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Primeira Edição: ....
Fonte: http://resistir.info/
Tradução: Margarida Ferreira, do original disponível em http:www.monthlyreview.org/0205amin.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Com uma população superior a mil milhões, a aproximar-se da da China, e com uma taxa de crescimento económico acima da média mundial, a Índia é hoje identificada frequentemente como uma das prováveis grandes potências do século XXI. Neste artigo proponho-me questionar esse prognóstico, já que me parece que estão longe de estar asseguradas as condições necessárias para que a Índia venha a ser uma grande potência.
As minhas dúvidas residem no facto de que a Índia independente não encarou de frente um dos mais importantes desafios, o da transformação radical das estruturas herdadas do capitalismo colonialista. É verdade que a classe governante da Índia independente decidiu enxertar um plano nacional burguês nesta herança, a qual foi preservada na sua maior parte. Analisando os sucessos, as limitações e também os fracassos deste projecto, vou colocar as questões às quais o discurso liberal modernista dominante tem fugido desde o início: estará a Índia burguesa condenada à 'compradorização'(1) inerente ao estatuto das estruturas capitalistas periféricas do país e, em consequência, será impossível que a Índia aceda ao estatuto de uma grande potência moderna, sem passar primeiro por uma verdadeira revolução social?
Na essência, a colonização britânica transformou a Índia num país capitalista, dependente da agricultura. Para o conseguir, a Inglaterra implantou sistematicamente formas de propriedade privada das terras agrícolas, o que impediu o seu acesso à maior parte dos camponeses. Esta política deu origem à formação de grandes propriedades dominantes no norte do país, sendo menos desvantajosa para as propriedades de dimensão média dos camponeses do sul que, em comparação, eram mais abastados. A maioria dos camponeses viu-se transformada numa classe pobre, praticamente sem terras. O preço desta medida capitalista assimétrica no desenvolvimento agrícola foi as condições de pobreza extrema em que vive a maioria da população indiana.
O modo universal de organização da gestão da terra não é a propriedade privada, como pensam automaticamente as mentes deformadas pelo eurocentrismo mas, pelo contrário, é a propriedade que emana duma comunidade política. Na Índia pré-colonialista, as terras eram repartidas pelas comunidades das aldeias, de forma proporcional (com base em princípios altamente desiguais, baseados no sistema de castas hierárquicas). Estas comunidades, por seu turno, estavam sujeitas a uma comunidade política superior, o estado (que cobrava impostos às comunidades sob a sua autoridade). Os ingleses promoveram à categoria de proprietários privados, com diversos graus de autoridade, os responsáveis por esta gestão política, impondo assim o seu próprio modelo do capitalismo ocidental. Este padrão foi seguido por outros europeus, quer na América quer nas colónias da Ásia e da África. Nos dias de hoje, os funcionários do Banco Mundial não dispõem dos meios intelectuais que lhes permitam entender que aquilo que têm recomendado como sendo a única solução universal (a propriedade privada da terra), é apenas uma via sem exemplo, cujo sucesso numa pequena parte do mundo esconde o facto de que ela constitui um impasse no resto do mundo.
No início, os comunistas indianos dos anos 30, preconizavam o combate a esta herança e subscreviam o programa de reforma agrária mais radical - “a terra a quem a trabalha”, ou seja, praticamente para todos os camponeses. Os burgueses do Partido do Congresso nunca o puseram em prática e a Índia independente reduziu as promessas feitas aos camponeses a um simulacro de reforma agrária sem qualquer impacto. O que é certo é que, tanto em Bengala ocidental como em Kerala, se registaram resultados positivos em termos sociais e económicos e se reforçou o apoio popular aos reformadores, quando as forças comunistas parlamentares locais foram um pouco mais longe, tanto quanto a constituição indiana o permitia.
Embora, inicialmente, a questão fundamental da propriedade das terras agrícolas fosse uma das principais áreas de debate no seio dos comunistas e também noutros sectores (burgueses democráticos e populistas), a influência da ideologia liberal (mesmo antes do seu triunfo aparentemente total no final do século) conseguiu impor as noções erradas de que era fundamental a propriedade privada da terra, de que não havia alternativa à solução ocidental (onde a classe camponesa vai desaparecendo à medida que é absorvida pelo desenvolvimento urbano capitalista) e que, portanto, a exigência de uma reforma agrária era obsoleta. O Banco Mundial introduziu a revolução verde e as formas de reforma agrária sustentada pelo mercado, como lhe chamou. A implementação de tal reforma acabou sempre num desastre – no reforço da desigualdade social e na submissão dos produtores agrícolas ao capital dominante (na realidade, era este o verdadeiro objectivo, embora oculto, destas políticas). A Índia é um óptimo exemplo disso. Sabemos que as reformas agrárias sustentadas pelo mercado, implementadas pelo Banco Mundial desde o Brasil à África do Sul também acabaram numa farsa. Infelizmente, grande parte da esquerda, onde se incluem importantes sectores dos partidos comunistas indianos, está hoje contaminada por este disparate propalado pela ideologia liberal. Os tradicionalistas, que pretendem implantar aquilo que julgam ter sido a verdadeira ordem original, têm o cuidado de não desafiar este legado colonialista que beneficia as minorias privilegiadas! Na Índia, os nacionalistas hindus, assim como os defensores do Islão político um pouco por toda a parte (em especial no Paquistão), submetem-se à expansão do capitalismo periférico dependente.
Na Índia, o obstáculo que esta herança colonialista representa para o progresso é agravado pela manutenção do sistema de castas. As “castas inferiores” (designadas hoje por dalits ) e as populações tribais que têm o mesmo estatuto, constituem um quarto da população da Índia (cerca de 250 milhões de pessoas). Privados do acesso à terra, formam uma massa de trabalhadores disponíveis para qualquer tarefa e qualquer horário de trabalho, em troca dum salário de miséria. A manutenção desta situação reforça as ideias reaccionárias e o comportamento dos “outros” e leva a que o exercício do poder seja feito por e a favor de uma minoria privilegiada. Desempenha o papel de atenuar e até mesmo de neutralizar qualquer protesto da maioria explorada que está entalada entre a minoria exploradora e a situação oprimida dosdalits e das comunidades tribais.
Claro que a colonização britânica teve o maior cuidado em não combater o sistema de castas, escondendo-se por detrás do argumento hipócrita do respeito pela tradição (o que não fizeram quando isso não lhes convinha como, por exemplo, quando privatizaram a propriedade das terras!). Simultaneamente, o poder colonialista manipulou a situação em seu próprio beneficio, ao permitir que uns quantos dalits, com acesso à educação, pudessem aceder a cargos colaboracionistas. Podemos dizer que, na Índia independente, os poderes continuaram esta prática, a qual só foi seriamente posta em causa durante o curto período de tempo em que esteve no poder a aliança de esquerda liderada por V.P. Singh (e apoiada pelos parlamentares comunistas). A direita hindu, claro, não se pronuncia sobre esta questão! E os Estados Unidos, actualmente – utilizando como intermediárias as ONG que proclamam defender os direitos humanos – tentam manobrar os protestos da comunidade dalit e mantê-la confinada a áreas que sejam inofensivas para a gestão do capitalismo como um todo.
Felizmente, esta situação pode estar em vias de ser ultrapassada, dada a radicalização da luta, sob a forma de insurreições encabeçados principalmente pelos camponeses maoistas naxalistas. É verdade que estas insurreições têm sido sufocadas, no sentido em que ainda não conseguiram criar e estabilizar regiões libertadas, de poder popular. No entanto, a resistência armada, liderada pelos maoistas, ao começar por combater as estruturas da propriedade, herdadas do colonialismo, e do sistema de castas, pavimentou o caminho para futuras mobilizações revolucionárias. A entrada dos dalits na cena política, um acontecimento sem par nas duas últimas décadas, é sem dúvida, pelo menos em parte, produto do naxalismo.
Os governos do Partido do Congresso na Índia independente levaram à prática um plano nacional que, de forma típica para a época, foi influenciado pelas vitórias dos movimentos nacionais de libertação na Ásia e na África após a II Guerra Mundial. Os partidos agora no poder (as forças políticas que se mobilizaram durante esta luta pela independência, pela modernização e pelo desenvolvimento), gozavam de uma legitimidade inegável, mas os planos que puseram em prática foram minados pelas ambiguidades que caracterizavam esses mesmos movimentos de libertação. Esses planos eram anti-imperialistas, visto que consideravam com justiça que a modernização e o desenvolvimento exigiam acima de tudo a independência nacional. Mas pararam aí, convencidos que poderiam impor ao sistema global dominante (o capitalismo mundial) os ajustamentos necessários para permitir que as nações da Ásia e da África se constituíssem como parceiros iguais e poderem assim ultrapassar progressivamente os handicaps do seu “atraso”. Apesar de bem sucedidos numa dimensão apreciável, não conseguiram atingir o sucesso final e cedo esbarraram nas limitações das suas ideias estratégicas.
Os debates dessa época – tanto na Índia como por todo o lado na Ásia e na África – centravam-se especificamente nestas ideias estratégicas. Seria essa uma fase necessária, descrita no calão marxista da época como uma fase “burguesa democrática revolucionária” que se preparava para se aproximar da esquerda, voltando-se para “a construção do socialismo”?
Para além da sua implantada dimensão nacional, o plano dos que estavam no poder incluía medidas de maior ou menor alcance, que lhes tinham sido impostas pela grande aliança do povo contra o imperialismo, impostas mesmo àqueles das classes dominantes que só conseguiam ver os benefícios do capitalismo. No meio das diversas situações, todos os legítimos poderes que tinham surgido da libertação nacional estavam ligados por um denominador comum: ou seja, o seu carácter populista – toda (ou a maioria) a sociedade partilhava, por um lado, o empenho em assegurar os benefícios do desenvolvimento e, por outro lado, o desejo de controlar o processo, impedindo as classes dominantes de se organizarem fora do seu controlo.
Os comunistas demonstraram frequentemente uma clara consciência desta contradição e das limitações que ela impunha quanto aos empreendimentos do sistema mas, por diversas razões que não vou aqui discutir, tal como acontecia com outros sob a influência dos soviéticos (e das atitudes que estes recomendavam, postas em termos de “solução não capitalista”), a maior parte dos comunistas na Ásia e na África acabaram por se tornar, em maior ou menor grau, em forças de apoio “crítico” aos planos nacionais populistas em causa. A cisão que opunha os maoistas aos soviéticos moderava, por vezes, a dimensão deste apoio, principalmente na Ásia. Os comunistas indianos mantinham-se distantes, em diversos graus, do plano nacional populista do Partido do Congresso. Os partidos e as tendências dominantes dos comunistas indianos actuais diferenciam-se pelo grau desse distanciamento. Quanto à dimensão desse distanciamento, os comunistas tinham uma forte posição dentro da sociedade, a qual não pode ser comparada, por exemplo, com a dos comunistas árabes, cujos partidos se aliaram quase incondicionalmente ao populismo dos seguidores de Nasser, do Baath e de Bumediene.
Apesar das suas limitações, os sucessos do plano nacional populista indiano de Jawaharlal Nehru e de Indira Ghandi foram significativos, quer económica quer politicamente.
Logo de início, a colonização levou a cabo uma desindustrialização da Índia, avançada na altura, em beneficio da Grã-Bretanha que estava em vias de industrialização. Por isso, a Índia independente deu prioridade à sua industrialização, o que foi encarado com um alto grau de sistematização, pelo menos inicialmente. Para além disso, promoveu-se a combinação do grande capital privado indiano com as empresas do sector público, para colmatar as falhas do sistema de produção herdado da colonização, acelerar o crescimento e reforçar as indústrias básicas.
As macropolíticas de regulamentação implementadas nessa altura tinham como objectivo servir este plano de modernização. Utilizou-se o controlo dos preços e dos câmbios, os subsídios, a regulamentação das empresas estrangeiras e a importação de tecnologia, para assegurar o principal objectivo de proteger a indústria indiana contra os efeitos devastadores do domínio do capital imperialista nos mercados mundiais. Só em segundo plano é que essa regulamentação visava objectivos sociais – a redistribuição da riqueza e, sobretudo, a redução da pobreza extrema das classes populares. Este plano de modernização industrial acelerada, acompanhado por um plano para o desenvolvimento da produção agrícola (cereais principalmente), baseado na revolução verde (que substituiu a reforma agrária posta de lado – a revolução vermelha!) tinha como objectivo principal tornar o país auto-suficiente em matéria de alimentos. A intenção era canalizar todas as receitas da exportação exclusivamente para cobrir as importações necessárias à sua indústria.
Todo este plano era verdadeiramente capitalista por natureza, no sentido em que os benefícios da produção e as tecnologias escolhidas não contestavam a base lógica fundamental do capitalismo, embora se possa dizer a este respeito que a experiência do socialismo realmente existente (mesmo na China, até certo ponto) não era assim tão diferente quanto parecia, apesar da natureza exclusiva da propriedade pública. No entanto, o plano indiano era nitidamente menos radical, na medida em que o grau de separação do seu sistema de produção em relação ao sistema mundial dominante era menos sistemático do que o era na União Soviética ou na China, onde os salários e os preços – planeados teoricamente – não se podiam comparar com os do sistema capitalista global. Esta característica do plano indiano, que pode ser encontrada noutras experiências nacionais populistas não-comunistas (no mundo árabe, por exemplo), estava intimamente relacionada com a ausência de contestação das estruturas sociais herdadas da colonização.
A dimensão exacta desta estreita relação revelou-se na opção pela revolução verde que, como sabemos, reforçou a posição das classes rurais dominantes e os grandes latifundiários em especial, em vez de os enfraquecer.
Estas diferenças entre o modelo nacional indiano e o da China comunista são responsáveis pelas diferenças visíveis nos seus resultados. A taxa de crescimento da produção industrial e agrícola na Índia não era má nessa época, era significativamente mais alta do que tinha sido durante os tempos colonialistas e superior à média mundial no capitalismo pós-guerra mas, no seu conjunto, as taxas de crescimento mantinham-se em níveis consideravelmente mais baixos que as da China. Para além disso, enquanto que o crescimento na China era acompanhado por uma acentuada melhoria do nível de vida das classes populares, isso não acontecia na Índia onde o crescimento beneficiava exclusivamente as novas classes médias (que eram uma minoria, embora num período de 30 anos tenham aumentado de 5 para 15 por cento da população total do país). A pobreza das classes populares dominantes mantinha-se inalterada, ou mesmo ligeiramente agravada.
O discurso liberal não toma em conta estas realidades básicas. E é por isso que não concordo com as conclusões optimistas tiradas por muitos futurólogos, de que a Índia está prestes a atingir um crescimento acelerado que a elevará à condição duma grande potência mundial, seguindo o exemplo da China. Até agora, a China tem a vantagem do legado da sua revolução radical enquanto que a Índia está prejudicada pelo legado incontestado da sua colonização. É por isso que o crescimento económico na China, sustentado por sistemas de investimento que são mais favoráveis ao desenvolvimento de todo o sistema de produção, continua a prevalecer, comparado com o crescimento na Índia. É verdade que, se a China vier a tornar-se demasiado liberal, e se continuar no caminho ultra-liberal dos últimos 15 anos, veremos o crescimento afrouxar. Na minha opinião, no âmago do desafio que ambos os países enfrentam actualmente está a questão agrária, ou seja, a questão fundamental do acesso de todos os camponeses à terra e à produção, acesso que as pessoas ainda hoje têm na China (mas até quando?) mas que sempre foi recusado à Índia.
Os sucessos políticos da Índia independente são de facto significativos. A Índia é muito mais heterogénea que a China. Foi precisamente por jogar com a diversidade dos povos (e dos estados) indianos que a colonização inglesa conseguiu impor o seu poder. Deve-se agradecer ao movimento de libertação nacional o seu sucesso em manter a unidade da nação federal indiana. A razão para este sucesso é o laicismo do estado indiano, que nem mesmo a vaga do culturalismo hindu conseguiu minar. A diferença entre o comportamento dos governos indianos e da maioria da sociedade indiana em relação à sua minoria muçulmana, e o comportamento dos governos e sociedades dominadas por muçulmanos, demonstra o valor do laicismo. Este progresso democrático não se encontra noutras regiões do mundo (especialmente no mundo árabe e muçulmano). É certo que esta afirmação tem que ser qualificada. Há provas abundantes (que incluem os sikhs por um lado e as lutas nacionais dos povos do nordeste, por outro) das limitações da capacidade do regime para resolver correctamente as questões nacionais.
A experiência da Índia de hoje demonstra a superioridade inquestionável da democracia e a futilidade dos argumentos a favor da gestão autocrática que frequentemente é apregoada como mais eficaz. Isto mantém-se uma verdade, apesar das limitações evidentes e do conteúdo de classe da democracia burguesa em geral, e da sua realidade na experiência indiana. Dando crédito ao movimento de libertação nacional (Congresso e comunistas), esta opção era provavelmente a única forma eficaz de gerir os diversos interesses sociais e regionais (mesmo se limitados aos das classes privilegiadas). Era também a única maneira de ganhar o apoio popular para o plano da minoria que formava o bloco hegemónico.
Na cena internacional, a Índia independente dedicou-se a dar forma à frente sul da época, o Movimento dos Não-Alinhados, cujas origens provêm da Conferência Afro-Asiática realizada em Bandung (1955). Nem mesmo a colisão frontal da Índia com a China pôs em risco esta estratégia abertamente anti-imperialista.
A erosão do plano nacional populista era tão inevitável na Índia como em qualquer outro lado dadas as suas limitações e contradições inerentes. Este facto e a deslegitimação do poder que o acompanhou deu azo a uma ofensiva das forças obscurantistas apoiadas pela classe dominante 'compradora' e por uma grande parte das classes médias (cuja expansão estava a diminuir e cada vez mais cercada de dificuldades) motivadas pelo discurso e pelas manobras do imperialismo dos Estados Unidos. A viragem em 1991 para o liberalismo levou à liderança os 'compradores' do Partido do Congresso, mas os seus beneficiários políticos, como noutros sítios, eram culturalistas que encontravam um auditório aberto às suas ilusões irracionais quanto às tensões sociais e à miséria sempre presentes nas reformas liberais.
Na Índia, estas ilusões obscurantistas têm um nome: Hindutva. Este termo designa a afirmação da prioridade da adesão à religião hindu, definida como a “identidade real” das populações do país, por oposição ao conceito de “Bharatva” que se refere à nação. Com efeito, esta afirmação hindu não contesta o legado colonialista quanto à propriedade da terra nem, em particular, quanto ao respeito pelo sistema hierárquico de castas. Quanto a isto, como os comunistas indianos não deixaram de assinalar, as ilusões obscurantistas servem perfeitamente os interesses dos poderes dos 'compradores' e imperialistas. As “especificidades” de que está recheado o seu discurso pseudo nacional ou mesmo quase anti-imperialista, não têm qualquer valor. Alimentam uma renovação do comunitarismo separatista (neste caso anti-muçulmano) que o poder colonialista utilizava, nos seu tempo, para combater as aspirações nascentes da libertação laica, democrática e modernista.
Neste aspecto esta regressão não se diferencia daquela que aflige outras sociedades periféricas que são vítimas da mesma erosão do plano nacional populista, em especial as sociedades árabes e muçulmanas. É claro o paralelo com o Islão político.
No entanto, este desvio adverso não parece necessariamente ser tão marcado na Índia como nos países árabes e muçulmanos. A explicação para isto reside sem dúvida no facto de que os partidos comunistas indianos mantêm as suas distâncias em relação ao plano do Partido do Congresso para a Índia independente, enquanto que os dos países árabes e muçulmanos se aliaram quase incondicionalmente com planos populistas semelhantes. Em resultado disso, os comunistas na Índia têm mantido (ou mesmo alargado) um grau de popularidade que protege a sociedade de uma regressão à época em que quase todos os movimentos comunistas estavam a entrar numa fase de declínio.
Por conseguinte, este declínio foi acompanhado aqui pela radicalização renovada das lutas sociais. Podemos ver provas disso na ofensiva naxalista que, apesar de erros tácticos de apreciação, despertou a consciência revolucionária entre os camponeses em vastas áreas da Índia (aproximadamente um terço). Podemos encontrar outras provas disso na brutal entrada dos dalits no combate político e social (este, sem dúvida, consequência da radicalização da classe camponesa) e no apoio confirmado das classes médias à democracia.
Isto explica porque é que o colapso da legitimidade que o Partido do Congresso desfrutara quase com exclusividade não produziu uma vitória definitiva para a direita. O primeiro governo da ala direita foi derrubado por uma aliança eleitoral da ala esquerda liderada por V.P. Singh que trouxe aos comunistas uma maior influência na vida política do país. Esta aliança ainda frágil foi incapaz de evitar a recuperação eleitoral da direita mas, por seu turno, esta segunda experiência de um governo hindu-'comprador' que se submetia inteiramente aos ditames do imperialismo na ofensiva (acelerando a liberalização económica) fracassou. Nas eleições de 2004 as premissas do culturalismo e do liberalismo hindu promovidas pela burguesia 'compradora' e pelos seus mestres imperialistas foram consideradas como responsáveis pela catástrofe social por parte da maioria do eleitorado indiano. Uma associação destas não se faz em qualquer parte, especialmente nos mundos árabes e muçulmanos.
Mas o combate está longe de ter sido ganho pela esquerda indiana. São tremendos os problemas de organização que o dividido movimento comunista indiano enfrenta. Uma cooperação eficaz na luta requer um esforço maciço para ultrapassar obstáculos históricos, dos quais as formas de organização antidemocráticas não são os menores.
O discurso liberal dominante não só considera que não há alternativa para o liberalismo económico e para a forma de globalização que o acompanha, mas também proclama que o apoio a esta escolha é progressista e que todas as pessoas dotadas de um espírito empreendedor acabam por vencer. Não basta reconhecer que isto é um disparate, que foi desmentido pelos factos e que não resiste a qualquer reflexão teórica séria. A construção de uma alternativa social progressista que faria parte duma integração global diferente – completamente separada da política, da economia e da ideologia mundial neo-liberal (isto é, uma alter-globalização de facto) é ainda difícil e a marcha nessa direcção será longa.
No que diz respeito à Índia, a criação de uma tal alternativa significa obrigatoriamente que tenham de se encontrar respostas adequadas para atingir os seguintes quatro principais objectivos:
São consideráveis as forças políticas e sociais que impedem a Índia de se mover nas direcções acima mencionadas. Elas formam um bloco hegemónico que abrange um quinto da população – são as grandes massas dos camponeses e das classes médias abastadas, da alta burocracia e tecnocracia, por detrás da burguesia da alta indústria, do comércio e das finanças, e os grandes latifundiários. Estes 200 milhões de indianos são os beneficiários exclusivos do plano nacional implementado até agora. Sem dúvida, na época actual do grande triunfo liberal, este bloco está a desmoronar-se sob o efeito, entre outros, do fim da mobilidade social ascensional das classes médias mais baixas, que estão ameaçadas com a perda da segurança de trabalho e com o empobrecimento, ou mesmo a pobreza total. Esta situação dá à esquerda a oportunidade de desenvolver tácticas, se puder, para enfraquecer a coerência destas forças reaccionárias em geral e em particular a sua abordagem 'compradora' que é a correia de transmissão para o domínio imperialista globalizado. Contudo, oferece também oportunidades à direita hindu na eventualidade de a esquerda falhar.
Ouvimos muitas vezes a direita dizer que esta “nação de 200 milhões de pessoas” que, por si só constituem um mercado enorme comparável a vários grandes países europeus, é o futuro da Índia, enquanto que a maioria — que atinge uns 800 milhões de indianos mergulhados na pobreza — é apenas a bola e a grilheta a que o país está acorrentado. Para além de repugnante, esta opinião reaccionária é perfeitamente estúpida. A minoria só é privilegiada porque explora os recursos do país e os trabalhadores que são a maioria.
A minoria que constitui este bloco está, assim, numa situação que exclui na Índia a reprodução do compromisso capital-trabalho sobre o qual a social-democracia ocidental foi fundado. O discurso que compara o Fordismo periférico com o Fordismo das regiões desenvolvidas está baseado numa incapacidade enorme de compreender o impacto de cada uma destas duas fórmulas: o Fordismo ocidental partilhava os benefícios da expansão capitalista com a maioria das classes trabalhadoras, enquanto que o Fordismo periférico funciona em benefício exclusivo das classes médias. A Índia não é o único exemplo disto; o Brasil e a China estão hoje em situação idêntica.
O facto de este bloco hegemónico governar sob uma democracia política, tal como acontece na Índia, não diminui a sua dimensão de classe reaccionária. Pelo contrário, é a forma mais eficaz de a estabelecer.
Este bloco hegemónico que governa a sociedade indiana está bem integrado na racional da globalização capitalista dominante e até agora não tem sido contestado por nenhuma das diversas forças políticas através das quais se exprime. Contudo, o projecto nacional indiano mantém-se frágil, incapaz pela sua própria natureza, de se alargar a toda a sociedade, mesmo na forma limitada de um capitalismo “racionalizado”.
Esta vulnerabilidade resulta no comportamento frequentemente oportunista da classe política indiana, justificada a maior parte das vezes por argumentos de política real a curto prazo. Confrontada com o plano dos Estados Unidos para o total controlo (militar) do planeta e com o alinhamento imperialista colectivo da tríade (Estados Unidos, Europa e Japão), a classe política indiana tem sido incapaz até agora de produzir e implementar as contra medidas necessárias. Seria necessário impor a criação de uma frente que unisse a Índia, a Rússia e a China, todas elas ameaçadas de igual modo pela “compradorização” decorrente da expansão do colectivo neo-imperialista. Também seria necessário impor a prossecução mais sistemática duma reaproximação à Europa, tanto maior quanto maior fosse a distância a que esta última se mantivesse em relação ao plano hegemónico de Washington. Os governantes da Índia não dão o devido valor a esta perspectiva, mesmo os que defendem formas de governo mais determinadas a minar o direito dos 'compradores' hindus. Pelo contrário, continuam a dar prioridade aos seus conflitos com a China, encarada como um potencial adversário militar e um perigoso rival financeiro nos mercados de capitalismo globalizado. Acreditam mesmo que podem explorar uma possível aproximação com os Estados Unidos para virem a ser o seu maior aliado na Ásia.
Também outros países no terceiro mundo adoptaram um semelhante raciocínio enganoso: o Brasil, a África do Sul e até a China.
As medidas necessárias para refrear o desenvolvimento de um novo imperialismo colectivo exigem a reconstrução duma frente dos povos do sul. Aqui, de novo, a tarefa não é nada fácil. Os conflitos entre os países do sul, principalmente na área entre a Índia e o Paquistão, causados principalmente pelo desvio culturalista-'comprador' (de que o Islão político é o principal responsável), estão em primeiro plano e reforçam os cálculos tácticos a curto prazo da classe política indiana.
Este oportunismo não só destruirá a longo prazo as condições necessárias para a construção duma alternativa nacional progressista e duma alter-globalização que a sustente, mas também cega os seus defensores ao ponto de os fazer perder de vista a vulnerabilidade da unidade indiana e as manobras dum imperialismo que procura destruí-la. Não haja ilusões nesta área. Mesmo que a diplomacia de Washington optasse agora por “apoiar a Índia e a sua unidade” durante algum tempo, por razões tácticas, o seu plano a longo prazo é o de incapacitar este grande país de tornar-se uma grande potência. A submissão ao projecto de expansão do capitalismo global reforça tendências centrífugas, já que esta submissão acentua as desigualdades regionais de desenvolvimento. A visão da Índia como uma grande potência é inconsistente com as exigências severas de um capitalismo global sob a hegemonia dos Estados Unidos.
Notas de rodapé:
(1) "burguesia compradora": classe improdutiva existente nos países subdesenvolvidos que é constituída por agentes comerciais representantes de interesses imperialistas e os clientes das suas mercadorias. Sun Yat Sen, na China do princípio do século XX, foi provavelmente um dos primeiros a utilizar esta expressão. (retornar ao texto)