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Primeira Edição:
Fonte: LavraPalavra - - https://lavrapalavra.com/2019/10/08/unidade-e-acao-do-povo-organizado-poder-popular-e-aprofundamento-da-democracia/
Tradução: Thales Fonseca - da versão integral disponível em https://www.marxists.org/espanol/allende/1969/diciembre17.htm
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A única alternativa verdadeiramente popular e, portanto, tarefa fundamental que o Governo do Povo tem diante de si, é a de terminar com o domínio dos imperialistas, dos monopólios, da oligarquia latifundiária e iniciar a construção do socialismo no Chile.
O crescimento das forças trabalhadoras em termos de seu número, de sua organização, de sua luta e consciência de seu poder, reforça e propaga a vontade de mudanças profundas, a crítica da ordem estabelecida e o choque com suas estruturas. Em nosso país, há mais de três milhões de trabalhadores cujas forças produtivas e enorme capacidade construtiva não poderão, no entanto, libertar-lhes dentro do atual sistema que só pode lhes explorar e subjugar.
Essas forças, em conjunto com todo o povo, mobilizando todos aqueles que não estão comprometidos com o poder dos interesses reacionários, nacionais e estrangeiros, ou seja, mediante a ação unitária e combativa da imensa maioria dos chilenos, poderão romper as atuais estruturas e avançar na tarefa de sua própria libertação.
A unidade popular é feita para isso.
Os imperialistas e as classes dominantes do país irão combater a unidade popular e tentarão enganar uma vez mais o povo. Dirão que a liberdade está em perigo, que a violência tomará conta do país etc. Porém, as massas populares crêem cada vez menos nessas mentiras.
Diariamente cresce sua mobilização social que hoje se vê reforçada e encorajada pela unificação das forças de esquerda.
Para estimular e orientar a mobilização do povo do Chile para a conquista do poder, constituiremos por toda parte os Comitês da Unidade Popular(2), articulados em cada fábrica, estabelecimento, povoado, repartição ou escola, pelos militantes dos movimentos e dos partidos de esquerda e integrados por essa multidão de chilenos que se define pela busca por mudanças fundamentais.
Os Comitês da Unidade Popular não serão somente órgãos eleitorais. Serão intérpretes e combatentes das reivindicações imediatas das massas e, sobretudo, se prepararão para exercer o Poder Popular.
Assim, este novo poder que o Chile necessita deve começar a ser gestado já, onde quer que o povo de organize para lutar por seus problemas específicos e onde quer que se desenvolva a consciência da necessidade de exercê-lo.
Esse sistema de trabalho comum será um método permanente e dinâmico de desenvolvimento do Programa, uma escola ativa para as massas e uma forma concreta de aprofundar o conteúdo político da Unidade Popular em todos os seus níveis.
Em determinado momento da campanha, os conteúdos essenciais deste Programa, enriquecidos pela discussão e contribuição do povo, e de uma série de medidas imediatas do governo, serão descritos em uma Ata do Povo que se constituirá, para o novo Governo Popular e pela Frente que o sustenta, em um mandato irrenunciável. Aprovar o candidato da Unidade Popular não significa, portanto, somente votar em um homem, mas também se pronunciar em favor da transformação urgente da atual sociedade que se alicerça no domínio dos grandes capitalistas nacionais e estrangeiros.
As transformações revolucionárias que o país necessita só poderão ser realizadas se o povo chileno tomar em suas mãos o poder e o exercer real e efetivamente.
O povo do Chile conquistou, através de um longo processo de luta, determinadas liberdades e garantias democráticas que devem ser mantidas em atitude de alerta e combate sem trégua. Porém, o poder mesmo lhe é alheio.
As forças populares e revolucionárias não se uniram para lutar pela simples substituição de um Presidente da República por outro, nem para trocar um partido por outros no Governo, mas para levar a cabo as mudanças estruturais que a situação nacional exige, sobre a base da transferência de poder dos antigos grupos dominantes aos trabalhadores, camponeses e setores progressistas das camadas médias da cidade e do campo.
O triunfo popular abrirá espaço ao regime político mais democrático da história do país.
Em matéria de estrutura política, o Governo Popular tem a dupla tarefa de:
O Governo Popular garantirá o exercício dos direitos democráticos e respeitará as garantias individuais e sociais de todo o povo. A liberdade de consciência, de fala, de impressa e de reunião, a inviolabilidade do domicílio e os direitos de sindicalização e de organização efetivamente vigorarão, sem os obstáculos com que são limitados atualmente pelas classes dominantes.
Para que isso seja efetivo, as organizações sindicais e sociais dos operários, funcionários, camponeses, moradores, donas de casa, estudantes, profissionais, intelectuais, artesãos, pequenos e médios empresários e demais setores de trabalhadores serão chamados a intervir no âmbito que a eles corresponder, no que se refere às decisões dos órgãos de poder. Por exemplo, nas instituições de previdência e de seguridade social, estabeleceremos a administração por sua própria imposição, assegurando a eles a eleição democrática de seus conselhos diretivos e em votação secreta. Quanto às empresas do setor público, seus conselhos diretivos e Comitês de Produção devem contar com representantes diretos de seus operários e funcionários.
Nos órgãos habitacionais correspondentes a sua jurisdição e nível, as Juntas de Vecinos(3) e demais organizações de moradores irão dispor de mecanismo para fiscalizar suas operações e intervir em múltiplos aspectos de seu funcionamento. Porém, não se trata unicamente desses exemplos, mas de uma nova concepção em que o povo adquire uma intervenção real e eficaz nos órgãos do Estado.
De maneira semelhante, o Governo Popular garantirá o direito dos trabalhadores ao emprego e à greve e de todo o povo à educação e à cultura, com pleno respeito de todas as ideias e crenças religiosas, garantindo o exercício de seus cultos.
Todos os direitos e garantias democráticas serão estendidos, entregando às organizações sociais os meios reais para exercê-los e criando os mecanismo que os permita atuar nos diferentes níveis do aparato do Estado.
O Governo Popular assentará sua força e autoridade essencialmente no apoio que o povo organizado lhe oferecer. Essa é nossa concepção de governo forte, oposta, portanto, à concepção pregada pelas oligarquias e pelo imperialismo que identifica a autoridade com a coerção exercida contra o povo.
O Governo Popular será pluripartidarista. Estará integrado por todos os partidos, movimentos e correntes revolucionárias. Será, assim, um executivo verdadeiramente democrático, representativo e coeso.
O Governo Popular respeitará os direitos da oposição que se exerça dentro dos marcos legais.
O Governo Popular iniciará de imediato uma real descentralização administrativa, conjugada com um planejamento democrático e eficiente que elimine o centralismo burocrático e o substitua pela coordenação de todos os organismo estatais.
A estrutura das municipalidades será modernizada, reconhecendo a autoridade que lhes corresponde de acordo com os planos de coordenação de todo o Estado. A tendência é que elas sejam transformadas nos órgãos locais da nova organização política, dotando-as de financiamento e atribuições adequadas, a fim de que possam atender, em interação com as Juntas de Vecinos e coordenadas entre si, os problemas de interesse local de suas comunas(4)e de seus habitantes. Devem entrar em função com esse mesmo propósito as Asambleas Provinciales(5).
A polícia deve ser reorganizada a fim de que não possa voltar a se constituir como organismo de repressão contra o povo, passando a cumprir, em vez disso, com o objetivo de defender a população dos atos antissociais. O procedimento policial será humanizado de modo a garantir efetivamente o pleno respeito à dignidade e à integridade física do ser humano. O regime carcerário, que constitui uma das piores marcas do atual sistema, deve ser transformado em sua raiz, com vistas à regeneração e recuperação daqueles que cometeram um crime.
[…]
Notas de rodapé:
(1) Trecho do “Programa básico de la Unidad Popular” apresentado à consideração do povo chileno no dia 17 de dezembro de 1969, pouco menos de um ano antes da eleição de Salvador Allende no Chile, primeiro marxista a ser eleito democraticamente como presidente da república e chefe de estado no continente americano. Não se trata aqui do simples registro de um documento oficial e histórico, mas da tradução de um trecho específico que versa sobre organização política, radicalização da democracia e poder popular, compondo os primeiro traços de um governo que – se não fossem os boicotes norteamericanos e sua interrupção precoce, através da força bruta, no golpe de Pinochet (também apoiado pelo governo dos Estados Unidos) que levou Allende à morte em 1973 – poderia ter produzido a experiência inédita de um socialismo efetivamente democrático. Por outro lado, trata-se de um trecho que nos permite perceber que, ainda que Allende faça apelos constantes á participação popular e a algo da ordem da revolução, sua proposta mantêm-se nos limites da institucionalidade do Estado chileno da época, o que pode servir para uma reflexão, hoje, sobre o que fez com que seu governo não tivesse uma base sólida que lhe permitisse, através da sociedade civil, resistir ao golpe. Ademais, justamente por ter selecionado um trecho que, apesar de dizer da realidade política do Chile entre as décadas de 1960 e 1970, não se restringe a ela, acredito ser ele de grande valia para o atual momento político mundial, em que assistimos ao colapso da estrutura social vigente que pode abrir espaço para potenciais transformações. No que se refere especificamente ao Brasil, uma questão pode ser colocada: se Pinochet surgiu como resposta conservadora ao socialismo democrático de Allende, o que poderá surgir por aqui, guardadas as devidas distinções históricas e materiais, como resposta subversiva ao que podemos chamar de um certo “pinochetismo” de Bolsonaro (além do presidente brasileiro já ter confessado admiração pelo ditador chileno, a brutal junção entre neoliberalismo e autoritarismo parece guardar semelhanças)? (N. do T.) (retornar ao texto)
(2) Sempre que “Unidade Popular” estiver grafada com letras maiúsculas é porque Allende está fazendo referência à coalizão partidária de esquerda (Unidad Popular) que o elegeu nas eleições de 1970. (N. do T.) (retornar ao texto)
(3) Juntas de Vecinos são organizações comunitárias de caráter territorial, como órgãos de representação das pessoas que residem em uma mesma localidade, cujo objetivo é promover o desenvolvimento daquela comunidade e defender seus direitos e interesses, além de colaborar com as autoridades do Estado e das municipalidades. Sobre isso, ver a Ley sobre juntas de vecinos y demás organizaciones comunitárias, disponível em: < http://www.puntaarenas.cl/servicios/smunicipal/ley_19_418.pdf>. (N. do T.) (retornar ao texto)
(4) As comunas eram na época (e ainda são) a menor subdivisão administrativa do Chile. (N. do T.) (retornar ao texto)
(5) As Asambleas Provinciales estavam ligadas ao regime de administração interna do Chile, que na época dividia o território nacional em províncias e as províncias em comunas. Sobre isso, ver a Constitución de 1925, disponível em:
<https://www.leychile.cl/Consulta/listaMasSolicitadasxmat?agr=1&sub=355&tipCat=0>. (N. do T.) (retornar ao texto)
Inclusão | 09/10/2019 |