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Em São Miguel fica a grande fábrica da Nitro-química. São cinco mil operários no povoado próximo à capital de São Paulo. Não existe em São Miguel nada mais simpático que a sede distrital do Partido Comunista. É uma pequena casa que vive constantemente cheia de gente, operários e operárias, e na frente, à maneira do norte, colocam bancos onde a gente senta e conversa. Essa sede possui um ar de festa, em nenhuma parte eu senti tanto que o Partido era a casa do proletariado e do povo quanto na sede distrital de São Miguel. E existe ainda o coral, acompanhado pela orquestra de violões, cuícas e pandeiros. Esse coral já cantou no Teatro Municipal perante imensa multidão no dia da instalação do Comitê Municipal de São Paulo e eu tive a honra de apresentá-lo ao público. Esse coral recebeu também, num domingo de festa, o cantor Dorival Caymmi, que veio ouvir e aplaudir as marchas do maestro Emílio Alves, um preto risonho e modesto que é operário da fábrica e militante do Partido.
Esta sede distrital orgulha-se de possuir a maior célula do Partido, em São Paulo. Mais de mil operários da Nitro-química. Em São Miguel não existe fôrça política mais poderosa que o Partido Comunista. E a sua sede tem esse ar de festa, de dia feriado, de alegria familiar. É a mais simpática das casas de São Miguel.
Existe, porém, socada no mato, uma outra casa em São Miguel para a qual olho com comovido carinho. Não sei se será justo chamá-la de casa pois essa cabana de barro batido e mal batido, através de cujas paredes entra a chuva e a neblina, cujo assoalho é o chão úmido, sem divisões, sem espaço, sem qualquer remota lembrança de conforto, não pode usar o nome de casa que significa lar, descanso e paz. É como um buraco onde largar o corpo nas noites cansadas. No entanto essa casa tem a sua história. Pois foi aqui que durante muito tempo morou Ramiro e aqui nasceu-lhe um filho em meio ao trabalho mais duro e as dificuldades mais absurdas. Sobre esse solo sua companheira deu-lhe seu primeiro filho, assistida apenas pela solidariedade pobre das operárias da fábrica. Ramiro tem 23 anos. Cara de menino, sem barba, rosto magro e sorridente. Quando pode canta com sua voz mal-educada tangos langorosos e valsas tristonhas. Gosta de ver o povo cantando e sua paixão é o Coral de São Miguel. Parece um menino com seu rosto imberbe. Poucos homens fariam o que fez Ramiro.
Hoje a maior célula do Partido, em São Paulo, é a da Nitro-química. São mil e tanto homens, aproximando rapidamente dos dois mil. A sede distrital do Partido em São Miguel é aquela simpatia de que vos falei. Possui uma orquestra e um Coral. É uma respeitável fôrça política. Pois bem: há pouco mais de um ano não existia nada disso, nem sede, nem célula, nem coral, nem comunistas. Existiam operários inconformados, apenas. Foi quando o Partido, que se levantava em São Paulo pelas bases respondendo assim à campanha liquidacionista e trotskista, mandou Ramiro para São Miguel. Ele entrou para a Nitro-química, mais um operário, mas que operário! Foi morar nessa choupana miserável. Sua companheira estava grávida e Ramiro é um rapaz franzino, um jovem com cara de garoto.
Não, não vou vos falar das dificuldades que ele venceu, dos sacrifícios que ele fez, da luta que sustentou, de como foi expulso da fábrica e de como os operários o apoiaram. Seria preciso escrever um poema sobre Ramiro para dizer tudo que ele fez com sua cara de menino, vendo seu filho nascer sobre o chão úmido que era o assoalho da sua choupana. Não vos falarei de nada disso mas vos direi que a célula da Nitro-química é a maior de São Paulo e não há sede tão agradável como a distrital de São Miguel. Trabalho de Ramiro. Olho com assombro a face sorridente deste jovem operário de 23 anos. E compreendo então o significado exato da palavra “comunista”.
Inclusão | 08/04/2014 |