Carta de intenções para uma reunião inaugural da Internacional dos Trabalhadores e dos Povos

Samir Amin

28 de julho de 2018


Primeira Edição: Esta carta de intenções foi, porventura, o seu último texto político, escrito uns quinze dias antes do seu súbito falecimento a 12 de agosto de 2018. A análise que a acompanha, intitulada “É imperativo reconstruir a Internacional dos Trabalhadores e dos Povos”, havia já sido publicada em agosto de 2017.

Fonte: http://www.ocomuneiro.com/nr28_11_SamirAmin.html

Tradução: Ângelo Novo a partir do original em língua francesa.

HTML: Fernando Araújo.


Caros Camaradas, Caros Ativistas, Caros Trabalhadores,

O capitalismo globalizado, entrado na sua fase decadente, combina um poder político e económico quase totalitário com uma agressividade cada vez mais intensa, que se aproxima inquietantemente do risco de uma guerra generalizada. Nesta crise paroxística, os países imperialistas do Ocidente histórico (Estados Unidos, Europa Ocidental, Japão) não querem permitir que outros Estados emergentes se emancipem do quadro que lhes é imposto e saiam do seu estatuto de periferias dominadas. A tensão existente entre o Ocidente e a Rússia, a China e o Irão não é um fenómeno passageiro, mas o epicentro de uma nova remodelação violenta do mundo em benefício das burguesias ocidentais.

A nossa resposta, enquanto movimentos emancipatórios dos povos, não tem estado à altura do perigo. Nossas lutas estão desintegradas, fragmentadas ou excessivamente focadas em questões nacionais. Abandonamos os objetivos de transformação global que presidiram ao Fórum Social Mundial e ao movimento altermundialista, em seu nascimento. Pior, o próprio propósito de destruir o capitalismo não está presente, embora seja cada vez mais aparente que este sistema está levando a humanidade à ruína. Neste contexto, o ataque de nossos inimigos foi fulminante: contra-revolução do tipo “mudança de regime” violenta ou legalista na América Latina, assassinatos políticos contra a revolução na Tunísia, manipulação de grupos extremistas sanguinários para pôr em respeito o Egito, a Síria e a África, um fim sem glória para os Fórums Sociais Europeus...

A experiência mostra que a fragmentação das lutas e a exploração, por parte do sistema, de rivalidades existentes nas nossas opções ideológicas, ou das nossas clivagens históricas (Leste-Oeste e Norte-Sul), prejudicaram fortemente a construção de um contrapoder à escala global. A desaceleração do processo do Fórum Social significa que este não serve mais como lugar para desenvolver uma alternativa real.

Não podemos continuar nesta impotência política e precisamos de reconstruir uma aliança na qual dinamizaremos e estruturaremos as nossas forças comuns.

A ideia de construir uma nova organização do tipo Internacional dos Trabalhadores e dos Povos está no ar há alguns anos. Precisamos de uma organização estruturada que se esforce por dar aos movimentos em luta alguns objetivos de luta comuns e construa assim solidariedades concretas entre eles. Os trabalhadores de todos os continentes deverão estar representados na Internacional, para que a unidade na diversidade seja a nossa principal linha diretriz. A questão da soberania popular não deve ser elidida na nossa reflexão sobre como construir a aliança das solidariedades.

É neste contexto que propomos um encontro de reflexão para a criação de uma nova Aliança Internacional dos Trabalhadores e dos Povos. O local (ou locais) escolhido(s) para esta(s) reunião(ões) será determinado em tempo útil, nomeadamente tendo em atenção os recursos financeiros - mesmo modestos - que poderiam ser mobilizados para essa finalidade. O encontro reunirá ativistas que representam movimentos, partidos, sindicatos, redes de todos os continentes e regiões. Serão definidos como regiões: a América Latina, a África, o Norte de África, o Mediterrâneo e o Médio Oriente, a Europa Ocidental, a Europa Oriental, Ásia do Leste, do Sul, do Sudeste, do Oeste e Central, os Estados Unidos e o mundo anglo-saxónico.

Cada região será representada por personalidades bem conhecidas na sua área, pelo seu envolvimento anticapitalista, representativas enquanto lutadoras, se possível mandatadas pelas suas organizações. Será igualmente importante representar a voz das comunidades em conflito com o estado em que vivem ou onde não existe estado. Ao contrário do que sucedia nas internacionais passadas, uma região ou país será representado por várias organizações. A construção de uma unidade na diversidade requer isso; e os diferentes parceiros devem perceber que o que nos une é mais importante do que o que nos divide, sem com isso abrir mão da sua independência. Finalmente, desde a primeira reunião, queremos apresentar uma estratégia de luta de longo prazo com objetivos precisos escalonados no tempo.

Juntamos a esta carta a análise de Samir Amin sobre a necessidade de fundar uma nova Internacional [ver abaixo].

Camaradas, apelamos ao vosso sentido das responsabilidades e da história. Este encontro pode ser o lugar onde será elaborada uma nova Revolução Socialista (tomando o cuidado de fazer o balanço da anterior) ou então viveremos um mundo de caos, de barbárie, de egoísmo e de destruição da nossa Terra.

Atenciosamente,
Samir Amin

★ ★ ★

É imperativo reconstruir a Internacional dos Trabalhadores e dos Povos

1.

Nos últimos trinta anos, o sistema mundial passou por uma extrema centralização do poder em todas as suas dimensões, locais e internacionais, económicas, políticas e militares, sociais e culturais.

Alguns milhares de empresas gigantes e algumas centenas de instituições financeiras, associadas em alianças cartelizadas, reduziram os sistemas de produção nacionais e globalizados ao status de subcontratados. Dessa forma, as oligarquias financeiras apropriam-se de uma parcela crescente dos produtos do trabalho e dos lucros das empresas, transformados em renda para seu benefício exclusivo.

Tendo domesticado os principais partidos de direita e de esquerda, os sindicatos e as organizações da chamada sociedade civil, essas oligarquias exercem agora também um poder político absoluto. O clero mediático que lhes está subordinado fabrica a desinformação necessária para despolitizar a opinião pública. As oligarquias aniquilaram a prática tradicional do multipartidarismo, substituindo-o por um sistema de quase partido único, controlado pelo capital monopolista. A democracia representativa, tendo perdido todo o seu significado, perdeu sua legitimidade.

Este capitalismo contemporâneo tardio, que é um sistema completamente fechado, corresponde aos critérios do “totalitarismo”, embora seja pouco prudente nomeá-lo como tal. Este totalitarismo ainda é “suave”, mas está sempre pronto para recorrer à violência extrema assim que as vítimas - a maioria dos trabalhadores e dos povos - começarem a se revoltar.

Todas as mudanças que fazem parte do processo chamado de “modernização” devem ser apreciadas à luz da evolução maior identificada nas linhas precedentes. Este é, pois, o caso dos grandes desafios ecológicos (especialmente as mudanças climáticas) que o capitalismo é incapaz de resolver (o Acordo de Paris, de dezembro de 2016, foi apenas poeira atirada aos olhos de uma opinião pública ingénua), bem como o progresso científico e as inovações tecnológicas (incluindo a tecnologia da informação), que estão rigorosamente sujeitos às exigências do lucro financeiro que podem fazer para os monopólios.

A glorificação da competitividade e da liberdade dos mercados, que os mass media subservientes apresentam como garantes das liberdades e da eficiência das intervenções da sociedade civil, constitui um discurso nos antípodas da realidade, que é percorrida por conflitos violentos entre as frações das oligarquias instaladas e reduzida pelos efeitos destrutivos da sua governança.

2.

Na sua dimensão global, o capitalismo contemporâneo procede sempre da mesma lógica imperialista que caracterizou todos os estágios de sua implantação mundial (a colonização no século XIX constituiu uma forma óbvia de globalização). A "globalização" contemporânea não é uma exceção à regra: é uma nova forma de globalização imperialista e nada mais. Este termo banalizado, sem qualificação, esconde uma realidade crua: o desenvolvimento de estratégias sistemáticas de implantação urdidas pelas potências imperialistas históricas (E.U.A., países da Europa Ocidental e Central, Japão) que perseguem o objetivo da pilhagem dos recursos naturais do Grande Sul e da sobre-exploração das suas forças de trabalho, por força da deslocalização e da subcontratação. Essas potências pretendem preservar o seu "privilégio histórico" e proibir todas as outras nações de emergirem do seu estatuto de periferias dominadas.

A história do século passado tinha sido, precisamente, a da revolta dos povos das periferias do sistema mundial, empenhados na desconexão socialista ou em formas atenuadas de libertação nacional, cuja página foi temporariamente virada. A recolonização em curso, privada de legitimidade, permanece por esse facto frágil.

Por essa razão, as potências imperialistas históricas da tríade (E.U.A., Europa, Japão) estabeleceram um sistema de controle militar coletivo do planeta, liderado pelos Estados Unidos. A pertença à OTAN, inseparável da construção europeia, como a militarização do Japão, refletem essa exigência do novo imperialismo coletivo, que tomou o lugar dos imperialismos nacionais (dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, do Japão, da Alemanha, da França e de alguns mais), anteriormente em conflito constante e violento.

Sob estas condições, a construção de uma frente internacionalista dos trabalhadores e dos povos de todo o planeta deveria constituir o eixo principal do combate, face ao desafio representado pelo desdobramento do capitalismo imperialista contemporâneo.

3.

Perante o desafio definido nos parágrafos anteriores, a extensão das insuficiências das lutas conduzidas até aqui pelas vítimas do sistema surge de forma flagrante. As fraquezas dessas respostas populares são de diversa natureza, que irei organizar sob os seguintes títulos:

(i) A extrema fragmentação das lutas, do local ao global, sempre específicas, em relação a lugares e domínios particulares (ecologia, direitos das mulheres, serviços sociais, reivindicações da comunidade, etc.). As poucas campanhas nacionais ou mesmo globais existentes não tiveram sucesso significativo, que levasse a mudanças nas políticas implementadas pelos poderes; e muitas dessas lutas foram mesmo absorvidas pelo sistema, alimentando a ilusão nas possibilidades da sua reforma.

Estamos, no entanto, numa época da aceleração prodigiosa do processo de proletarização generalizada: a quase totalidade das populações dos centros está agora sujeita à condição de trabalhadora assalariada, vendedora da sua força de seu trabalho; a industrialização das regiões do sul levou à constituição de proletariados operários e classes médias assalariadas, estando os seus camponeses agora totalmente integrados no sistema mercantil. Mas as estratégias políticas implementadas pelos poderes conseguiram desintegrar esse gigantesco proletariado em frações distintas, muitas vezes em conflito. Esta contradição tem de ser superada.

(ii) Os povos da tríade renunciaram à solidariedade internacionalista anti-imperialista, que foi, no melhor dos casos, substituída por campanhas "humanitárias" e programas de "ajuda" controlados pelo capital monopolista. As forças políticas europeias herdeiras das tradições de esquerda aderem em grande parte à visão imperialista da globalização em curso.

(iii) Uma nova ideologia de direita conquistou o apoio dos povos.

No norte, o tema central da luta de classes anticapitalista é abandonado - ou reduzido à expressão mais fragmentada - em benefício de uma pretensa nova definição da "cultura societária de esquerda" comunitarista, separando a defesa dos direitos particulares da luta geral contra o capitalismo.

Em alguns países do sul, a tradição de lutas que associava a luta anti-imperialista ao progresso social deu lugar a ilusões reacionárias de expressão para-religiosa ou pseudo-étnica. Em outros países do sul, os sucessos da aceleração do crescimento económico nas últimas décadas alimenta a ilusão na possibilidade de construir um capitalismo nacional "desenvolvido", capaz de impor a sua participação ativa na moldagem da globalização.

4.

O poder das oligarquias do imperialismo contemporâneo parece indestrutível, nos países da tríade e mesmo à escala mundial (o "fim da história"!). A opinião geral subscreve a sua caracterização em "democracia de mercado" e prefere-o ao seu adversário do passado - o socialismo - adornado com os qualificativos mais odiosos (autocracias criminosas, nacionalistas, totalitárias, etc.).

E, no entanto, este sistema não é viável, por muitas razões:

(i) O sistema capitalista contemporâneo é apresentado como "aberto" à crítica e à reforma, inventivo e flexível. Algumas vozes estão começando a exprimir-se que pretendem pôr fim aos abusos de suas finanças descontroladas e das políticas de austeridade permanente que os acompanham para, assim, "salvar o capitalismo". Mas esses apelos não serão ouvidos: as práticas atuais servem os interesses das oligarquias da tríade - os únicos que contam – a quem garantem o crescimento contínuo das riquezas, apesar da estagnação económica que atinge os seus países.

(ii) O subsistema europeu é parte integrante da globalização imperialista. Foi concebido com um espírito reacionário, anti-socialista e pró-imperialista, sujeito à direção militar dos Estados Unidos. A Alemanha exerce aí a sua hegemonia, especialmente no âmbito da zona do euro e na Europa Oriental, esta anexada como a América Latina o foi pelos Estados Unidos. A "Europa alemã" serve os interesses nacionalistas da oligarquia germânica, expressa de forma arrogante, como vimos na crise grega. Esta Europa não é viável e a sua implosão já começou.

(iii) A estagnação do crescimento nos países da tríade contrasta com a sua aceleração nas regiões do sul que conseguiram tirar proveito da globalização. Concluiu-se muito apressadamente que o capitalismo está bem vivo, mas que o seu centro de gravidade passara dos antigos países do Ocidente Atlântico para o Grande Sul, especialmente o sul asiático. Na realidade, os obstáculos à prossecução desse movimento corretivo da história vão certamente tornar-se cada vez mais evidentes, na violência da sua mobilização - por meio, entre outros, das agressões militares. As potências imperialistas não pretendem permitir que nenhum país da periferia - grande ou pequeno - se liberte do seu domínio.

(iv) As devastações ecológicas necessariamente associadas à expansão capitalista vêm reforçar as razões pelas quais este sistema não é viável.

O momento atual é de um "outono do capitalismo", sem que este seja reforçado pelo surgimento de uma "primavera dos povos" e pela perspetiva socialista. Não devemos ter ilusões na possibilidade de amplas reformas progressistas do capitalismo, chegado este ao seu estágio atual. Não há outra alternativa senão a que tornaria possível a renovação de uma esquerda radical internacionalista, capaz de implementar - e não apenas imaginar - avanços socialistas. É necessário sair do capitalismo em crise sistémica e não tentar uma impossível saída desta crise do capitalismo.

Numa primeira hipótese, nada de decisivo afetaria o apego dos povos da tríade à sua opção imperialista, especialmente na Europa. As vítimas do sistema permaneceriam incapazes de conceber uma saída dos caminhos batidos do "projeto europeu", a necessária desconstrução deste projeto, indispensável requisito à sua reconstrução posterior, em outra visão. As experiências do Syriza, do Podemos, da França Insubmissa, as hesitações de Die Linke e outras, testemunham a magnitude e a complexidade do desafio. A fácil acusação de "nacionalismo" brandida contra os críticos da Europa não se sustenta. O projeto europeu está reduzido, de forma cada vez mais visível, ao do nacionalismo burguês da Alemanha. Não há alternativa, na Europa como em outros lugares, à implementação por etapas de projetos populares e democráticos nacionais (não burgueses, mas antiburgueses), iniciando a desconexão em relação à globalização imperialista. É necessário desconstruir a extrema centralização da riqueza e do poder associados ao sistema existente.

Nesta hipótese, o mais provável seria um "remake" do século XX: avanços iniciados exclusivamente em algumas periferias do sistema. Devemos então estar conscientes de que esses avanços permanecerão frágeis, assim como os do passado, e pela mesma razão, a saber, a guerra permanente que os centros imperialistas moverão contra eles, que estará em grande parte na origem dos seus limites e desvios. Por outro lado, a hipótese de uma progressão da perspetiva do internacionalismo dos trabalhadores e dos povos abriria caminho para outras evoluções, necessárias e possíveis.

A primeira destas vias é a da "decadência da civilização". Implica que as evoluções não serão controladas por ninguém, mas abrem caminho simplesmente através da "força das coisas". Em nosso tempo, dado o poder de destruição disponível pelos poderes existentes (destruição ecológica e militar), é bem real o risco, denunciado por Marx em seu tempo, de que os combates acabem por destruir todos os campos em confronto. O segundo caminho, pelo seu lado, requer a intervenção lúcida e organizada da frente internacionalista dos trabalhadores e dos povos.

5.

O início da construção de uma nova Internacional de Trabalhadores e dos Povos deveria constituir o principal objetivo do trabalho dos melhores militantes, convictos do caráter odioso e sem esperança do atual sistema capitalista imperialista. A responsabilidade é pesada e a tarefa levará anos para gerar resultados visíveis. Pela minha parte, apresento as seguintes propostas:

(i) O objetivo é criar uma Organização (a nova Internacional) e não apenas um "movimento". Isso implica ir além da conceção de um fórum de discussão. Implica também ter em conta as insuficiências associadas à ideia ainda dominante dos chamados "movimentos horizontais", hostis às chamadas organizações verticais, sob o pretexto de que estas são por natureza antidemocráticas. A organização surge da ação, que segrega por si mesma os seus círculos "dirigentes". Estes últimos podem aspirar a dominar ou mesmo manipular os movimentos; mas também nos podemos proteger contra esse perigo por meio de estatutos apropriados. Sujeito a discussão.

(ii) A experiência da história das Internacionais operárias deve ser estudada seriamente, mesmo que se pense que elas pertencem ao passado. Não para "escolher" um modelo entre elas, mas para inventar a forma mais adequada às condições contemporâneas.

(iii) O convite deve ser dirigido a um bom número de partidos e organizações em luta. Um primeiro comité responsável por iniciar o projeto deve ser formado rapidamente.

(iv) Não quis sobrecarregar demais este texto. No entanto, remeto aqui para a alguns textos complementares (em francês e inglês):

a) um texto fundamental sobre a unidade e a diversidade na história moderna dos movimentos para o socialismo

b) um texto sobre a implosão do projeto europeu

c) alguns textos sobre: a audácia exigida pela perspetiva da renovação das esquerdas radicais, a leitura de Marx, a nova questão agrária, a lição de outubro de 1917 e a do maoísmo, a necessária renovação dos projetos nacionais populares.


Inclusão: 06/04/2021