, quando vê o filho morrendo de fome, ele rouba; porque é uma questão de sobrevivência do ser humano. Agora, é claro, isso é um drama da história que não vai acontecer de um dia para o outro. O sistema ainda tem capacidade de [se] recuperar conjunturalmente. Mas não tem nenhuma capacidade de se recuperar da crise estrutural, que ele vive nela e que coloca de maneira muito clara o socialismo como uma necessidade histórica, não como um ideal ideológico-doutrinário. Nós estamos vivendo dias de bastante drama, e eu creio que realmente nesse país ingovernável o povo vai tentar resolver a coisa. Creio que estamos vivendo numa véspera de grandes convulsões sociais, no Brasil e na América Latina, a América Latina já tem uma grande parte convulsionada. E não é nem uma questão de competência. É uma questão de situação objetiva. Não creio que o Bresser seja um incompetente, não é um incompetente. Mas é que o sistema realmente não tem saída. Enfim, eu acho que ficaria por aqui, porque o mais interessante será agora a gente poder debater e conversar com vocês.


Inclusão: 14/11/2021