Três desafios principais: democracia, questão agrária, ecologia

Samir Amin


Fonte: http://www.ocomuneiro.com/nr17_10_samir.html

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


1) “Democracia”? Ou democratização associado ao progresso social?

Foi um golpe de génio diplomático da aliança atlântica escolher o campo da "democracia" para a sua ofensiva que teve como objetivo, desde o início, o desmantelamento da União Soviética e a reconquista dos países da Europa Oriental. Esta decisão remonta à década de 1970, foi gradualmente cristalizada na Conferência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e, em seguida, plasmada com a assinatura da Acta Final de Helsínquia, em 1975. Jacques Andreani, em seu livro com o título sugestivo Le Piège, Helsinki et la chute du Communisme (A Armadilha: Helsínquia e a queda do comunismo) http://books.google.pt/books/about/Le_piège.html?id=qTdNb2qt9EoC&redir_esc=y, explica como os soviéticos, que estavam esperando um acordo sobre o desarmamento da NATO e uma verdadeira détente, foram simplesmente enganados por seus parceiros ocidentais.

Foi um golpe de génio, porque a "questão da democracia" era uma questão genuína e o mínimo que podia dizer-se era que os regimes soviéticos não eram certamente "democráticos", como quer que definamos esse conceito e prática. Os países da Aliança Atlântica, em contrapartida, poderiam qualificar-se a si próprios como "democráticos", quaisquer que fossem as limitações e contradições em suas práticas políticas reais, subordinadas às exigências da reprodução capitalista. A comparação entre os dois sistemas operava em seu favor.

Esse discurso sobre a democracia foi, então, substituído gradualmente pelo único apoiado pelos soviéticos e seus aliados: a "coexistência pacífica", associada com o "respeito" pelas práticas políticas de ambas as partes e a "não interferência" em seus assuntos internos.

O discurso da coexistência teve seus momentos importantes. Por exemplo, o Apelo de Estocolmo, em 1950, lembrou a toda a gente a ameaça nuclear real, implicada pela diplomacia agressiva utilizada pelos Estados Unidos desde a Conferência de Potsdam (1945), reforçada pelo bombardeio atômico do Japão, poucos dias depois dessa conferência.

No entanto, ao mesmo tempo, a escolha desta estratégia (coexistência e não-interferência) era conveniente - ou podia ser conveniente, conforme as circunstâncias - para os poderes dominantes, tanto a Leste como a Oeste. É que isso permitiu que a realidade das respectivas descrições, 'capitalista' e 'socialista', pudesse ser dada como certa pelos países do Oeste como do Leste. Eliminou toda a discussão séria sobre a natureza precisa dos dois sistemas, isto é, a partir do exame do capitalismo realmente existente na nossa era (capitalismo oligopólico) e do socialismo realmente existente. A Organização das Nações Unidas (com o acordo tácito dos poderes dos dois mundos) mudou os termos de "capitalismo" e "socialismo" para "economias de mercado" e "economias centralmente planejadas" (ou “economias administradas", se quiséssemos ser maldosos).

Estes dois termos - ambos falsos (ou apenas superficialmente verdadeiros) - tornaram por vezes possível enfatizar a "convergência dos sistemas": uma convergência que seria, ela própria, imposta pela tecnologia moderna (uma teoria - também falsa - derivada de uma conceção monística, tecnicista da história). Também se aceitou a coexistência a fim de facilitar esta convergência "natural" ou, pelo contrário, realçou-se a oposição irredutível entre o modelo "democrático" (associado à economia de mercado) e o modelo "totalitário" (produzido pela economia “administrada”), em certos momentos durante a Guerra Fria.

Escolhendo concentrar a batalha em torno do discurso da “democracia” tornou-se possível optar pelo “implacabilidade" da luta entre os sistemas e oferecer aos países do Leste só a perspectiva da capitulação, retornando ao capitalismo (ao "mercado"), o qual deveria então produzir - naturalmente - as condições para a democratização. O facto de que este não foi o caso (para a Rússia pós-soviética), ou que tenha tido lugar em formas altamente caricaturais (em alguns grupos étnicos, aqui e ali, na Europa Oriental) é uma outra questão.

O discurso "democrático" dos países da Aliança Atlântica é de fato recente. No início, a NATO acomodou-se perfeitamente bem com Salazar em Portugal, os generais turcos e os coronéis gregos. Ao mesmo tempo, as diplomacias da tríade (E.U.A., Japão, Europa ocidental) apoiaram (e muitas vezes impuseram) as piores ditaduras que a América Latina, a África e a Ásia já tinham conhecido.

No início, o novo discurso democrático foi adotado com muita reticência. Muitas das principais autoridades políticas da Aliança Atlântica viram os inconvenientes que poderiam perturbar a sua preferida 'realpolitik'. Foi só quando Carter se tornou presidente dos Estados Unidos (um pouco como Obama hoje) que o sermão 'moral' transmitido pela democracia foi entendido. Foi Mitterand, em França, quem rompeu com a tradição gaullista de recusar a “divisão” imposta à Europa pela estratégia de guerra fria promovida pelos Estados Unidos. Mais tarde, a experiência de Gorbachev na U.R.S.S. deixou claro que a adesão a este discurso era uma garantia para a catástrofe.

O novo discurso "democrático" deu, assim, os seus frutos. Parecia suficientemente convincente para que a opinião “de esquerda” na Europa o apoiasse. Isso foi assim não apenas para a esquerda eleitoral (os partidos socialistas), mas também para aqueles com uma tradição mais radical, de que os partidos comunistas foram os herdeiros. Com o “eurocomunismo” este consenso tornou-se geral.

As classes dominantes da tríade imperialista aprenderam as lições da sua vitória. Elas decidiram assim continuar esta estratégia de centrar o debate sobre a "questão democrática". A China não é censurada por ter aberto a sua economia para o mundo exterior, mas porque as suas políticas são geridas pelo partido comunista. Não se tomam em conta as conquistas sociais de Cuba, inigualáveis em toda a América Latina, mas o seu sistema de partido único é constantemente estigmatizado. O mesmo discurso é ainda dirigido contra a Rússia de Putin.

É o triunfo da democracia o verdadeiro objetivo dessa estratégia? É preciso ser muito ingênuo para pensar assim. O único objetivo é impor aos países recalcitrantes "a economia de mercado”, aberta e integrada no chamado sistema mundial liberal. Este último é, na sua realidade, imperialista, sendo seu propósito o de reduzir esses países à condição de periferias dominadas do sistema. Este é um objectivo que, uma vez alcançado, torna-se um obstáculo para o progresso da democracia nos países vitimados. Não é, de forma alguma, um avanço na resposta à "questão democrática".

As hipóteses de progresso democrático nos países que praticavam o "socialismo realmente existente" (pelo menos no início) teriam sido muito maiores, a médio prazo, senão mesmo imediatamente. A dialética das lutas sociais ter-se-ia desenvolvido por sua conta própria, abrindo a possibilidade de ultrapassar os limites do "socialismo realmente existente" (que, aliás, foi ainda deformado por uma adesão parcial à abertura da economia liberal) para alcançar o "fim do túnel”.

Na realidade, o tema "democrático" só é invocado contra os países que não querem se abrir para a economia liberal globalizada. Há menos preocupação para com os regimes políticos altamente autocráticos. Arábia Saudita e Paquistão são bons exemplos, mas também a Geórgia (adepta da Aliança Atlântica ) e muitos outros.

Além disso, na melhor das hipóteses, a fórmula "democrática" proposta dificilmente ultrapassa a caricatura de "eleições multipartidárias", que não só são completamente alheias às exigências do progresso social, mas que são sempre - ou quase sempre - associadas à regressão social que a dominação do capitalismo realmente existente (o dos oligopólios) exige e produz. Esta fórmula já prejudicou enormemente a democracia, que muitos povos, profundamente confundidos, já substituem agora por amarras étnicas e religiosas para com o passado.

É agora, portanto, mais do que nunca, necessário reforçar a crítica da esquerda radical (sublinho radical para a distinguir da crítica da esquerda, que é confusa e vaga). Em outras palavras, deve ser uma crítica que associa, ao invés de dissociar, a democratização da sociedade (e não apenas a sua gestão política) com o progresso social (em uma perspectiva socialista). Nesta crítica, a luta pela democratização e a luta pelo socialismo são uma e a mesma coisa. Não há socialismo sem democracia, mas também nenhum progresso democrático sem uma perspectiva socialista.

A democratização é um processo sem fim, que não pode ser reduzido à chamada democracia representativa de eleições pluripartidárias, que não dá às pessoas poder sobre o seu destino e não lhes permite transformar a sociedade. A democratização é multidimensional. Ela integra a grande questão do género, bem como a garantia das liberdades individuais, que devem ser desenvolvidas, não restringidas. Ela envolve também os direitos sociais coletivos, tendo em vista a socialização da gestão da economia, movendo-se, portanto, para além do capitalismo, baseado que é este no caráter sagrado da propriedade privada.

2) A nova questão agrária: o acesso à terra para os camponeses do Sul

Todas as sociedades antes do tempo moderno (capitalista) foram sociedades camponesas. A sua produção era governada por vários sistemas e lógicas específicas que compartilham, no entanto, o facto de não serem aqueles que regem o capitalismo (ou seja, a maximização do retorno sobre o capital em uma sociedade de mercado).

A agricultura capitalista moderna, representada tanto pela agricultura familiar rica como pelas empresas do agronegócio, está agora na expectativa de um ataque maciço à produção camponesa do terceiro mundo. O projeto conseguiu o sinal verde da O.M.C., em sua sessão de Doha. No entanto, o campesinato ainda ocupa metade da humanidade. Mas a sua produção está dividida entre dois setores extremamente desiguais em tamanho, com carateres econômico-sociais e níveis de eficiência claramente distintos.

A agricultura capitalista, governada pelo princípio do retorno sobre o capital, que se localiza quase exclusivamente na América do Norte, na Europa, na Austrália e no cone sul da América Latina, emprega apenas algumas dezenas de milhões de agricultores que já não são "camponeses". Mas a sua produtividade, que depende da mecanização (da qual eles têm o monopólio mundial) e da área de terra possuída por cada agricultor, varia entre 10.000 e 20.000 quintais de cereais equivalentes por cada trabalhador e por ano.

Por outro lado, os sistemas de agricultura camponesa ainda constituem a ocupação de quase metade da humanidade - ou seja, três bilhões (milhares de milhões) de seres humanos. Esses sistemas de produção são, por sua vez, compartilhados entre aqueles que se beneficiaram com a revolução verde (fertilizantes, pesticidas e sementes selecionadas), mas são, no entanto, pouco mecanizados, com uma produção que varia entre 100 e 500 quintais por agricultor, e o outro grupo, ainda excluído desta revolução, cuja produção é estimada em torno de 10 quintais por agricultor.

A nova questão agrária é o resultado deste desenvolvimento desigual.

Na verdade, a modernização sempre combinou dimensões construtivas (acumulação de capital e progresso da produtividade) com aspectos destrutivos (redução do trabalho ao estatuto de uma mercadoria vendida no mercado, muitas vezes destruindo a base ecológica natural, necessária para a reprodução da vida e da produção, polarizando a riqueza em um nível global). A modernização foi sempre, simultaneamente, "integração" daqueles para quem o emprego foi criado pela própria expansão dos mercados e "exclusão" para aqueles que, tendo perdido suas posições nos sistemas anteriores, não foram integrados na nova força de trabalho. Todavia, em sua fase ascendente, a expansão capitalista global fez realmante integração, juntamente com seus processos de exclusão. Agora, porém, no que diz respeito à área das sociedades camponesas do Terceiro Mundo, seria maciçamente excludente, incluindo apenas minorias insignificantes.

A questão levantada aqui é, precisamente, se esta tendência deve continuar a operar com respeito aos três bilhões de seres humanos que continuam a produzir e viver no quadro das sociedades camponesas, na Ásia, África e América Latina.

Na verdade, o que iria acontecer a partir de agora, se "a agricultura e a produção de alimentos" fosse tratada como qualquer outra forma de produção submetida às regras da concorrência num mercado aberto, desregulamentado, como foi decidido, em princípio, na última conferência da O.M.C. (Doha, Novembro de 2001)?

Será que tais princípios promoveriam a aceleração da produção?

Na verdade, pode-se imaginar cerca de vinte milhões de novos agricultores modernos adicionais, produzindo o que os três mil milhões de camponeses atuais podem oferecer ao mercado, para além de garantir a sua própria (má) auto-subsistência. As condições para o sucesso de uma tal alternativa implicariam a transferência de importantes pedaços de boa terra para os novos agricultores (e estas terras têm que ser retiradas das mãos das atuais sociedades camponesas), o acesso aos mercados de capital (para comprar equipamentos) e o acesso aos mercados consumidores. Tais agricultores poderiam de fato "competir" com sucesso com os milhares de milhões de camponeses presentes. Mas o que aconteceria com estes?

Dadas as circunstâncias, admitir o princípio geral da concorrência para os produtos agrícolas e géneros alimentícios, como imposto pela O.M.C., significa aceitar que milhares de milhões de produtores "não-competitivos" sejam eliminados no curto tempo histórico de algumas décadas. O que será destes milhares de milhões de seres humanos, a maioria dos quais são já pobres entre os pobres, mas que se alimentam a a si próprios, ainda que com grande dificuldade. Pior ainda, qual será a situação de um terço desta população (já que três quartos da população desnutrida do mundo são moradores rurais)? Dentro dos próximos 50 anos, nem um desenvolvimento industrial relativamente competitivo, com a hipótese fantasiosa de um crescimento contínuo de 7% ao ano para três quartos da humanidade, poderia absorver sequer um terço desta reserva.

O principal argumento apresentado para legitimar a alternativa doutrinal competitiva da O.M.C. é que tal desenvolvimento aconteceu na Europa do século XIX e, finalmente, produziu uma moderna e afluente sociedade urbano-industrial, agora pós-industrial, bem como uma agricultura moderna, capaz de alimentar a nação e até mesmo produzir excedentes para exportação. Por que não haveria este padrão de se repetir nos países contemporâneos do Terceiro Mundo, em particular nos países emergentes?

O argumento não leva em conta dois fatores principais que tornam a reprodução deste padrão quase impossível, hoje, em países do terceiro mundo.

O primeiro é que o modelo europeu se desenvolveu ao longo de um século e meio, juntamente com tecnologias industriais que eram então intensivas em trabalho humano. As tecnologias modernas são-no muito menos. E são estas que devem ser adoptadas pelos recém-chegados do terceiro mundo para serem competitivos nos mercados globais com as suas exportações industriais.

O segundo fator é que a Europa beneficiou, durante todo esse tempo de transição, da possibilidade de uma emigração maciça para o seu "excedente" de população, sobretudo para as Américas.

Esse argumento - ou seja, de que o capitalismo "resolveu" de facto a questão agrária nos seus centros desenvolvidos - sempre foi admitido por grande parte da esquerda, inclusive dentro do marxismo histórico, como testemunhado pelo famoso livro de Kautsky – ‘A questão agrária’ - escrito antes da Primeira Guerra Mundial. O próprio leninismo herdou essa visão e, com essa base, empreendeu-se uma modernização através da coletivização estalinista, com resultados duvidosos. O que sempre foi esquecido é que o capitalismo, enquanto resolvia a questão nos seus centros, fazia-o gerando uma gigantesca questão agrária nas periferias, a qual não pode resolver, a não ser através do genocídio de metade da humanidade. Dentro do marxismo histórico só o maoísmo entendeu o tamanho do desafio. Portanto, aqueles que acusam o maoísmo do chamado "desvio camponês" mostram com essa mesma crítica que não têm a capacidade de análise necessária para a compreensão do que é o capitalismo imperialista realmente existente, que reduzem a um discurso abstrato sobre o capitalismo em geral.

A modernização através da liberalização do mercado, tal como sugerido pela O.M.C. e seus apoiantes, alinha finalmente lado a lado, sem sequer necessariamente os combinar, dois componentes: (i) a produção de alimentos em escala global por modernos agricultores competitivos baseados principalmente no Norte, mas também, possivelmente, no futuro, em alguns bolsões do Sul; (i ) a marginalização - exclusão - e empobrecimento da maioria dos três mil milhões de camponeses do actual terceiro mundo e, finalmente, a sua reclusão em alguns tipos de "reservas". Tal modernização, portanto, combina (i) um discurso dominante pró-modernização e eficiência com (ii) um conjunto de políticas de reserva cultural ecológica que tornem possível às vítimas "sobreviver". Estes dois componentes podem, portanto, complementar-se um ao outro em vez de entrar em "conflito”.

Podemos imaginar outras alternativas e vê-las amplamente debatidas. Nesse quadro fica implícito que a agricultura camponesa deve ser mantida durante todo o futuro visível do Século XXI, mas ao mesmo tempo envolvida em um processo contínuo e progressivo de mudança tecnológica/social. A um ritmo que permitiria uma transferência progressiva para o emprego não-rural e não-agrícola.

Um tal conjunto estratégico de metas envolve complexas misturas de políticas a nível nacional, regional e global:

A nível nacional implica macro-políticas de proteção da produção de alimentos camponesa da concorrência desigual dos agricultores modernizados - agro-negócios locais e transnacionais. Com vista a garantir preços internos dos alimentos aceitáveis, eventualmente desconectados dos chamados preços no mercado internacional (na verdade, os mercados estão também influenciados pelos subsídios existentes nos países ricos do Norte - E.U.A./Canadá/Europa).

Tais objectivos políticos também questionam os padrões de desenvolvimento industrial-urbano, que devem ser menos baseados em prioridades orientadas para a exportação, aproveitando-se dos baixos salários (que implicam, por sua vez, preços baixos para os alimentos), e estar mais atento a uma expansão do mercado interno socialmente equilibrada.

Uma estratégia de desenvolvimento de acordo com este desafio deve ser baseada na garantia a todos os camponeses de acesso à terra e aos meios do seu uso, tão igualmente quanto possível. No entanto, o progresso necessário da produtividade da agricultura familiar camponesa não precisa de indústrias para apoiá-lo. A industrialização, portanto, é inescapável, mas os seus padrões não devem reproduzir os do capitalismo, que geram crescentes desigualdades e devastações ecológicas. Programas que substituem a invenção de novos padrões de industrialização pela chamada “ajuda externa”, associada a discursos vazios (boa governação, combate à pobreza) são nada mais do que a continuação dos discursos coloniais. O verdadeiro objetivo do imperialismo é marginalizar os povos. Para o imperialismo, os recursos naturais africanos (petróleo, minerais, terra) são importantes, não os povos africanos em si, que representam apenas, isso sim, um obstáculo à pilhagem dos seus recursos.

Simultaneamente, uma tal escolha de princípios facilita a integração, nos padrões gerais do regime, de políticas que garantam a segurança alimentar nacional, condição indispensável para um país poder ser um membro ativo da comunidade global, dispondo da indispensável margem de autonomia e de capacidade de negociação.

Aos níveis regional e global, implica acordos internacionais e políticas que se afastem dos princípios doutrinários liberais que regem a O.M.C., políticas imaginativas e específicas, para diferentes áreas, uma vez que têm de levar em consideração as questões específicas e as condições históricas e sociais concretas.

3) O “ambiente”, ou a perspectiva socialista do valor de uso? A questão ecológica e a do chamado desenvolvimento sustentável

Aqui, também, o ponto de partida é o reconhecimento de um problema real - a destruição do meio ambiente natural e, em última instância, a sobrevivência da vida no planeta - que foi provocada pela lógica de acumulação de capital.

Aqui, também, a questão remonta à década de 1970, mais precisamente, à Conferência de Estocolmo de 1972. Mas há muito tempo que era uma questão menor, marginalizada por todos os discursos dominantes e pelas práticas de gestão econômica. A questão só foi apresentada como um novo elemento central na estratégia de dominação há relativamente pouco tempo.

Levar em conta o valor de uso (do qual a pegada ecológica constitui o primeiro bom exemplo) implica que o socialismo deve ser "ecológico", não pode ser qualquer outra coisa, mas ecológico. Como Altvater observou teremos o "socialismo solar" ou "nenhum socialismo" (Elmar Altvater, The plagues of capitalism, energy crisis, climate collapse, hunger and financial instabilities http://www.greatrecession.info/2009/02/01/the-global-economic-crises-and-the-search-for-alternatives-from-the-south/ - As pragas do capitalismo, crise de energia, colapso do clima, fome e instabilidade financeira -, documento apresentado no Fórum Mundial de Alternativas, Caracas, 2008).

No entanto, também significa que é impossível para qualquer sistema capitalista que seja, até mesmo para um que seja “reformado”, levá-lo em conta, como veremos mais tarde.

No seu tempo, Marx não se limitava a suspeitar da existência deste problema. Ele já tinha formulado uma distinção rigorosa entre valor e riqueza, que foram confundidos pela economia vulgar. Ele disse explicitamente que a acumulação capitalista destruiu as bases naturais em que foi fundada: os seres humanos (o trabalhador alienado, explorado, dominado e oprimido) e a terra (símbolo da riqueza natural dada à humanidade). E quaisquer que sejam os limites desta expressão, como sempre, prisioneira de sua época, não deixa de ser verdade que ela mostra uma consciência lúcida do problema (para além da intuição), que deve ser reconhecida.

Por isso, é lamentável que os ecologistas da nossa era não leiam Marx. Ter-lhes-ia permitido levar mais longe as suas proposições, compreender melhor o seu impacto revolucionário e ainda, obviamente, ir para além do próprio Marx sobre o assunto.

Esta deficiência da ecologia moderna torna mais fácil a sua conquista pela economia vulgar, que está em uma posição dominante no mundo contemporâneo. Esta conquista já está em curso – e até bem avançada.

A ecologia política, como a proposta por Alain Lipietz, foi encontrada pela primeira vez nas fileiras da "esquerda política" pró-socialista. Em seguida, os movimentos “verdes” (e, depois disso, os partidos "verdes") foram classificados como de centro-esquerda, por causa de suas simpatias expressas para com a justiça social e internacional, a sua crítica do "desperdício" e sua empatia com os trabalhadores e as populações "pobres”. Mas, para além da diversidade desses movimentos, nenhum deles tinha estabelecido uma relação rigorosa entre a autêntica dimensão socialista necessária para responder ao desafio e a dimensão ecológica, não menos necessária. Para ser capaz de fazer isso, a diferença entre o valor e a riqueza, como postulada por Marx, não pode ser ignorada.

A conquista da ecologia pela ideologia vulgar opera em dois níveis: reduzindo o cálculo de valor de uso a um "melhor" cálculo do valor de troca e, também, integrando o desafio ecológico em uma ideologia de "consenso". Ambas estas operações impedem a assunção de uma consciência lúcida de que ecologia e capitalismo são antagônicos em sua própria essência.

A economia vulgar tem vindo a capturar o cálculo ecológico aos poucos. Milhares de pesquisadores mais jovens, nos Estados Unidos e, por imitação, na Europa, foram já mobilizados para o efeito.

Os "custos ecológicos" são, assim, equiparados às externalidades. O método comum de análise custo/benefício para medir o valor de troca (o qual, por sua vez, é confundido com o preço de mercado) é, portanto, utilizado para se chegar a um "preço justo", integrando as economias externas e as "deseconomias". E o truque está feito!

Na verdade, como já se pode verificar, os oligopólios assumiram o ecologismo para justificar a abertura de novos campos para a sua expansão destrutiva. François Houtart deu um excelente exemplo em seu livro sobre os agrocombustíveis (François Houtart, L'Agroénergie, solution pour le climat ou sortie de crise pour le capital? – Agroenergia, solução para o clima ou saída de crise para o capital? - Couleur Livres, Charleroi, 2009). http://www.couleurlivres.be/html/nouveautes/agro.html

O capitalismo "verde" está agora na ordem do dia para quem está no poder na tríade (à direita ou à esquerda) e para os diretores de oligopólios. O ecologismo em questão, claro, está de acordo com a chamada "sustentabilidade fraca" - para usar o jargão atual - ou seja, a comercialização dos "direitos de acesso aos recursos do planeta”. Todos os economistas convencionais se reuniram abertamente em torno desta posição, propondo "o leilão dos recursos mundiais (pesca, licenças de poluição, etc.)". Esta é uma proposição que vem apenas em apoio dos oligopólios, na sua ambição de hipotecar ainda mais o futuro dos povos do Sul.

Esta conquista do discurso ecologista está fornecendo um serviço muito útil ao imperialismo. Ela torna possível marginalizar, senão eliminar por completo, a questão de desenvolvimento. Como sabemos, a questão do desenvolvimento não estava na agenda internacional até que os países do Sul foram capazes de impô-la por suas próprias iniciativas, obrigando os poderes da tríade a negociar e a fazer concessões. Mas desde que acabou a era de Bandung, deixamos de ter uma questão de desenvolvimento, mas apenas de abertura dos mercados. A ecologia, como é interpretada pelos poderes dominantes, é apenas o prolongamento deste estado de coisas.

A conquista do discurso ecologista pela política de consenso (expressão necessária do conceito de capitalismo como final-da-história) está não menos avançada.

Esta conquista teve uma passagem fácil, pois responde às alienações e ilusões de que se alimenta a cultura dominante, que é a do capitalismo. Tem sido fácil, porque essa cultura realmente existe, está em vigor e dominante nas mentes da maioria dos seres humanos, nos países do Sul como nos do Norte.

Em contraste, é difícil expressar a necessidades de uma contra-cultura socialista. A cultura socialista não está aí, na nossa frente. É o futuro que tem de ser inventado, um projeto de civilização, aberto a um imaginário inventivo. Fórmulas como "socialização através da democracia e não através do mercado" e "dominação cultural em vez de económica, servida pela política" não são suficientes, apesar do sucesso que tiveram no desencadeamento do processo histórico de transformação. Pois que este vai ser um longo processo "secular": a reconstrução das sociedades em princípios que não sejam os do capitalismo, tanto no Norte como no Sul, não pode ser "rápida". Mas a construção do futuro, mesmo que seja longa, começa hoje.


Inclusão: 20/02/2021