MIA> Biblioteca> Theodor Adorno > Novidades
Primeira Edição: Publicado originalmente em Theodor Adorno, Else Frenkel-Brunswik, Daniel Levinson e Nevitt Sanford, The Authoritarian Personality. Nova York: Harper, 1950. Reproduzido em Gesammelte Schriften Vol. 9, T. I [Soziologische Schriften II] Frankfurt: Surhkamp Verlag, 1975, p. 143. Traduzido por Francisco Rüdiger de acordo com a versão editada em Critical Theory ana Society – A Reader, organizado por Douglas Kellner e Stephen Bronner. Nova York: Routledge, 1989
Fonte: NUPESE - UFG
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
O assunto deste livro é a discriminação social mas seu propósito não é simplesmente acrescentar algumas descobertas empíricas a um corpo de informação já bastante extenso. A temática central do trabalho é um conceito relativamente novo — o surgimento de uma espécie "antropológica", que podemos chamar de homem autoritário. Em contraste com o fanático de velho estilo, esse último parece combinar as idéias e habilidades típicas da sociedade altamente industrializada com crenças irracionais ou anti-racionais. Ele é ao mesmo tempo esclarecido e supersticioso, orgulhoso de ser um individualista e sempre temeroso de não ser igual aos outros, ciumento de sua independência e inclinado a se submeter cegamente ao poder e à autoridade. A estrutura de caráter que abarca essas tendências conflitantes já atraiu a atenção dos pensadores políticos e filósofos modernos. Este livro aborda o problema com os meios da pesquisa psicossociológica.
As implicações e valores do estudo são práticos tanto quanto teóricos. Os autores não acreditam que existe um desvio que leve à educação saindo da estrada longa e muita vezes sinuosa da pesquisa esmerada e da análise teórica. Também não pensam que o problema das minorias na sociedade moderna, e mais especificamente o problemas dos ódios raciais e religiosos, possam ser tratados com sucesso nem pela propaganda da tolerância nem pela refutação apologética dos seus erros e mentiras. Por outro lado, a atividade teórica e a aplicação prática não estão separadas por um abismo intransponível. Bem pelo contrário: os autores estão imbuídos da convicção de que a elucidação científica, sistemática e sincera de um fenômeno de tal significado histórico pode contribuir diretamente ao melhoramento da atmosfera cultural da qual o ódio se alimenta.
Trata-se de uma convicção que não deve ser posta de lado como uma ilusão otimista. Na história da civilização, tem havido muitos momentos em que as ilusões coletivas não foram curadas pela propaganda mas, no final da análise, porque os homens de ciência e seus hábitos de trabalho insistentes e discretos estudaram o que jaz na raiz da impostura.
Gostaríamos de citar dois exemplos. A crença supersticiosa na feitiçaria foi superada nos séculos dezessete e dezoito, depois que os homens começaram a viver sob influência dos resultados da ciência moderna. O impacto do racionalismo cartesiano foi decisivo. Essa escola filosófica demonstrou que a crença no efeito imediato dos fatores espirituais no domínio corporal, até então aceita, era ilusória. Os cientistas naturais que os seguiram fizeram uso prático desse formidável discernimento. Os fundamentos da crença na magia foram pois destruídos, uma vez eliminado aquele dogma, tornado cientificamente insustentável.
Como exemplo mais recente, só podemos pensar no impacto da obra de Sigmund Freud na cultura moderna. Sua importância primeira não repousa no fato de que o conhecimento e a pesquisa psicológica foram enriquecidos por novas descobertas mas no fato de que há cerca de cinqüenta anos o mundo intelectual, especialmente o educacional, se tornou muito mais consciente da conexão entre a repressão infantil (fora e dentro de casa) e a ingênua ignorância social a respeito da dinâmica psicológica da vida da criança tanto quanto do adulto. A penetração espontânea na consciência social da experiência cientificamente adquirida de que os eventos da primeira infância são de primordial para a felicidade e o potencial de trabalho do adulto produziu uma revolução na relação entre pais e filhos que teria sido julgada impossível cem anos atrás.
O presente trabalho esperamos, encontrará um lugar nesta história de dependência mútua entre ciência e clima cultural. Seu objetivo último é abrir novos caminhos numa área de pesquisa que pode se tornar de significado prático imediato. Ele procura desenvolver e promover o entendimento dos fatores socio-psicológicos que tornam possível ao tipo autoritário ameaçar o posto do tipo democrático e individualista dominante em nossa civilização no último século e meio, assim como os fatores por meio dos quais essa ameaça pode ser contida. A análise progressista desse novo tipo antropológico, bem como de suas condições de crescimento, através de sua permanente diferenciação científica, fortalecerão as chances de um contra-ataque genuinamente educativo.
A confiança na possibilidade de um estudo mais sistemático dos mecanismos de discriminação e, em especial, da caracteriologia do tipo descriminador não se baseia apenas na experiência histórica dos últimos quinze anos mas, também, nos desenvolvimentos ocorridos dentro das ciências sociais em décadas recentes. Esforços consideráveis e bem sucedidos têm sido feitos neste país tanto quanto na Europa para conduzir as várias disciplinas que têm o homem como fenômeno até o plano da cooperação organizacional com que já se acostumou as ciências naturais. Assim o que pensamos não é apenas um arranjo mecânico com o objetivo de reunir o trabalho feito em vários campos de estudo, como ocorre em simpósios e livros textos; mas uma mobilização de diferentes métodos e habilidades desenvolvidos em distintos campos da teoria e pesquisa empírica com o objetivo de desenvolver um programa de pesquisa comum.
Afinal é exatamente essa fertilização recíproca de diferentes ramos das ciências sociais e da psicologia que tem lugar no presente volume. Os especialistas nos campos da teoria social e da psicologia profunda, da análise de conteúdo, psicologia clínica, sociologia política e testes projetivos congregaram suas experiências e descobertas. Tendo trabalhado juntos na mais íntima colaboração, eles agora apresentam como resultado de seus esforços conjuntos os elementos de uma teoria do tipo autoritário na sociedade moderna.
Eles estão cientes de que não são os primeiros a estudar este fenômeno e reconhecem com gratidão seu débito para com os notáveis perfis psicológicos do indivíduo preconceituoso feitos por Sigmund Freud, Maurice Samuel, Otto Fenichel e outros. Discernimentos brilhantes como os deles foram em certo sentido pré-requisitos indispensáveis da integração metodológica e organização da pesquisa a que se propôs este estudo. Desejamos pensar que a realizamos até certo ponto e com uma dimensão que, até agora, não tinha sido atingida.
A pesquisa a ser relatada neste volume foi guiada pela seguinte hipótese principal: as convicções econômicas, políticas e sociais de um indivíduo muitas vezes formam um padrão amplo e coerente, como que se estivessem ligadas por uma "mentalidade" ou "espírito", e esse padrão é expressão de tendências profundas em sua personalidade.
A preocupação maior foi com o indivíduo potencialmente fascista, aquele cuja estrutura é tal que é capaz de torná-lo particularmente suscetível à propaganda antidemocrática. Dizemos "potencial" porque nós não estudamos indivíduos que eram confessadamente fascistas ou que pertenciam a conhecidas organizações fascistas. Na época em que a maior parte de nossos dados foi recolhida, o fascismo recém tinha sido derrotado e, por isso, não podíamos esperar encontrar sujeitos que abertamente se identificassem com ele. No entanto não houve dificuldade em descobrir sujeitos cujo perfil era capaz de indicar que eles rapidamente aceitariam o fascismo, se ele se tornasse um movimento social forte ou respeitável.
Concentrando-nos no fascista em potencial não queremos deixar implícito que outros padrões de personalidade e ideologia não poderiam ser estudados do mesmo modo e com igual proveito. É nossa opinião, porém, que nenhuma tendência político-social impõe uma ameaça maior a nossos valores e instituições do que o fascismo, e que o conhecimento das forças subjetivas que favorecem sua aceitação, derradeiramente, podem se mostrar úteis em seu combate. A questão que pode ser levantada é porque se desejamos explorar novos recursos para combater o fascismo, nós não demos muita atenção para o "potencial antifascista". A resposta é que nós estudamos a tendência que se coloca em oposição ao fascismo, mas nós não cremos que ela constitua um simples padrão. Uma das maiores descobertas do presente estudo é que os indivíduos que revelam extrema suscetibilidade à propaganda fascista têm muito em comum. (Eles exibem numerosas características que se juntam para formar uma síndrome, ainda que variações típicas dentro desse padrão mais amplo possam ser distinguidas.) Os indivíduos que estão no extremo da direção oposta ao fascismo são muito mais diversificados. A tarefa de diagnosticar o potencial de fascismo e estudar seus fatores determinantes exigiu técnicas especialmente desenhadas para esses propósitos; não se poderia pedir que servissem também para os vários outros tipos de padrão. No entanto, foi possível distinguir vários tipos de estrutura de personalidade que nos pareceram particularmente resistentes às idéias antidemocráticas, como se pode ver pela atenção que lhes demos no último capítulo.
Se o indivíduo potencialmente fascista existe, com o que, precisamente ele se parece? O que faz com que haja um pensamento antidemocrático? E se tal pessoa existe, quais têm sido os determinantes e qual o curso de seu desenvolvimento?
A presente pesquisa foi desenhada para lançar alguma luz sobre essas questões. Embora a noção segundo a qual o indivíduo potencialmente antidemocrático é uma totalidade possa ser aceita como hipótese plausível, é preciso alguma análise para começar. Na maioria das abordagens do problema dos tipos políticos, pode-se distinguir entre a concepção da ideologia e a concepção das necessidades subjacentes na pessoa. Embora ambas possam ser pensadas como formando um todo organizado dentro do indivíduo, elas todavia podem ser estudadas separadamente. As mesmas tendências ideológicas podem ter diferentes fontes em diferentes indivíduos, e as mesmas necessidades pessoais podem se expressar em diferentes tendências ideológicas.
O termo ideologia é usado neste livro do modo que é comum na literatura corrente, para dar conta de uma organização de opiniões, atitudes e valores — um modo de pensamento do homem e da sociedade. Podemos falar de uma ideologia total do indivíduo ou de sua ideologia com relação a diferentes aspectos da vida social: economia, religião, grupos minoritários e assim por diante. As ideologias têm uma existência independente em relação à qualquer indivíduo; e aqueles que existem em uma determinada época são resultado ao mesmo tempo de processos históricos e eventos sociais contemporâneos. Essas ideologias têm diferentes graus de apelo para diferentes indivíduos, pois isso depende das necessidades individuais e do grau em que essas necessidades estão sendo satisfeitas ou frustradas.
Para ser exato, existem indivíduos que tomam para si idéias de mais de um sistema ideológico existente, misturando-as em padrões mais ou menos exclusivos. Entretanto, ao examinar-se as opiniões, atitudes e valores de numerosos indivíduo, pode-se descobrir padrões comuns. Embora esses padrões possam não corresponder em todos os casos às ideologias correntes, ainda assim satisfazem a definição de ideologia dada acima e, caso a caso, desempenham uma função dentro do ajustamento geral do indivíduo.
A presente investigação sobre a natureza do indivíduo potencialmente fascista começou tendo como foco de atenção o anti-semitismo. Os autores, como a maioria dos cientistas sociais, defendem a visão, primeiro, de que o anti-semitismo se baseia mais amplamente em fatores subjetivos e em sua situação global do que em reais características dos judeus e, segundo , de que os determinantes de suas opiniões e atitudes devem ser procurados dentro das pessoas que as expressam. Considerando que essa ênfase na personalidade requeria focar a atenção na psicologia mais do que na sociologia ou na história, embora em última análise os três campos só possam ser separados artificialmente, não haveria nenhuma tentativa de dar conta da existência de idéia anti-semitas em nossa sociedade. A questão que se colocou foi, antes, saber porque é que certos indivíduos aceitam essas idéias enquanto outros não? E dado que desde o início a pesquisa foi guiada pelas hipóteses acima mencionadas, supôs-se que
Os discernimentos e hipóteses relativas ao indivíduo antidemocrático, presentes em nosso clima cultural mais amplo, precisam ser corroboradas por uma grande quantidade de observação meticulosa, e em muitos casos pela mensuração, antes de poderem ser vistas conclusivamente. Como se pode dizer com segurança que as numerosas opiniões, atitudes e valores expressos por um indivíduo realmente constituem um padrão consistente ou totalidade organizada? Para tanto parece-nos que seria necessária a mais completa investigação desse indivíduo. Como se pode dizer que as opiniões atitudes e valores descobertos em um grupo de pessoas se juntam para formar padrões, dos quais alguns são mais comuns do que outros? Não existe outro caminho adequado para proceder do que realmente medindo a ampla variedade de conteúdos do pensamento da população examinada e determinando quais são os que se juntam, por meio de métodos estatísticos padronizados.
Para muitos psicólogos sociais, o estudo científico da ideologia, como tem sido definido, parece uma tarefa sem esperança. Medir com cuidado confiável uma atitude específica, singular e isolada é um procedimento árduo e demorado, quer para o sujeito quer para o pesquisador. (Freqüentemente se argumenta que uma atitude só pode ser medida de maneira adequada se for específica e isolada.) Como então esperamos sondar, dentro de um período de tempo razoável, as várias atitudes e idéias que formam um ideologia? Evidentemente algum tipo de seleção é necessária. O investigador precisa se limitar ao que é mais importante, e os juízos de relevância só podem ser feitos com base em uma teoria.
As teorias que guiaram a presente pesquisa serão apresentadas de acordo com o contexto, mais adiante. Embora as considerações teóricas tenham um papel em cada etapa do trabalho, o princípio foi o estudo objetivo das opiniões, atitudes e valores mais observáveis e relativamente específicos.
Opiniões, atitudes e valores, tais como os concebemos, são expressas mais ou menos abertamente em palavras. Psicologicamente eles estão sempre "na superfície". Precisa ser reconhecido porém que quando se chega a questões muito carregadas de afeto, como as concernentes às minorias e tópicos de política atual, o grau de abertura com o qual a pessoa fala dependerá da situação em que ela se encontra. Poderá haver uma discrepância entre o que ela diz em uma ocasião particular e o que ela "realmente pensa". Dizemos que o que ela realmente pensa ela expressa em discussões confidenciais com os que lhe são íntimos. Embora ainda muito superficial do ponto de vista psicológico, isso [suas idéias] todavia também pode ser observado diretamente pelo psicólogo, se ele usa as técnicas apropriadas. Foi isso que tentamos fazer.
Precisamos reconhecer porém que o indivíduo pode ter pensamentos "secretos", que ele não revelará a ninguém, em nenhuma circunstância, se puder evitar. Ele pode ter idéias que não admite nem para si mesmo, assim como pode ter idéias que não expressa, porque são tão vagas e mal-formadas que não consegue pô-las em palavras. Ter acesso a essas tendências profundas é particularmente importante, porque exatamente aí pode repousar o potencial do indivíduo para o pensamento e a ação democrática ou para o pensamento e ação antidemocrática em situações cruciais.
O que as pessoas dizem e, em menor grau, o que elas realmente pensam depende em muito do clima de opinião em que ela vivem; mas quando esse clima muda, alguns indivíduos se adaptam muito mais rapidamente do que outros. Se houvesse um aumento marcante na propaganda antidemocrática, deveríamos esperar que algumas pessoas a aceitem e passem a repeti-la; outras, que assim o façam quando "todos o mundo estiver acreditando"; e, ainda, que haja outras que não o façam. Noutras palavras, os indivíduo diferem em sua prontidão para exibir as tendências antidemocráticas. Parece necessário estudar a ideologia neste "nível de prontidão" a fim de medir o potencial de fascismo deste país. Observadores têm notado que a quantidade de anti-semitismo implícito existente na Alemanha antes de Hitler era menor do que a existente neste país, mas isso só pode ser sabido através de uma investigação intensiva; através de uma sondagem detalhada do que há na superfície e através do exame do que está por detrás dela.
A questão que pode ser levantada é sobre qual é o grau de relacionamento entre a ideologia e a ação. Se um indivíduo está fazendo propaganda antidemocrática ou se engajando em ataques abertos contra os membros de uma minoria, é geralmente assumido que suas opiniões, atitudes e valores são congruentes com sua ação; mas às vezes se encontra conforto na idéia de que, embora verbalmente o indivíduo expresse idéias antidemocráticas, ele não as põe, nem vai pô-la, em ação. Aqui de novo existe a questão das potencialidades. A ação aberta tanto quanto uma expressão verbal do mesmo tipo depende em grande parte da situação existente, de algo que pode ser melhor descrito em termos socioeconômicos e políticos. Mas os indivíduos diferem amplamente com respeito a sua prontidão, quando é para serem levados à ação. O estudo desse potencial é parte do estudo da ideologia global do indivíduo; saber que tipos de crença, atitude e valor o levam à ação, assim como o que as intensifica e quais forças dentro dele servem de inibidores dessa ação são assuntos da maior importância prática.
Parece haver pouca razão para duvidar que a prontidão ideológica (receptividade ideológica) e a ideologia em palavras e ação são essencialmente a mesma coisa. A descrição da ideologia global de um indivíduo precisa retratar não apenas a organização de cada nível mas a organização entre os níveis ideológicos [de sua personalidade]. O que o indivíduo diz em público com consistência; o que ele diz quando se sente à salvo de crítica; o que ele pensa mas não dirá de modo algum; o que ele pensa mas não admitirá sequer para si mesmo; o que ele está disposto a pensar ou fazer quando vários tipos de apelo forem feitos a ele — todos esses fenômenos podem ser concebidos como constituindo uma só estrutura. A estrutura pode não ser integrada, conter contradições tanto quanto consistência, mas é organizada de forma que suas partes constitutivas sejam relacionadas de modo psicologicamente significativo.
A fim de entender tal estrutura, necessitamos de uma teoria global da personalidade. De acordo com a teoria que guia a presente pesquisa, a personalidade é uma organização de forças mais ou menos duradoura dentro do indivíduo. As forças da personalidade ajudam a determinar a resposta a várias situações e portanto é sobretudo a elas que devemos atribuir a consistência — seja verbal ou física — do referido comportamento. Entretanto comportamento, ainda que consistente, não é a mesma coisa que personalidade; personalidade é o que repousa atrás do comportamento e dentro do indivíduo. As forças da personalidade não são respostas mas prontidão para resposta; se essa prontidão vai ou não resultar em expressão aberta, depende não apenas da situação do momento mas também de qual outra prontidão se encontra em oposição a ela. As forças personalidade que são inibidas o são em um nível mais profundo daquelas que se expressam de maneira imediata e consistente no comportamento aberto.
Quais são as forças da personalidade e quais são os processos através dos quais são organizados? Para dar conta teoricamente da estrutura da personalidade nós nos baseamos muito em Freud, enquanto no tocante à formulação mais ou menos sistemática dos aspectos mais observáveis e mensuráveis da personalidade fomos guiados sobretudo pela psicologia acadêmica. As forças da personalidade são antes de mais nada necessidades (instintos, desejos, impulsos emocionais) que variam de um indivíduo para outro em quantidade, intensidade, modo de gratificação e objetos de fixação. Além disso, elas interagem umas com as outras de acordo com padrões harmoniosos ou conflitantes. Existem necessidades emocionais primitivas; existem necessidades para evitar punição e para manter a boa vontade do grupo social; e existem necessidades para manter a harmonia e integração dentro do eu.
Considerando que será aceita a idéia de que as opiniões, atitudes e valores se baseiam em necessidades humanas e dado que a personalidade é essencialmente uma organização de necessidades, a personalidade pode ser vista pois como um determinante das preferências ideológicas. Entretanto a personalidade não deve ser hispotasiada como um determinante último. Longe de ser algo que é dado, que permanece fixo e atua sobre o mundo circundante, a personalidade se desenvolve sob o impacto do meio social e jamais pode ser isolada da totalidade social dentro da qual esse processo ocorre. De acordo com esta teoria, os efeitos dos fatores ambientais na modelagem da personalidade são, em geral, mais profundas quanto mais cedo eles se fazem presentes na história de vida do indivíduo. As principais influências sobre o desenvolvimento da personalidade surgem no curso do ensinamento dado à criança no cenário da vida familiar. O que acontece aqui é profundamente influenciado pelos fatores econômicos e sociais. O problema não é apenas o fato de cada família tentar criar suas crianças de acordo com as normas dos grupos sociais, étnicos e religiosos a que pertencem. Também ocorre que fatores econômicos afetam diretamente o comportamento dos pais em relação às crianças. Isso significa que as mudanças mais amplas nas condições sociais e nas instituições terão relevância direta no tipo de personalidade que se desenvolve em uma sociedade.
A presente pesquisa procura descobrir as correlações entre a ideologia e os fatores sociológicos que operam no passado individual — quer eles continuem ou não a operar no presente. Tentando explicar essas correlações, faz-se um retrato das relações entre a personalidade e ideologia. A abordagem geral consiste em considerar a personalidade como um agência através da qual os fatores sociológicos são os mais cruciais e, além disso, o modo como esses últimos produzem seus efeitos.
Embora a personalidade seja produto do ambiente social passado, uma vez desenvolvida ela deixa de ser um mero objeto do ambiente contemporâneo. O que se desenvolveu é uma estrutura dentro do indivíduo, algo que é capaz de selecionar os vários estímulos que lhe são impingidos e que é capaz de iniciar suas próprias ações no contexto social; algo que embora seja sempre modificável é muitas vezes resistente à mudanças fundamentais. Essa concepção é necessária para explicar a consistência do comportamento em situações que variam de forma tão ampla; para explicar a persistência das tendências ideológicas em face dos fatos que as contradizem e de condições sociais que são alteradas radicalmente; para explicar por que as pessoas de mesma situação social têm visões diferentes ou mesmo conflitantes sobre as mesmas questões sociais; e [enfim] para explicar por que pessoas cuja conduta foi mudada através de manipulação psicológica retornam às suas velhas maneiras logo que as agências de manipulação são removidas.
A concepção da personalidade como estrutura é a melhor salvaguarda contra a inclinação a atribuir as tendências persistentes no indivíduo a algo "inato" ou "básico" ou "racial" que existe dentro dele. A alegação nazista segundo a qual são os traços naturais e biológicos que decidem o modo de ser global de uma pessoa não seria um expediente político tão bem sucedido se não fosse possível apontar as numerosas instâncias de fixação relativa na conduta humana e desafiasse aqueles que pensam poder explicá-las em qualquer outra base que não a biológica. Privados do entendimento da personalidade como estrutura, os autores cuja abordagem descansa na premissa de que a capacidade humana de responder e se adaptar à situação social existente é infinita em nada ajudaram, no tocante à matéria, ao referir-se às tendências persistentes com as quais eles não concordam como "confusão", "psicose" ou o [próprio] mal, sob um ou outro nome. Obviamente, existe alguma base para descrever como "patológicos" os padrões de conduta que não se conformam às respostas tidas como mais comuns e, aparentemente, mais regulares aos estímulos do momento. Porém isso é usar o termo patológico no sentido muito estreito de desvio da média encontrada em um contexto social particular e, o que é pior, sugerir que tudo aquilo que existe na estrutura da personalidade pode ser posto sob esse título. Realmente a personalidade abarca variáveis amplamente disseminadas na população e que, como tais, possuem relações regulares umas com as outras. Os padrões de personalidade que têm sido desprezados como "patológicos", porque não estão de acordo com as tendências manifestas mais comuns, ou mesmo com a maioria dos ideais dominantes existentes na sociedade, revelam-se à luz de uma investigação mais detalhada não ser senão exageros de algo que é quase universal no plano subjacente a essa sociedade. O que é "patológico" hoje pode se tornar a tendência dominante de amanhã, com a mudança das condições sociais.
Parece claro então que uma abordagem adequada dos problemas que temos pela frente precisa levar em conta ao mesmo [tempo] a fixidez e flexibilidade [da personalidade]; precisa ver as duas coisas não como categorias mutuamente exclusivas, mas como extremos de um mesmo contínuo, ao longo do qual as características humanas podem ser colocadas; e, por fim, precisa nos dar a base para entender as condições que favorecem um ou outro extremo. Personalidade é um conceito para dar conta de uma permanência relativa. Porém podemos enfatizar mais uma vez que ele designa sobretudo um potencial; é a prontidão para conduta antes que a própria conduta. Embora consista em disposições para se conduzir de certo modo, a conduta realmente verificada vai depender da situação objetiva. Onde a preocupação é com as tendências antidemocráticas, a delimitação das condições para expressão individual requer um entendimento das organização global da sociedade.
Afirma-se há algum tempo que a estrutura da personalidade pode ser tal que torna o indivíduo suscetível à propaganda antidemocrática. Pode-se agora perguntar quais são as condições sob as quais tal propaganda poderia, aumentando seu grau e volume, vir a dominar a imprensa e o rádio e excluir os estímulos ideológicos contrários, de modo que o que agora jaz em potencial se tornasse efetivamente manifesto. A resposta não deve ser procurada em qualquer personalidade singular, nem nos fatores de personalidade existentes na massa da população, mas nos processos em ação na sociedade. Atualmente parece bem entendido que se a propaganda antidemocrática vai ou não se tornar uma força dominante neste país depende fundamentalmente da situação da maior parte dos interesses econômicos mais poderosos; se eles, seja ou não através de um plano consciente, farão uso desse expediente para manter seu status dominante; e essa é uma matéria sobre a qual a grande maioria das pessoas teria pouco a dizer.
A presente pesquisa, limitada, como o é, aos aspectos psicológicos do fascismo, até agora amplamente negligenciados, não está preocupada com a produção da propaganda. Seu foco de atenção é, antes o consumidor, o indivíduo a quem a propaganda é projetada. Procedendo assim tenta dar conta não apenas da estrutura psicológica do indivíduo mas da situação objetiva global em que ele vive. Ela parte da hipótese de que as pessoas em geral tendem a aceitar os programas políticos e sociais que elas acreditam servirão a seus interesses econômicos. Quais são esses interesses depende, em cada caso, da posição econômica e social do indivíduo. Por isso, a tentativa de descobrir quais são os padrões socioeconômicos que se associam à receptividade mas também à resistência à propaganda antidemocrática foi um importante elemento levado em conta na presente investigação.
Ao mesmo tempo, porém, considerou-se que as motivações econômicas que agem sobre o indivíduo podem não ter o papel determinante e crucial que muitas vezes lhes são atribuídas. Se o interesse econômico fosse o único fator determinante da opinião, deveríamos esperar que as pessoas do mesmo status socieconômico tivessem opiniões muito similares; deveríamos esperar que a opinião variasse significativamente apenas de um para outro grupo socioeconômico. A pesquisa não trouxe porém apoio expressivo a essas expectativas. Existe apenas a similaridade mais geral de opinião entre as pessoas de um mesmo status socioecômico, mas com flagrantes exceções. Por outro lado, as variações de um grupo socioeconômico para outro só poucas vezes são simples ou bem delimitadas. Para explicar por que as pessoas do mesmo status socioeconômico muitas vezes possuem ideologias diferentes, mas também por que as pessoas de status diverso muitas vezes têm ideologias similares, precisamos levar em conta outras necessidades que não as meramente econômicas.
Além disso, está se tornando cada vez mais claro que, na maior parte das vezes, as pessoas não se comportam de uma certa maneira porque visam seus interesses materiais, mesmo quando é claro para elas quais são esses interesses. A resistência dos trabalhadores de colarinho branco à organização não se deve à crença de que o sindicato não os ajudará economicamente; a tendência dos pequenos empresários a se aliar aos grandes na maioria dos assuntos políticos e econômicos não se deve inteiramente à crença de que isso é um modo de garantir sua independência econômica. Em casos como esses, o indivíduo parece não apenas não considerar seus interesses materiais mas mesmo ir contra eles: é como se ele pensasse em termos de um grupo de identificação mais amplo, como se seu ponto de vista fosse determinado mais por sua necessidade de apoiar esse grupo e suprimir os que lhes fazem oposição do que pela consideração racional de seus próprios interesses.
Na realidade, é procurando alívio que se assegura hoje de que um conflito de grupo não passa de um choque de interesses econômicos, de que cada um dos lados está meramente superar o outro — não sendo uma luta na qual estão em jogo impulsos emocionais muito profundos. A verdade porém é que quando se chega à maneira como as pessoas julgam o mundo social, as tendências irracionais sobressaem-se claramente. Pode-se conceber que um profissional que se opõe à imigração dos refugiados judeus com base em que isso aumentará a competição com que tem de lidar e, assim, poderá vir a diminuir seus rudimentos. Por mais que isso possa ser antidemocrático, ao menos tem algum racionalidade. Para que esse homem porém vá adiante e, como fazem a maioria dos pessoas que se opõem aos judeus nestes termos, aceite uma ampla variedade de opiniões, muito das quais contraditórias sobre esse povo em geral, atribuindo vários males do mundo aos mesmo, é preciso algo totalmente ilógico, como o é também, aliás, elogiar todos os judeus, de acordo com o seu estereótipo "positivo". Indubitavelmente existe hostilidade contra grupos baseada em frustrações reais provocadas por alguns de seus integrantes. Entretanto essas experiências de frustração dificilmente dão conta do fato de como o preconceitos tem aptidão a se generalizar. Evidências do presente estudo confirmam o que tem sido muitas vezes indicado: o homem que é hostil para com uma muito provavelmente o será também contra uma ampla variedade de outras minorias; e não existe base racional concebível para esse tipo de generalização. Porém o que é mais surpreendente é que tanto o preconceito contra quanto a aceitação totalmente acrítica de um grupo particular muitas vezes existe na total ausência de experiência com membros desse grupo. A situação objetiva do indivíduo parece pois um fonte improvável de tal irracionalidade e, sendo assim, devemos procurá-la antes lá onde a psicologia já encontrou as fontes do sonhos, fantasias e interpretações equivocadas do mundo; isto é, nas necessidades profundas da personalidade.
Outro aspecto da situação individual que devemos esperar afete a sua receptividade ideológica é sua pertença aos grupos sociais, sejam ocupacionais, fraternais, religiosos e assemelhados. Devido a razões históricas e sociológicas, esses grupos favorecem e sancionam, oficial ou não-oficialmente, diferentes padrões de pensamento. Existe razão para acreditar que os indivíduos, em meio as suas necessidades de se ajustar, relacionar e crer através de expedientes como imitação e condicionamento, assumem as opiniões, atitudes e valores mais ou menos prontas e que caracterizam os grupos a que pertencem. Na medida em que as idéias que prevalecem em tal grupo são implícita ou explicitamente antidemocráticas, pode-se esperar que seus integrantes individuais sejam receptivos à propaganda portadora de mesma direção ideológica. De acordo com isso, a presente pesquisa investiga a variedade de grupos a que o indivíduo se filia, com o objetivo de descobrir, em cada um deles, quais são e como variam as tendências gerais de pensamento.
No entanto, sabe-se que a correlação entre os membros de um grupo e a ideologia pode, em cada indivíduo, dever-se a diferentes tipos de determinação. Em alguns casos, pode ocorrer por exemplo que o indivíduo meramente repita as opiniões aceitas em seu meio social e que, por isso, ele não tenha razão para questionar. Em outros casos, porém, pode ocorrer que o indivíduo escolha se juntar a um grupo particular porque ele representa idéias com as quais ele já tinha simpatia. O fato é que, à despeito da extensão de sua cultura comum, na sociedade moderna é raro uma pessoa se sujeitar apenas a um padrão de idéias, depois que se tornou velha o bastante para as idéias ainda significarem algo para ela. Pode-se supor pois que geralmente alguma seleção é feita, de acordo com as necessidades da personalidade. Mesmo quando os indivíduos são expostos durante seus anos de formação apenas a um conjunto de padrões de idéias políticas econômicas, sociais e religiosas, descobre-se que alguns se conformam enquanto outros se rebelam, o que parece sugerir a propriedade de se inquirir se os fatores subjetivos não fazem a diferença. De todo modo, a abordagem mais frutífera seria, ao que parece, considerar que na determinação da ideologia, como na determinação de qualquer conduta, existe um fator situacional e um fator subjetivo, e que só a mensuração cuidadosa do papel de cada um deles possibilitará a predição mais acurada [do comportamento individual].
Fatores situacionais, sobretudo a condição econômica e a afiliação a grupos sociais, têm sido muito estudados em recentes trabalhos sobre opinião e atitudes, enquanto os fatores mais internos e individualísticos não têm recebido a merecida atenção. Além disso, ainda existe uma outra razão para que o presente estudo dê ênfase particular sobre a personalidade. O fascismo precisa ter uma base de massas, a fim de ser bem sucedido como movimento político. Ele precisa se assegurar não apenas da submissão aterrorizada mas da cooperação ativa da grande maioria da população. Dado que por sua própria natureza ele favorece uns poucos às custas da maioria, ele provavelmente não pode demonstrar que vai melhorar a situação dessa última servindo a seus reais interesses. Desse modo precisar dirigir seus maiores apelos não ao interesses racional mas às necessidades emocionais, muitas vezes aos desejos e medos mais primitivos e irracionais. Argüindo que a propaganda fascista engana as pessoas fazendo-as crer que sua sorte vai melhorar, surge então a questão: Por que elas são tão facilmente enganadas? Podemos pensar que é por causa de sua estrutura de personalidade; por causa de modelos de esperança e aspirações, medos e ansiedades há muito tempo estabelecidos, que as predispõem a certas crenças e as tornam resistentes a outras. Noutros termos, pode-se dizer que a tarefa da propaganda fascista é tornada mais fácil na medida em que os potenciais antidemocráticos já existem na grande massa das pessoas. Aceita-se como dado que na Alemanha os conflitos econômicos e abalos sociais eram tais que o triunfo do fascismo seria mais ou mais tarde inevitável. Entretanto, os líderes nazistas não agiram como se eles assim acreditassem; ao invés, agiram como se fosse necessário a cada momento levar em conta a psicologia popular — ativar cada grama de seu potencial antidemocrático, comprometer-se com as pessoas, suprimir a menor faísca de rebelião. Parece pois que qualquer tentativa de avaliar as chances do triunfo do fascismo nos Estados Unidos precisa dar conta do respectivo potencial existente no caráter das pessoas.
Os autores deste trabalho acreditam que cabe ao povo decidir se este país vai ou não se tornar fascista. Assume-se porém que o conhecimento da natureza e extensão do potencial antidemocrático indicará os programas para ação democrática. Mas esses programas não se deveriam limitar aos expedientes para manipular as pessoas de modo tal que eles se comportem mais democraticamente. Deveriam, ao invés, dedicar-se a aumentar o tipo de auto-consciência e auto-determinação que tornam impossível qualquer tipo de manipulação.
[Afinal] Existe uma explicação para a a existência de uma ideologia individual que ainda não foi considerada: a visão de mundo que um homem razoável, com algum entendimento do papel dos determinismos discutidos acima e com total acesso as fatos necessários pode organizar para si mesmo. Essa concepção, embora tenha sido deixada por último, é de crucial importância para uma correta abordagem da ideologia. Sem ela nós teríamos de compartilhar a visão destrutiva, que ganhou certa aceitação no mundo moderno, e segundo a qual não existe base para dizer que uma ideologia ou filosofia tem mais mérito do que outra, dado que todas elas derivam de fontes não-racionais.
Porém, convém notar que o sistema racional de um homem objetivo e consciente não é uma coisa separável de sua personalidade. Esse sistema também é motivado. Do ponto de vista de suas fontes o que o distingue é sobretudo o tipo de organização da personalidade que delas se origina. Poder-se-ia dizer que uma personalidade madura (usemos o termo sem defini-lo, no momento) chegará mais perto de obter um sistema racional de pensamento do que uma imatura. Entretanto uma personalidade não é menos dinâmica e menos organizada por ser madura; por isso, a descrição da estrutura dessa personalidade não é diferente em espécie da descrição de qualquer outra personalidade. Teoricamente, as variáveis de personalidade que mais têm a ver com a determinação da objetividade e racionalidade de uma ideologia são aquelas que pertencem ao ego, aquela parte da personalidade que julga a realidade, integra suas outras partes e opera com a percepção mais consciente.
No final das contas, é o ego que se torna consciente e assume as responsabilidades pelas forças que operam na personalidade. É essa a base da nossa crença de que o objetivo de saber quais são as determinações psicológicas da ideologia é fazer com que o homem se torne mais razoável. Obviamente não se está pretendendo com isso eliminar as diferenças de opinião. O mundo é suficientemente complexo e difícil de conhecer; os homens têm muitos interesses reais em conflito entre si; e existem na personalidade diferenças aceitáveis pelo ego em número suficiente para assegurar que os argumentos sobre política, economia e religião jamais se entorpecerão. O conhecimento das determinações psicológicas da ideologia não pode nos dizer qual é a ideologia mais verdadeira; ele só pode remover algumas das barreiras que se antepõem à sua procura.
Inclusão | 21/10/2018 |